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sexta-feira, 22 de janeiro de 2010

1747) Carta a Nicolau Maquiavel

Como epílogo a meu livro
O Moderno Príncipe (Maquiavel Revisitado)

Carta a Niccolò Machiavelli

Magnífico embaixador florentino, Niccolò Machiavelli,
Permita-me, nesta carta, chamá-lo assim: ambasciatore. Sei que, na república de Florença, seu posto foi o de segretario, ou seja, aquele capaz de guardar os segredos de Estado; sei, também, que lhe foram encomendadas várias missões diplomáticas, algumas junto a outros reinos ou principados da Itália, outras junto a soberanos de outros países, os mesmos reinos responsáveis, em outras épocas, por tantas desgraças que se abateram sobre o seu país, dividido, ocupado e humilhado. Depois de alguns anos de ostracismo, durante os quais você aproveitou para escrever a sua obra mais famosa, Il Príncipe, a signoria di Firenze ainda lhe deu algumas legazioni, mesmo se não mais di Stato. Mas isto me parece o bastante para chamá-lo pelo título legítimo de ambasciatore fiorentino.
Na carta escrita em 10 de dezembro de 1513, tão pronto colocado o ponto final ao De Principatibus, dirigida ao seu amigo Francisco Vettori, embaixador de Florença junto ao papa, em Roma, você lhe relatou como passava os dias no seu sítio de Sant’Andrea-in-Percussina: caçando passarinhos e monitorando o corte de lenha pela manhã, o que lhe dava algum sustento, mas sempre levando um livro consigo: “Dante ou Petrarca, ou um desses poetas menores, Tíbulo, Ovidio; leio aquelas suas amorosas paixões, e aqueles seus amores lembram-me os meus; deleito-me algum tempo nestes pensamentos”. Uma caminhada até a hospedaria o informava sobre as notícias da cidade, ocasião para ouvir muitas coisas e anotar os “vários gostos e fantasias dos homens”. Depois do almoço com a família – com os poucos alimentos “que esta pobre vila e este pequeno patrimônio comportam” –, você retornava à hospedaria, onde passava a tarde jogando cartas com o estalajadeiro, um açougueiro, um moleiro e dois padeiros.
Chegada a noite, porém, você se recolhia ao seu escritório, retirava a roupa do dia, coberta de “barro e lodo”, e vestia roupas “dignas de rei e da corte”, e assim, vestido condignamente, você penetrava “nas antigas cortes dos homens do passado onde, por eles recebido amavelmente, nutro-me daquele alimento que é unicamente meu, para o qual eu nasci; não me envergonho ao falar com eles e perguntar-lhes das razões de suas ações”. Os reis e príncipes do passado lhe respondiam em toda urbanidade e, assim, você passava com eles horas e horas, sem qualquer tédio, esquecido de todas as aflições, sem temer a pobreza ou a morte: “eu me integro inteiramente neles”. Dessas “conversações” é que resultou este seu “opúsculo”, no qual você discutiu de que espécie são os principados, como são adquiridos, como se mantêm e porque são perdidos.
Devo dizer-lhe, Niccolò, que eu também passei muitas noites na sua companhia, relendo o seu “opúsculo” e várias outras obras suas, o que muito me agradou. Se, hoje, as cruentas ações dos príncipes e condottieri do Renascimento, reportadas em suas obras, parecem “definitivamente” afastadas do cenário político moderno, a essência da arte de conquistar e de manter o Estado, tal como magnificamente sintetizada neste seu livro, me parece inteiramente atual. O discurso elaborado por você, em 1513, transpira atualidade, se não totalmente, pelo menos em quatro quintos dos argumentos políticos. Isto se deve, como você sabe, a que a natureza dos homens e suas motivações políticas não mudaram muito desde a sua época, o que ratifica, portanto, a pertinência do seu Príncipe.
Foi isto que me motivou, Niccolò, a realizar, não um pastiche, mas uma adaptação de sua obra imortal aos dias de hoje, posto que ela se mantém aplicável em relação à maior parte dos conceitos empregados na política contemporânea. Aparentemente, os “príncipes” da atualidade não costumam mais mandar envenenar seus adversários – mesmo se alguns serviços especiais possam fazê-lo –, nem comandam pessoalmente execuções com adagas, em plena celebração da missa dominical. Mas creio que, à exceção desses detalhes, o resto do seu racconto se aplica plenamente, senão fielmente.
O resultado dessas noites de diálogo à distância está agora pronto, Niccolò, e aqui lhe apresento este meu Príncipe. Sei que os seus últimos anos foram muito difíceis, caro embaixador, e se por acaso quiser discutir a questão do copyright, estou disposto a fazê-lo.
Não sei exatamente quanto lhe devo, pelos empréstimos não negociados da estrutura mesma do seu pequeno livro e das suas idéias principais, ainda que eu tenha reescrito os argumentos, de maneira a adequá-los a estes tempos. Os nossos são de ações políticas talvez mais pacíficas, mas certamente não mais elevadas moralmente. De uma coisa esteja certo: os direitos morais lhe pertencem inteiramente e, em função disso, estou pronto a lhe render homenagem e manifestar o preito de gratidão intelectual que lhe é inteiramente devido.
Em um argumento central, contudo, nos afastamos um do outro, Niccolò, mas ele me parece essencial, na perspectiva do meu próprio pensamento. Esta sua obra magnífica foi concebida, pensada e está dirigida ao candidato a príncipe em tempos “bárbaros”, de inexistência de instituições e de poderes constituídos e separados; todo o seu discurso se coloca primordialmente do ponto de vista do Estado, que necessitava ser construído e fortalecido. Esta postura era claramente compreensível e aceitável no quadro da Itália de então, destruída pelas suas próprias elites e ocupada por poderes estrangeiros, sem que naquele tempo surgissem príncipes valorosos, dispostos a libertá-la do jugo das potências mais poderosas da Europa.
Tal não parece ser mais o caso hoje em dia, Niccolò, pelo menos não em relação à grande parte dos principados contemporâneos: todos eles já dispõem de Estados fortes, talvez em excesso. Eles drenam os recursos dos seus súditos, ou cidadãos, em proporção mais do que aceitável ou admissível para os padrões econômicos de um capitalismo que se pretende basicamente liberal, e não mais estatizante, como ainda há poucas décadas. O sistema globalizado, que é o nosso, reduziu ainda mais as possibilidades de concentração excessiva das decisões econômicas no Estado, que hoje são deixadas ao próprio mercado.
O meu ponto de vista, Niccolò, é, em conseqüência, não o do Estado, mas sim o da sociedade, do cidadão pagador de impostos, que deseja que a política esteja a serviço, não do próprio Estado, mas essencialmente voltada para a construção de condições que possam apoiar a prosperidade contínua da comunidade e do próprio principado. O mundo mudou significativamente desde a sua época, Niccolò. Depois de Westfália e da Carta das Nações Unidas, processos foram construídos para evitar, ou pelo menos minimizar, o tipo de conduta daqueles príncipes inescrupulosos do seu tempo, que invadiam, ao seu bel-prazer, principados estrangeiros, para deles se apossar e explorá-los de maneira vil, em total arbitrariedade e desrespeito ao direito das gentes.
O problema principal das sociedades organizadas não está mais, portanto, na construção de Estados, e sim na manutenção de regras de conduta entre povos e nações civilizadas. Isto ultrapassa as fronteiras dos Estados, Niccolò, e tem a ver com os direitos dos cidadãos, em primeiro lugar com a democracia política e os direitos humanos. Quer me parecer, Niccolò, que os piores atentados a esses princípios centrais da vida civilizada têm origem, hoje, na ação de príncipes tão violentos como os da sua época. Mas estes têm a protegê-los as cláusulas de Westfália e da citada Carta, sobre a soberania absoluta dos Estados e a não-interferência nos seus assuntos internos. Sei que não é fácil de resolver este problema, Niccolò, pois ainda hoje existem Estados poderosos que pretendem impor sua vontade aos mais fracos. Mas tenho certeza de que a próxima fronteira dos avanços civilizatórios se coloca bem mais no plano dos indivíduos do que no âmbito dos Estados.
Esta é a minha perspectiva política, Niccolò, que difere talvez um pouco da sua, por razões inteiramente compreensíveis. Mas desejo confirmar-lhe, expressamente, que aprendi muito com os seus próprios escritos e com os relatos e análises que li da sua vida e do seu pensamento. Você escreveu ao seu amigo Vettori, com a esperança de que o seu “opúsculo” – na verdade uma das maiores obras do pensamento político moderno, aquela que criou, verdadeiramente, a ciência da política – fosse lido mais amplamente, dizendo-lhe que a obra condensava quinze anos empenhados “no estudo da arte do Estado”. Sua carta terminava dizendo que ninguém deveria duvidar da sua fidelidade no serviço do Estado: “da minha lealdade é testemunho a minha pobreza”.
Estou certo disso, Niccolò, e devo dizer-lhe, pessoalmente, que, depois de muitos anos dedicados ao serviço do Estado e da sociedade, eu também posso afirmar fidelidade a certas idéias, princípios e valores. Acredito, mesmo, que eles se parecem muito com os seus, Niccolò, e é por isso que eu pretendi prestar-lhe uma homenagem por meio deste Príncipe, que se pretende em comunhão espiritual e que se situa inteiramente na tradição intelectual que você inaugurou, caro ambasciatore.

Um seu admirador
Refúgio dos bibliófilos, 11 de setembro de 2007
(494º aniversário da redação d’O Príncipe)

Sumário completo do livro neste link.

4 comentários:

Anônimo disse...

Ótimo.
Marcelo

Paulo Roberto de Almeida disse...

Fine...

Anônimo disse...

Professor, ficou muito criativa essa carta, muito interessante, legal demais!
Eu gostaria de perguntar se é possível identificar na leitura do Príncipe autores que Maquiavel se inspirou para a sua concepção de virtude, de governante virtuoso, uma vez que se diferencia com a concepção de virtude cívico humanista até então disseminada. Ou se realmente é inovadora essa idéia de virtude que ele traz no período e decorre da experiência diplomática dele.

Paulo Roberto de Almeida disse...

Caron.jsk,
Machiavel leu todos os autores da Antiguidade classica (ou seja, gregos e romanos), os medievais e varios seus contemporaneos.
Mas nao creio que tenha se inspirado em muitos deles.ele e' absolutamente original na forma de expressar seu pensamento e muito quanto 'a substancia dos argumentos. Para a pratica, ou seja a forma de controlar os homens e deles se servir, ele se inspirou nos condottieri de sua epoca e nos exemplos retirados da Historia,
PRA