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sábado, 22 de maio de 2010

Gradacoes da democracia - um exercicio de classificacao

Da democracia à ditadura: uma gradação cheia de rupturas
Paulo Roberto de Almeida

Democracias, ma non troppo
O mundo, obviamente, ainda não se ajustou ao “fim da História”, no sentido da convergência da maioria dos países para regimes políticos e para sistemas econômicos próximos das democracias de mercado (capitalistas), como sugeria, tentativamente, Francis Fukuyama. Ele o fará, gradualmente, já que o núcleo central da tese de Fukuyama é basicamente correto – retirando-se a metáfora hegeliana do “fim da História”, resta que o desenvolvimento socioeconômico e a consolidação da prosperidade social, permitidos justamente por uma economia de mercado dinâmica, trazem naturalmente um regime político mais conforme à atomização dos poderes e dos mercados capitalistas (baseados, institucionalmente, em mecanismos de representação, de negociação e de conciliação).
Já tratei dessas questões em outro trabalho e não vou voltar a elas neste momento (ver: Paulo Roberto de Almeida, “O Fim da História, de Fukuyama, vinte anos depois: o que ficou?”, Meridiano 47, n. 114, janeiro 2010, p. 8-17; link: http://sites.google.com/a/mundorama.net/mundorama/biblioteca/meridiano-47/sumariodaedicaono114%E2%80%93janeiro2010/Meridiano_114.pdf?attredirects=0&d=1). Essa transição quase natural para a democracia política é, no entanto, um mundo ideal, para o qual caminharemos muito gradualmente. Ele está baseado em uma adequada educação política dos cidadãos, o que, sabemos, é uma mercadoria ainda relativamente rara nas comunidades existentes neste planeta persistentemente pobre; de fato, as possibilidades de desenvolvimento econômico inclusivo não encontram grandes obstáculos técnicos à sua consecução, mas os políticos e sociais são formidáveis. No mundo real, ainda convivemos com um número lamentavelmente grande de regimes autoritários ou de ditaduras abertas.

Uma evolução positiva
Cabe, entretanto, reconhecer uma evolução positiva, que não deixa de ser um fato histórico: numa linha contínua, que levaria, de um lado, do despotismo mais exacerbado, da tirania mais execrável, até, na outra ponta, a uma democracia perfeita, podemos constatar que o mundo avançou de modo razoável no último meio século. O número, ínfimo, de democracias estáveis no período anterior à Segunda Guerra Mundial, cresceu regularmente desde então, especialmente depois da implosão e virtual desaparecimento do último sistema “escravocrata” da era contemporânea: o socialismo real. Este existiu em diversas modalidades, sendo seu modo mais tirânico o representado pelos totalitarismos stalinista e maoísta, mas também teve Estados policiais perfeitamente “weberianos” – como a ex-Alemanha oriental – e socialismos burocráticos que evoluíram ao longo do tempo (como o modelo “gulash” na Hungria e o nacionalismo estatizante da ex-Iugoslávia).
A evolução nesses países outrora dominados por um partido único – comunista, obviamente – não deixa de ser um fato auspicioso na história da humanidade, embora dois pequenos bastiões do totalitarismo comunista resistam ainda na sua irrelevância anacrônica, ao lado de várias outras tentativas de implantar, senão ditaduras abertas, pelo menos regimes politicamente fechados, caracterizados pelo cerceamento de liberdades elementares em regimes plenamente democráticos. Estes se caracterizam pela liberdade de organização, de expressão e de manifestação, pela representação livre de todos os interesses sociais presentes na sociedade, inclusive a defesa dos direitos das minorias (sociais, étnicas, religiosas, políticas), que é o que distingue verdadeiramente uma democracia plena.

Tentações totalitárias
Regimes e situações não democráticos não desapareceram, como é óbvio para quem observa o mundo como ele é. Alguns países, que tinham conhecido uma saudável evolução democrática – na América Latina, na África e na Ásia, sobretudo – voltaram experimentar desenvolvimentos autoritários. Países de democracia frágil, não consolidada, ou submetidos a conjunturas mais ou menos traumáticas de instabilidade, no seguimento de crises econômicas e sociais, ou de rupturas políticas fora da normalidade – sim, porque existem rupturas políticas dentro da normalidade, como aquela conhecida no Brasil em 2002 – podem reverter o relógio da história e recair em tentações totalitárias (não pela vontade de seus cidadãos, por certo, mas pela manipulação que fazem de massas não educadas líderes tendencialmente autoritários).
O que são esses regimes? São ditaduras “eleitas” – sim existe, como vimos ainda bem perto do Brasil –, populismos personalistas baseados na manipulação propagandística e na “compra” (literalmente) dos mais humildes e despolitizados, cesarismos plebiscitários, enfim, uma variedade sempre criativa de regimes que, no fundo, representam um decréscimo de qualidade da democracia formal – em vários casos apresentando inúmeras deficiências substantivas –, mesmo coexistindo com a manutenção do voto universal (que pode ser, como frequentemente é, manipulado). De resto, apenas o voto não caracteriza um regime democrático, como os exemplos da Albânia nos tempos de Enver Hodja, da URSS nos tempos de Stalin, ou ainda hoje na Cuba dos irmãos Castro, podem amplamente confirmar...

Um exercício de classificação dos regimes
Com base nas considerações anteriores, posso tentar agora oferecer um quadro declinante – sim, reconheço meu viés valorativo – dos regimes políticos, indo dos mais democráticos aos mais autoritários. Não vou tentar explicitar todas as razões de porque coloquei alguns países em uma “janela” e não em outra, inclusive porque este exercício não é exatamente “científico”, correspondendo mais bem às minhas percepções pessoais de como vejo o mundo e a qualidade de seus regimes políticos.

(A) Democracias plenas
Não tem adjetivos, e não tem ameaças aparentes ao seu funcionamento e à sua estabilidade. Países nórdicos, Reino Unido, Canadá, Holanda, Suíça, boa parte dos países europeus, mas não todos.

(B) Democracias com disfuncionalidades leves
São países grandes ou com deformações no modo de funcionamento de seus sistemas políticos, ou imigrações “selvagem” e certo grau de corrupção e de atos delinqüentes, ou ação agressiva de lobbies e grupos de interesse manipuladores. Eu colocaria nessa situação os Estados Unidos, possivelmente o país mais livre do mundo, e um dos mais democráticos, pelo fato de que se trata de um pais enorme, com muitas desigualdades internas e algumas disfunções derivadas de seu excessivo conservadorismo político (ou anacronismo religioso, por exemplo, o que pode levar a absurdos na educação científica e histórica, com fortes pressões criacionistas, para citar apenas um caso). A Itália, uma democracia de baixa qualidade, pela mediocridade de seus políticos e a corrupção disseminada, também entra nessa categoria, assim como diversos outros países europeus, geralmente da franja meridional ou oriental. O Japão é possivelmente um candidato pleno na categoria.

(C) Democracias de baixa qualidade
Corrupção extensiva, manipulações políticas, concentração de poder, baixo grau de representatividade, mau funcionamento das instituições de controle, e uma miríade de outros problemas derivados do baixo grau de educação política da maior parte da população. Estão nesse caso Índia e Brasil, amiúde citados como “duas grandes democracias em países em desenvolvimento”, o que deve ser tomado com certa caução. A Argentina e o México também entram nessa categoria, assim como grande parte dos países latino-americanos e vários asiáticos e a África do Sul.

(D) Regimes autoritários abertos
Uma gama imensa de situações, respondendo aos mais diversos fatores de concentração de poder, em alguns casos por falta de tradição democrática – seria o caso da Rússia, por exemplo –, em outros por regressão populista momentânea (como vem ocorrendo em alguns países da América Latina). Esses países podem tanto evoluir para uma democracia de baixa qualidade, quanto descambar para situações ditatoriais mais ou menos fechadas. É o caso, por exemplo, do Irã, país dotado de uma sociedade civil muito ativa, mas atualmente dominado por uma teocracia regressista que pode colocá-lo, conjunturalmente, na categoria seguinte, uma quase ditadura.

(E) Ditaduras disfarçadas
Conservam certa aparência de democracia, mas consolidaram grupos ou personalidades no poder que manipulam os processos políticos, perseguem os opositores, concentram todo o poder e literalmente desmantelam as instituições em seu benefício exclusivo. O exemplo mais notório é, obviamente, a Venezuela, que muitos confundem com um regime progressista de esquerda, mas que nada mais é senão um triste exemplo do velho fascismo por demais conhecido nos anos 1930. O caudilho destrói todas as instituições, ou as coloca a seu serviço exclusivo.

(F) Regimes autoritários fechados
Sistemas infensos ao voto popular ou com monopólio político de um grupo ou partido no poder: Birmânia (ou Miamar), Síria, Egito, China, grande parte dos países africanos e alguns poucos asiáticos, como alguns saídos do casulo soviético (mas mantidos com os mesmos aparatchiks do velho sistema comunista). Alguns já foram totalitários, mas se tornaram menos “carnívoros”; outros eram democracias de fachada que não resistiram ao líder providencial e candidato a insubstituível.

(G) Países totalitários
Nem é preciso explicar por que: Cuba, Coréia do Norte se enquadram perfeitamente no modelo mais lamentável que o socialismo bolchevique deixou como herança do início do século 20. Devem desaparecer, mas o sofrimento em que incorrem ou incorreram (como a China nos tempos de Mao) seus povos é indizível.

Nessas diferentes categorias, não parece haver problemas classificatórios nos escalões A, B e G, mas os estratos intermediários sempre colocam problemas, já que as dinâmicas políticas, em países não totalmente estruturados politicamente, podem tanto aproximá-los formalmente de modelos passavelmente democráticos (ainda que de baixíssima qualidade), ou, no outro sentido, fazê-los cair nas malhas das ditaduras mais ou menos abertas ou disfarçadas. Outra ainda é a situação de Estados falidos – vários africanos, ou o Haiti, no hemisfério ocidental – que sequer possuem instituições normais de um Estado em funcionamento mínimo, para atender serviços básicos de sua população, retrocedendo para a guerra civil ou vivendo de assistência pública internacional, numa espécie de tutela dos organismos internacionais (com esmolas adicionais introduzidas pelas ONGs).

Por fim, ainda que isto ofenda os “brios democráticos” de muitos brasileiros – sobretudo aqueles que vivem circulando em torno do parlamento ou que vivem de empregos ou favores do governo –, não tenho nenhuma hesitação em classificar o Brasil como uma democracia de baixa qualidade, ainda que seja uma categoria relativamente esdrúxula nos anais da ciência política: o Brasil tem todas as características dessa categoria, e atende todos os requisitos de uma democracia de baixa qualidade, inclusive porque tem muita gente ativíssima na arte de construir um regime fechado ou autoritário à solta por aí; então não há porque promovê-lo, por enquanto, para o grupo das democracias com algumas disfuncionalidades, categoria a que pertencem países que são em geral considerados perfeitamente democráticos.
Sorry, folks, mas minhas exigências democráticas são muito altas, e eu não me contento com pouco...

P.S.: Quem quiser criticar minha abordagem, é obviamente livre de fazê-lo, mas eu apreciaria receber argumentos mais consistentes do que gritos indignados. Ou seja, aceitam-se reclamações justificadas, inclusive dos pequenos déspotas que circulam por aí, fazendo a infelicidade de seus povos...

Paulo Roberto de Almeida
Shanghai, 2145: 22-23 maio 2010, 4 p.

2 comentários:

Vinícius Portella disse...

Paulo,

Victor Turner & Cia tem demandado muito de minha atenção e não tenho como fazer as devidas considerações sobre tua classificação de gradação democrática, num continuum da total ausência de democracia a sua forma plena. Aqui penso que seja oportuno destacar-se o problema da existência de uma democracia plena; até que ponto ou sob que aspectos podemos defender sua existência. É claro que tais critérios têm de ser objetivos e que se exclui, destarte, a democracia como valor (esta, assim considerada, seria mais uma direção do que um "estado de coisas"). No mais, também não vejo como igualar Cuba aos totalitarismos mais sanguinolentos a que o Séc. XX assistiu; penso que um Estado totalitário não se limitaria a restringir a liberdade de Yoani Sanchez, senão a eliminaria a todo custo. Provisoriamente, permito-me uma classificação: Cuba (autoritarismo PET - extremamente fechado; sem, no entanto, atingir os picos do totalitarismo, à semelhança das garrafas plásticas, seu tempo de decomposição é indefinido).
Perdão pelas palavras, foi só para marcar este tópico para eu me "debruçar" sobre ele num momento mais oportuno.

Abraços,

Anônimo disse...

Prezado Paulo de Almeida,

Em primeiro lugar, meus parabéns por este excelente blog. Leio-o há tempos, mas finalmente me digno a comentá-lo.

Concordo em gênero, número e caso com a classificação de regimes políticos defendida pelo senhor e, principalmente, a relativa superioridade – em termos valorativos, é claro – de uma democracia plena, como a do Reino Unido, em relação àquela vigente nos Estados Unidos. Coincidentemente, eu cheguei a essa conclusão há alguns dias, depois de ter acompanhado, do começo ao fim, a recém-concluída eleição nacional no Reino Unido. É surpreendente, para dizer o mínimo, o grau de comprometimento da classe política com seus eleitores e, principalmente, a cultura democrática forjada em décadas (ou séculos) naquela ilhota.

Por tudo isso, recebo com reservas a argumentação (a meu ver, infundada e até certo ponto cretina) de que o sistema distrital (misto ou não, tanto faz) tornaria o processo político algo regionalizado e pouco afeito à discussão de questões de interesse nacional. Esse tipo de afirmação talvez seja verdadeira em um país como o Brasil, em que o valor de um parlamentar é medido pela quantidade de recursos que ele carreia para sua cidade ou região, mas não se aplica a um país como o Reino Unido. E as eleições recentes naquele país o demonstram sobejamente.

Abraços,

Felipe