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domingo, 18 de junho de 2006

492) Madame Voltaire, mas independente...

A cara metade de Voltaire
The Economist
16/06/2006
Jornal Valor Econômico, caderno EU&Fim de Semana (16/06/2006)
Num tempo em que as mulheres só tinham o casamento como objetivo, Emilie du Châtelet, matemática e física, destacou-se por seu pensamento.

Praticamente todo mundo já ouviu falar alguma coisa de Voltaire. Certamente lisonjeira. Livre pensador, dramaturgo, poeta, cientista, economista, espião, político e especulador muito bem-sucedido, ele personifica a inovação intelectual do Iluminismo - o maior salto individual dado pela humanidade na compreensão de si própria e do mundo.

Mas quase ninguém ouviu falar da mulher com quem ele dividiu a maior parte de sua vida, Emilie du Châtelet. Há bons motivos para pensar que ela foi uma pensadora mais rigorosa, uma escritora melhor, uma cientista mais sistemática, uma matemática formidável, uma exímia jogadora, uma amante mais fiel e uma pessoa muito mais amável e profunda. E ela foi tudo isso, apesar de ter nascido mulher numa sociedade em que a educação feminina era deficiente e frívola. Sua mãe temia que algo mais acadêmico do que lições de etiqueta pudesse tornar sua filha uma pessoa não talhada para o casamento.

"Marquise du Châtelet", a nova biografia de Emilie escrita por David Bodanis, é um testemunho tardio de uma história que, surpreendentemente, sempre foi negligenciada. Um dos motivos foi o chauvinismo masculino. As melhores obras de Emilie foram feitas numa época em que as mulheres não apareciam na corrente científica principal: Immanuel Kant disse que classificar Emilie como uma grande pensadora seria tão ridículo quanto imaginar uma mulher com barba. Os biógrafos estavam muito mais interessados em Voltaire; sua amante sexy era apenas uma coadjuvante. A maioria dos escritores que pesquisavam Emilie também eram pouco letrada em ciência para entender seu significado. "Voltaire in Love", o romance publicado em 1957 por Nancy Mitford, é um bom exemplo disso. "Mitford sabia tanto de ciências quanto um arbusto", observa Bodanis com desdém. Bodanis, um ex-acadêmico cujo livro anterior, "Electric Universe", ganhou o prêmio Aventis (de literatura científica) em 2006, está bem colocado para apreciar a consistência e o alcance extraordinário da obra de Emilie du Châtelet, e não deixa nenhuma dúvida sobre isso ao leitor.

Nascida em 1706, Emilie teve três lances de muita sorte na vida. O primeiro foi nascer com um cérebro admirável. Sua maior obra foi traduzir "Principia", a revolucionária obra sobre física do recluso gênio de Cambridge, Isaac Newton, que morreu quando Emilie tinha 20 anos. Ela não só traduziu a obra do latim para o francês como também expressou as obscuras provas geométricas de Newton usando a linguagem mais acessível dos cálculos matemáticos. E tornou mais acessível, dentro da complicada teia de teoremas de Newton, as importantes implicações para o estudo da gravidade e da energia. Isso lançou as bases para as descobertas da física teórica no século seguinte. O uso do quadrado da velocidade, c2, na equação mais famosa de Einstein, E=mc2, tem ligação direta com seu trabalho.

O segundo lance de sorte de Emilie foi que seu pai permitiu que ela usasse seu cérebro: está certo que não muito, mas certamente muito mais do que as mulheres mais brilhantes da época em seu país. Ela não foi mandada para um convento. Ele era rico e liberal o suficiente para lhe comprar livros e falar sobre astronomia com ela. Ele a casou com Florent-Claude, marquês de Châtelet-Lomont, que era meio sem graça, mas decente - e não se incomodava com a vida intelectual da esposa e com suas aventuras amorosas. Na verdade, ele admirava Voltaire.

O terceiro lance de sorte de Emilie foi a série de amantes de cabeça aberta que teve. Eles podem ter sido parceiros insatisfatórios pelos padrões atuais, mas eram raridades numa época em que poucos homens buscavam qualidades intelectuais em uma mulher. Emilie começou com o duque de Richelieu, "o homem mais cobiçado da França". Ele incentivou sua confiança intelectual, abalada por uma infância reclusa e um casamento prematuro. Mesmo depois de ter sido abandonado por ela, continuou sendo seu amigo. Então veio Voltaire, pobre, comodista, pouco confiável e egocêntrico - mas ainda assim o amor de sua vida e seu grande estímulo intelectual e cultural. Mesmo quando a paixão esfriou, eles continuaram sendo grandes companheiros.

Finalmente, ela se apaixonou por Jean-François, marquês de Saint-Lambert, um poeta muito mais jovem. Ele preencheu os vazios emocional e físico deixados por Voltaire. Mas também se mostrou descuidado com o que se passava por contracepção naqueles dias. Isso levou a uma gravidez e à infecção que matou Emilie quando ela tinha apenas 42 anos.

É tentador especular que descobertas Emilie poderia ter feito se tivesse vivido em uma época mais salubre e liberal. Mas isso seria não entender a questão. A coisa mais admirável é que ela conseguiu muita coisa, e com bom humor e um auto-conhecimento reflexivo.

Sorte de seu biógrafo que existe muito material acessível sobre sua vida. Voltaire foi muito espionado, assim como muitas das cartas enviadas e recebidas por Emilie.

O livro poderá surpreender alguns leitores com a atenção que dá aos hábitos e predileções sexuais de Emilie. Um defeito mais sério, explicável apenas por preguiça do autor (improvável) ou por mesquinhez dos editores (bem provável) é a surpreendente e inconveniente inexistência de um índice. Esse é o tipo de abordagem descuidada da qual Voltaire se orgulhava, e que tanto incomodava Emilie.

(Tradução de Mario Zamarian)

Um comentário:

Dileuza B. Azevedo disse...

Muito bom. Descobri Émilie du Châtelet a pouco tempo, como iniciante na vida acadêmica tenho admiração por sua ousadia e perspicácia.

Uma mulher a frente do seu tempo.
Dileuza Braga.
Curitiba - PR