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sexta-feira, 24 de setembro de 2010

Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica - Paulo R. Almeida

Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica
Paulo Roberto de Almeida
revista Politica Externa, vol. 19, n. 2, set.-out.-nov. 2010

Nota preliminar do autor: O resumo imediatamente seguinte, constante do site da revista Política Externa, foi feito sob responsabilidade da edição da revista, a partir de argumentos efetivamente constantes no artigo, embora sob outra forma. Mais abaixo segue o texto originalmente encaminhado a revista.

Resumo: O presente ensaio de análise crítica deve ser considerado apenas como uma etapa preliminar e parcial do esforço de avaliação objetiva da diplomacia brasileira na era Lula. Dado o grau de politização alcançado por essa diplomacia – que atingiu de modo grave o Itamaraty –, um exame ponderado desses resultados terá provavelmente de esperar tempos mais serenos e menos sujeitos a querelas ideológicas. O julgamento provisório e preliminar contido no artigo se baseia, em parte, na constatação de que os insucessos e limitações da diplomacia de Lula em seus dois mandatos podem ser debitados, antes de tudo, a erros de concepção derivados de uma visão partidária limitada – e equivocada – das relações internacionais, bem como de uma seleção de “parceiros”, ou aliados, decorrente dessa mesma visão amadora do mundo e da região.

Pensamento e ação da diplomacia de Lula: uma visão crítica
Paulo Roberto de Almeida *

Resumo: Análise crítica dos fundamentos conceituais e da agenda diplomática do governo Lula (2003-2010), com exame dos elementos teóricos que sustentaram suas iniciativas, no plano das relações exteriores e da política internacional do Brasil, e das iniciativas práticas que moldaram sua diplomacia nos oito anos de mandato. Ocorreu nítido realce da presença do Brasil no cenário internacional, com aumento geral da interlocução, mas os resultados efetivos para o Brasil não foram exatamente positivos, já que os grandes objetivos da diplomacia de Lula – cadeira permanente no Conselho de Segurança da ONU, reforço e consolidação do Mercosul, como base de um grande espaço econômico sul-americano, e conclusão exitosa das negociações comerciais multilaterais – não foram alcançados, e podem inclusive ter acumulado barreiras mais consistentes. O único sucesso dessa diplomacia parece ter sido a promoção da figura de seu mentor, com grande reforço de sua projeção pessoal, em detrimento do próprio serviço diplomático, relegado a mero executor de iniciativas conduzidas por vezes de modo amadorístico.
Palavras-chave: Brasil. Política Externa. Relações Internacionais. Fundamentos conceituais. Agenda diplomática.

A política externa do Brasil, nos dois mandatos do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (2003-2006 e 2007-2010), pode ser apresentada e discutida em função de dois conjuntos de questões bem delimitadas: de uma parte, analisando-se os elementos conceituais que presidem à sua formulação e legitimação política; de outra parte, sob uma perspectiva de ordem essencialmente prática, pelo exame dos temas e prioridades da agenda diplomática do Brasil enquanto ator emergente na agenda global e, com maior ênfase, no contexto regional da América Latina (da América do Sul em particular).
Esta análise crítica se propõe abordar esses dois conjuntos de questões, num esforço que pode ser considerado como de contribuição ao debate sobre os fundamentos políticos e sobre os procedimentos de tipo operacional usados e mobilizados pela diplomacia brasileira, no governo Lula, com vistas a uma futura avaliação sobre sua adequação à realidade brasileira e regional e sobre sua eficácia para os fins por ele mesmo proclamados.

1. Conceitos do governo Lula em política internacional
A primeira observação que poderia ser feita em relação à diplomacia de Lula é a de que ela deixou de representar a unanimidade aparente das principais correntes da opinião pública nacional para suscitar, ela mesma, divergências e discordâncias quanto às suas prioridades e métodos de ação; ou seja, que ela deixou de ser consensual para tornar-se, de fato, controversa e sujeita a avaliações opostas, por vezes de modo agudo. A expressão “aparente” se justifica, na medida em que algumas orientações da política externa nem sempre gozaram de unanimidade na opinião pública – como o “terceiro-mundismo” alegado por algumas correntes de opinião, ou o suposto alinhamento ao “império”, invocado por outras – mas não se tem registro, nos principais meios de comunicação, de controvérsias tão acirradas quanto as suscitadas por iniciativas e alinhamentos do governo Lula, geralmente em direção de regimes tidos por progressistas na região e fora dela, mas que conformam, no mais das vezes, sistemas autoritários, quando não totalitários, em total contradição com os princípios democráticos e de defesa dos direitos humanos da Constituição.
Quais são, em todo caso, as idéias e pensamentos políticos que orientam a política externa brasileira no governo Lula? O pensamento político da política externa brasileira, no governo Lula, pode ser definido, por ordem de relevância, como um híbrido conceitual entre:
(a) posições e preferências políticas do Partido dos Trabalhadores (com ênfase no próprio presidente Lula e no ex-Secretário Internacional do PT e assessor internacional da Presidência da República);
(b) preferências políticas pessoais dos dirigentes da chancelaria (o Ministro de Estado e seu Secretário Geral no período 2003-2009, Samuel Pinheiro Guimarães, com maior incidência “teórica” deste último, um dos raros diplomatas que escreve para um público mais vasto, com bastante audiência nos círculos acadêmicos);
(c) posturas e tradições diplomáticas estrito senso, ou seja, da chancelaria brasileira, embora as posições desta, tecnicamente fundamentadas, tenham sido temperadas pelas novas concepções e prioridades políticas dos dirigentes políticos; elas vêm em último lugar, mas sempre foram operacionalmente importantes.
Os dois primeiros conjuntos de formuladores e de tomadores de decisões são obviamente mais importantes, no plano das definições políticas, do que o último, que tem um simples papel de assessoramento técnico ou de fundamentação operacional, atuando, portanto, mais no plano dos procedimentos do que no das grandes orientações a serem adotadas (ou já adotadas e em curso de implementação). Em todo caso, o número mais elevado de atores envolvidos nas decisões mais relevantes da política externa brasileira – em relação ao padrão relativamente homogêneo e unificado do passado, quando até os assessores presidenciais eram diplomatas de carreira, assegurando, portanto, uma perfeita unidade de posições entre a presidência e a chancelaria – pode significar maiores riscos para a unidade conceitual e operacional da diplomacia brasileira. Esse risco foi inclusive maior na fase inicial do governo Lula, quando o primeiro chefe da Casa Civil, também líder preeminente do PT, se envolvia em política externa, sem mencionar o antigo chefe da Secretaria de Comunicação de Governo e de Assuntos Estratégicos, ambos afastados em 2005 e 2006, respectivamente, na sequência de crises políticas de relativa gravidade no âmbito do governo.
Cabe examinar, em primeiro lugar, as principais posições teóricas e o universo conceitual dos diferentes atores envolvidos na política externa, já que esses elementos conceituais são relevantes para explicar, mais adiante, as principais escolhas práticas e opções estratégicas da diplomacia brasileira. Essas idéias e posições recuperam todo um estoque de políticas pertencentes ao arco desenvolvimentista e nacionalista, tradicional no pensamento brasileiro de meados do século XX, acrescentadas de várias – mas não todas – contribuições da chamada esquerda brasileira em matéria de relações internacionais. Essas contribuições têm como base o socialismo, embora temperado pelas experiências de derrota e fracasso nas várias tentativas ao longo do século XX, o que obviamente diminuiu o ímpeto para reformas ou orientações econômicas declaradamente estatizantes ou dirigistas. Permaneceram, entretanto, entre seus principais líderes, o apelo e o apoio a supostos regimes de esquerda, na região e fora dela, em primeiro lugar o de Cuba, mas igualmente, e de forma crescente, os novos governos de esquerda radical identificados com a corrente dita “bolivariana” latino-americana, em sua maior parte estimulada pelo líder venezuelano Hugo Chávez, e seguida com diferentes matizes pelos presidentes da Bolívia (Evo Morales) e do Equador (Rafael Correa).
Essas idéias misturam e promovem um conjunto de conceitos muitas vezes contraditórios que pertencem tanto ao arco da esquerda moderada – que o intelectual, e ex-chanceler, mexicano Jorge Castañeda chamou de esquerda “herbívora” – quanto ao universo mental dos “instintos básicos” da esquerda carnívora do passado (à qual se filiam muitos militantes do PT ainda hoje, muito embora eles talvez não tenham muita importância decisória no governo). Como o PT nunca realizou aquilo que os comunistas italianos poderiam chamar de aggiornamento, ou seja, um processo de revisão moderadora de suas posições marxistas do passado – evolução registrada no caso do SPD alemão desde o congresso de Bad Godesberg, em 1959, no Partido Socialista Francês desde o seu controle pelo líder François Mitterrand nos anos 1970, e no Labour britânico sob o comando de Tony Blair, que modelou o New Labour em 1995 –, não se pode estranhar que muitos elementos conceituais do discurso do PT (inclusive em temas de política internacional) se filiem ainda ao velho arsenal teórico dos típicos partidos esquerdistas latino-americanos, quase todos anacrônicos.
Os “instintos básicos” da velha esquerda latino-americana – em grande medida refletida no Foro de São Paulo, um agrupamento de partidos de esquerda estimulados pelo governo de Fidel Castro e patrocinado desde o primeiro momento pelo PT – poderiam ser resumidos nos seguintes elementos: (a) anti-capitalismo (agora moderado, em vista da falta completa de alternativas, nas modernas economias de mercado, num mundo globalizado); (b) rejeição do mundo da alta-finança e das multinacionais (o que não impede posturas pragmáticas, de ‘aliança’ com a chamada burguesia nacional, mais por necessidade política, do que por convicção ideológica); (c) anti-imperialismo instintivo, de velha inspiração leninista (mas agora carente de maiores reflexões sobre o que significa, na verdade, ser anti-imperialista na atualidade, quando o poderio americano se encontra em declínio); (d) um antiamericanismo de certa forma ingênuo, na medida em que a potência imperial estaria supostamente identificada com o apoio a regimes de direita e a ditaduras militares, sem mencionar o antigo embargo a regimes socialistas (entre eles Cuba) e a natural preferência pelo capital, em lugar da classe trabalhadora (mas também simplesmente pelo fato de os EUA se apresentarem como a maior potência capitalista do planeta, ipso facto oposta ao “campo socialista”, que ainda recebia um apoio do princípio dos partidos de esquerda, indiferentes ao totalitarismo desses regimes); (e) estatismo exacerbado, que sempre ficou como uma marca registrada de movimentos ditos de esquerda (e nesse particular não ocorreu qualquer recuo filosófico, apenas uma acomodação temporária ou oportunista).
Essas preferências e orientações correspondem a uma ideologia difusa, não formalizada em grandes obras teóricas ou reflexões mais elaboradas no plano histórico ou conceitual, mas apenas em programas e declarações partidárias, de escassa consistência analítica. No plano diplomático, elas se traduzem numa série de posturas, algumas velhas, outras novas, que caracterizam e definem as preferências atuais da diplomacia brasileira; essas preferências podem ser alinhadas da seguinte forma:
(a) terceiro-mundismo instintivo (já que o Brasil é definido como país em desenvolvimento, e aparentemente condenado a sê-lo);
(b) soberanismo retórico, em grande medida agitado para fins de imagem política;
(c) nacionalismo superficial (mas que encontra eco nos meios militares e em setores de opinião identificados com velhas reações de introversão econômica);
(d) desenvolvimentismo substitutivo, recuperado numa agenda típica do passado do Brasil, com tarefas industrializantes típicas do velho protecionismo introvertido em matéria econômica;
(e) anti-hegemonismo infantil, pois que justificando algumas “alianças estratégicas” com parceiros que não são exatamente modelos acabados de democracias ou de regimes comprometidos com uma gestão econômica de mercado;
(f) ativismo em políticas setoriais, decorrente do instinto estatizante acima referido, o que se traduz em oposição de princípio a todo e qualquer avanço multilateral que implique regulação restritiva do ponto de vista das políticas públicas e setoriais, ou a regulação permissiva do ponto de vista das empresas e dos particulares em geral;
(g) apoio irrefletido a movimentos ditos progressistas, o que inclui governos, partidos, ONGs, com uma nítida prevalência de objetivos sociais ou políticos sobre metas econômicas ou comerciais, como revelado no caso de OGMs (organismos geneticamente modificados), agricultura familiar, subsídios a programas sociais, mecanismos de correção de “assimetrias” sociais e regionais, etc.;
(h) limitação da cooperação bilateral basicamente a países do Sul, ou cooperação com o Norte apenas em temas estritamente definidos.
No plano da diplomacia prática, essas posturas redundaram em diversas iniciativas, aliás, múltiplas, num hiper-ativismo que parece ter sido expressamente conduzida para superar o registro numérico da diplomacia presidencial anterior (do governo Fernando Henrique Cardoso), aliás criticada como parte da “herança maldita” de suposta submissão a interesses externos, falta de soberania e de defesa dos interesses nacionais. As tentativas reiteradas de classificar ações e posturas do governo anterior como “anti-nacionais” ou como “submissas ao império” ultrapassam a simples luta política e revelam, talvez, desvios de caráter, mais do que preocupações legítimas ou fundamentadas no plano dos princípios políticos. Exemplos abundam, entre elas a ridícula reiteração de um simples exemplo de conformidade a controles de segurança como representando “renúncia de soberania”.
Três grandes temas sempre estiveram no topo das prioridades da agenda externa do governo Lula:
(a) reforço e expansão do Mercosul, servindo como base da criação de uma zona de livre comércio na América do Sul, a partir de esquemas de coordenação política nos quais a liderança brasileira ficasse realçada naturalmente;
(b) busca de uma cadeira no Conselho de Segurança da ONU, vista como uma das grandes “aspirações nacionais” e objetivo maior da diplomacia multilateral do Brasil, em função da qual foi montada a operação Haiti;
(c) busca de acordos comerciais no âmbito regional ou multilateral, com a rejeição concomitante de acordos intrusivos com as grandes potências comerciais (ou limitando-os a meros acordos de acesso a mercados).
Estas eram e continuam a ser as três grandes prioridades diplomáticas do governo Lula, expressamente citadas no discurso inaugural de 1o. de janeiro de 2003, e reafirmadas ainda no discurso inicial da segunda administração Lula, em 2007. Mas outras grandes questões também figuram na agenda diplomática da administração Lula; na continuidade da listagem inicial, elas são relacionadas a seguir:
(d) dinamização e estimulo à integração regional, com escassos resultados práticos, mas ainda assim diversas iniciativas políticas e sociais (à falta de resultados tangíveis no terreno econômico e comercial);
(e) alianças seletivas no contexto da diplomacia Sul-Sul, ditas estratégicas: IBAS, cúpulas interregionais com África e países árabes, mas também o grupo Bric (Rússia, Índia e China);
(f) protagonismo mundial, para reforçar as pretensões ao Conselho de Segurança da ONU e para criar uma nova relação de forças no plano mundial;
(g) reforma das instituições econômicas internacionais, embora a agenda aqui seja pouco clara, além de propostas mudancistas que estão quase no limite dos slogans do Fórum Social Mundial;
(h) preservação da agenda ambiental anterior, que de fato beneficia os maiores poluidores do mundo em desenvolvimento, e tentativa de transferência dos custos da mitigação brasileira para os países mais desenvolvidos e as agências internacionais (com uma mudança na direção de assunção de metas quantificadas no período imediatamente anterior à conferência de Copenhagen, em dezembro de 2009);
(i) iniciativas de combate à fome e de redução da pobreza, com mobilização de apoios internacionais, duplicação de esforços já mantidos pelas agências multilaterais e definição de mecanismos inovadores de financiamento (mesmo em contradição com os interesses do Brasil, pois que tendentes, num primeiro momento, a fórmulas equivalentes à da Tobin Tax ou taxação de transações específicas).
Todos esses elementos conceituais e idéias políticas impulsionam um número relativamente elevado de prioridades, cuja implementação requer a mobilização de muitos instrumentos típicos da diplomacia tradicional e outras “ferramentas” políticas. Nesse processo de diplomacia hiperativa, são mobilizados diversos tipos de atores, não apenas os diplomatas profissionais e assessores presidenciais, mas também outros representantes ministeriais. Existiriam, ademais: interlocutores informais (partidários, por exemplo); empresários; líderes da opinião pública; representantes de ONGs; talvez até mesmo personagens não identificados (já que há uma agenda político-partidária que não se exerce pelos canais institucionais normais, mas que podem envolver mecanismos não revelados, como pode estar ocorrendo, por exemplo, mediante a Secretaria de Assuntos Internacionais do PT e seus vínculos no Foro de São Paulo, um instrumento que serve sobretudo aos interesses de Cuba; ou ainda com representantes da Via Campesina e outros grupos obscuros).
A multiplicação de canais e de interlocutores pode fragilizar a unidade de comando e execução da política externa brasileira, quando já não ocorre o mesmo com sua própria concepção e formulação, partilhada por vários setores do próprio governo. Múltiplos canais de formulação e execução da política externa representam um convite à dispersão de ações, quando não à emissão de sinais contraditórios no plano externo, deixando confusos os interlocutores oficiais. O resultado pode ser perda de credibilidade e superposição de ações, com grande potencial de geração de conflitos internos e até externos.
Por fim, o hiperativismo presidencial, exageradamente colocado na linha de frente de vários dossiês negociais, sobretudo no âmbito regional, torna difícil a gestão dos diversos itens da agenda e, o que é mais grave, a sua administração em escalas gradativas de responsabilidade (pois que engajando já em primeira instância a palavra presidencial, da qual é difícil se desviar em fases ulteriores). Decisões diplomáticas de sérias repercussões nacionais podem, assim, estar sendo tomadas sem o necessário trabalho de estudo e reflexão prévios, baseadas puramente num impulso do momento ou sob pressão de outros dirigentes nacionais. Isso provavelmente já ocorreu no âmbito da integração regional, ou de projetos de conexão física.

2. A agenda diplomática do Brasil nos dois governos do presidente Lula
Quais foram as prioridades externas do Brasil no governo Lula e que meios operacionais foram mobilizados para alcançá-las? Caberia, talvez, fazer uma primeira distinção, importante, entre o que seria, ou que deveria ser, prioritário para o Brasil, enquanto nação e enquanto economia, na agenda internacional, e o que parece ter sido prioritário para o governo Lula na frente externa, inclusive, aparentemente, para fins de prestígio pessoal dos dirigentes e dos agentes diplomáticos, em contraposição ao que poderia representar uma atuação diplomática puramente objetiva, em função de uma agenda de prioridades nacionais.
Quais seriam, portanto, as prioridades nacionais ‘ideais” do Brasil, em termos de atuação externa, em função do cenário internacional? Uma listagem não exaustiva indicaria estes temas:
(a) a manutenção de um ambiente aberto aos negócios (comércio, investimentos, finanças e tecnologia) e aos intercâmbios de todo o tipo, o que torna a política econômica externa especialmente relevante para fins de diplomacia executiva (com destaque para as negociações comerciais multilaterais e os acordos regionais ou mesmo bilaterais);
(b) a intensificação dos laços de todo o tipo com os vizinhos regionais, com base numa agenda clara de abertura econômica recíproca e de liberalização comercial, ao lado dos projetos de integração física e da cooperação educacional e tecnológica;
(c) a redução dos riscos ambientais, energéticos ou militares para o desenvolvimento dos negócios, o que compreende uma agenda de segurança abrangente, compatível com os riscos percebidos;
(d) a intensificação dos esforços de cooperação externa, em especial com parceiros mais avançados, para a superação de um dos mais importantes gargalos no processo desenvolvimento nacional, que é a insuficiente capacitação educacional e tecnológica da população brasileira, o que implica projetos focados nos modelos tidos como de excelência no plano mundial.
Quais foram, em contrapartida, os temas privilegiados pelo governo Lula em sua agenda externa? A lista é enorme, indicando, em primeiro lugar, um hiperativismo diplomático construído bem mais em função da busca de protagonismo mundial para o governo Lula do que em conexão com um esforço ponderado de reflexão sobre as prioridades nacionais no plano mais geral do desenvolvimento nacional ou no âmbito mais restrito das relações exteriores. Cabe registrar, em segundo lugar, que as iniciativas foram se deslocando do entorno regional, onde os resultados foram de qualquer modo limitados, para o ambiente internacional de forma geral, com a ampliação das viagens e visitas presidenciais até em terrenos nos quais o grau de preparação técnica da diplomacia brasileira é reconhecidamente limitado (como o Oriente Médio, por exemplo), o que não eximiu o chefe supremo da diplomacia de exercícios pacificadores dotados de certa ambição retórica.
O objetivo da conquista de um assento permanente para o Brasil no CSNU parece ter tomado a dianteira desde muito cedo, motivando ações as mais diversas em múltiplas frentes de atuação; a conquista de oportunidades comerciais, no sentido restrito de acesso a mercados para os produtos brasileiros de exportação, ficou restrita, praticamente, ao âmbito multilateral, a rodada Doha da OMC, já que o governo se empenhou em sabotar as negociações da Alca (o projeto americano de uma área de livre comércio das Américas). Em função desse objetivo, o Brasil renunciou unilateralmente a débitos bilaterais, em modalidades que confrontam antigas resoluções do Senado Federal quanto aos limites do Executivo na negociação de financiamentos externos concedidos pelo Brasil; nunca se fez um balanço estritamente financeiro de todos os custos diretos e indiretos incorridos nessa busca obsessiva por apoios externos, sendo que vários write-offs incorreram, provavelmente, em vícios de procedimento, quando não em atos ilegais no plano das operações financeiras externas. No plano estritamente diplomático, duas iniciativas merecem destaques: a abertura de embaixadas plenas em diversos postos de escassa relevância substantiva para a política externa nacional, com novos custos diretos e indiretos a serem computados nos anos à frente, e a conformação do G4 – com Alemanha, Japão e Índia, o que pode ter “amarrado” o Brasil a países que enfrentam notórias resistências de membros permanentes do CSNU.
A integração regional foi perseguida, de fato, com muito ardor, mas aparentemente como um objetivo em si mesmo, sem medir os custos relativos das modalidades adotadas desde 2003 nessa frente negociadora. Os capítulos econômicos e comerciais, que constituem o núcleo básico do Mercosul, foram praticamente deixados de lado, tomando prioridade os aspectos sociais ou políticos. Mais grave ainda: a administração Lula foi leniente, quando não conivente, com diversas medidas de defesa comercial adotadas unilateralmente pela Argentina, em detrimento não apenas dos interesses comerciais de exportadores brasileiros, mas também de dispositivos pertinentes dos acordos existentes no Mercosul, quando não não em total contradição com as regras multilaterais contraídas no âmbito do GATT-OMC. Na prática, o Mercosul mais recuou do que avançou no período, independentemente de altas e baixas nos fluxos comerciais intra-bloco, que mais dependem da dinâmica dos agentes privados e do comportamento das economias, como um todo, do que de disposições e medidas governamentais. Um concepção enviesada, e totalmente irrealista, de supostas “assimetrias” no bloco levou o governo Lula a propor e financiar majoritariamente um “fundo” de dimensões extremamente modestas para o financiamento de obras nos países menores, duplicando em grande medida o trabalhos dos bancos multilaterais existentes, sem contar com a séria análise técnica dos projetos conduzida nessas entidades de fomento.
Não se pode dizer, por outro lado, que a busca de resultados concretos no terreno mais limitado da integração física sul-americana – tal como delimitado no primeiro encontro de chefes de Estado e de governos sul-americanos, realizado a convite do presidente Fernando Henrique Cardoso em Brasília, em 2000, do qual resultou a criação da IIRSA, Iniciativa de Integração Regional Sul-Americana – tenha avançado concretamente, já que não se tem registro de grandes obras nos terrenos das comunicações, infra-estrutura ou energia, ademais daquelas, limitadas, de interesse específico do Brasil (ou de suas grandes companhias de serviços) e financiadas com recursos nacionais (BNDES, geralmente). Aliás, em matéria de financiamentos a projetos, o governo Lula resolveu aderir a uma das mais infelizes iniciativas do presidente Hugo Chávez, tendente a criar um “banco da América do Sul”, um bancosur que o líder venezuelano logo pretendeu estender a outras regiões – inclusive para cumprir funções análogas às de um “fundo monetário regional”, além de entidade de fomento – e que realiza a proeza de duplicar esforços e mandatos de outros organismos existentes nessa área – como o BID, a CAF, o próprio BIRD – sem possuir a qualidade técnica de seleção de projetos destes e sem condições de exercer um controle estrito quanto ao mérito do financiamento com base em contrapartidas e seguimento especializado dos financiamentos empreendidos. Para alívio geral e preservação da racionalidade financeira no continente, a iniciativa não chegou a sair do papel, mas constitui mais uma das iniciativas mal-concebidas e mal-planejadas a que aderiu o governo Lula (junto com o natimorto projeto de integração energética da Venezuela ao Cone Sul, de custos inacreditáveis e resultados imprevisíveis).
A busca de “aliados estratégicos” entre parceiros do Sul, definida de modo amplo para abrigar também a Rússia, condicionou toda uma linha de atuação diplomática que demandou enormes investimentos sem uma avaliação realista dos resultados prováveis. Tanto no plano conceitual, quanto no terreno prático, tratou-se de uma seleção preventiva, e quase unilateral, de parceiros, para se buscar, em seguida, uma agenda concreta para preencher a moldura assim criada. O critério básico aqui seguido parece ter sido a condição de “ator não-hegemônico” do parceiro em questão, independentemente da amplitude da interface diplomática, ou da coincidência de posições nos terrenos dos valores e princípios que fundamentam, constitucionalmente, as relações internacionais do Brasil. Esses princípios, aliás, foram colocados diversas vezes em testes severos, como nos casos do programa nuclear do Irã ou da crise política em Honduras, onde a regra constitucional da não-intervenção nos assuntos internos de outros Estados foi seriamente abalada.
Com a possível exceção dos grandes temas da segurança internacional – ainda assim com o ativo envolvimento do Brasil nas questões multilaterais da área nuclear e de armas de destruição em massa, de modo geral, bem como por ocasião da presença ocasional no CSNU –, a diplomacia do Brasil tem buscado o envolvimento e maior presença em praticamente todos os foros abertos à sua participação. Provavelmente por orientação presidencial, o Brasil também buscou a liderança política em diversos órgãos do multilateralismo contemporâneo – BID, OMC, OMPI, OACI, UIT – ademais do já referido protagonismo regional, no âmbito do qual ele se ofereceu para “secretariar” a Casa, o foro de coordenação sul-americana que acabou sendo substituído pela Unasul. O ex-presidente argentino Nestor Kirchner chegou a dizer uma vez, em tom de galhofa, que o Brasil buscava inclusive a liderança do Vaticano, quando da escolha do novo papa, na sucessão de Karol Wojtilla.
Mesmo sem uma presença direta nas instâncias diretivas dessas instituições, o grau de envolvimento brasileiro aumentou e – por força da candidatura ao CSNU – as obrigações financeiras com todas elas estiveram, pela primeira vez em muitos anos, totalmente regularizadas. Mais especificamente, ocorreu uma seleção de foros para a atuação prioritária da diplomacia brasileira, bem mais identificados com os chamados interesses do Sul, do que com os da “interdependência capitalista”. Foram, assim, revitalizados os laços com mecanismos regionais ou de países em desenvolvimento e, de certa forma, rechaçados aqueles que tinham a ver mais diretamente com o “universo capitalista”, como a OCDE.
Mais ativamente ainda, a diplomacia brasileira forjou foros próprios de atuação, a começar do IBAS, das parcerias estratégicas, das reuniões de cúpula com os países africanos e árabes, ademais de um intenso programa de viagens e visitas presidenciais em todos as latitudes e longitudes, mas em especial no Sul e com grande ênfase na África. No contexto regional, os esforços foram ainda duplicados, ainda que os aspectos comerciais e econômicos, de modo geral, da integração regional não tenham conhecido progressos notáveis (talvez até mesmo estagnação, quando não retrocesso). O Mercosul foi “oferecido” a novos parceiros regionais: Chile, Bolívia, Equador e, sobretudo, Venezuela, com uma perigosa diluição dos compromissos jurídicos e das regras pertinentes à união aduaneira. Foram especialmente valorizados novos aspectos da integração regional, como os “políticos” – com a constituição de um Parlamento do Mercosul, superdimensionado – e “sociais” – igualmente com comissões e grupos de trabalho envolvendo todo tipo de interlocutores nessa esfera.
O objetivo mais ambicioso, quiçá, foi a Casa, oportunamente substituída pela Unasul, num formato talvez não desejado inteiramente pelo Brasil, que teve de ceder espaços de administração e controle para outros parceiros (secretariado instalado em Quito, por exemplo). Também de iniciativa brasileira foi o Conselho de Defesa Sul-Americano, no âmbito da Unasul, que, como a iniciativa mais abrangente da Cúpula da América Latina e do Caribe (Calc), carrega um leve sabor anti-hegemônico (o que foi, aliás, expressamente reconhecido pelos organizadores brasileiros, que se orgulharam de que, em quase 200 anos de história independente, era a primeira vez que se fazia uma reunião de cúpula sem a presença de “potências tutelares”). A despeito dos esforços engajados na criação da Unasul e do Conselho de Defesa não se pode dizer que sua atuação tenha sido de alguma forma relevante no tratamento do tema mais grave de segurança regional: o de grupos armados de narco-traficantes, em especial da FARC, que violam a soberania dos países, perpetram ações criminosas na Colômbia e nos países vizinhos, contribuem para reforçar o perfil de grandes exportadores de drogas que vem caracterizando esses vizinhos e cujos resultados práticos são os de contaminar de modo crescente a sociedade brasileira (do lado das drogas e da lavagem de dinheiro criminoso) e de envolver ainda mais o Brasil com o comércio mundial de produtos ilegais.
A reforma dos organismos internacionais e, em especial, das instituições financeiras internacionais já fazia parte do programa do PT desde praticamente a sua origem, não sendo de se estranhar que o tema reaparecesse de maneira mais enfática na presente fase da diplomacia brasileira. Além da demanda, porém, não existe uma visão muito clara sobre como devem ser feitas essas reformas, a não ser pelo desejo genérico de que a presença e a capacidade decisória dos países em desenvolvimento, em especial a do Brasil, sejam reforçadas. Tendo em vista que o processo é necessariamente lento, a despeito dos esforços conduzidos, havendo a consciência de que dificilmente se conseguirá romper o monopólio das grandes potências nessas instâncias, a diplomacia do Brasil tem-se voltado para a constituição de instâncias paralelas, ou informais, que possam trazer-lhe presença internacional, sem ter de passar pelos mecanismos de controle dos países mais ricos.
Em consequência, o formato dos grupos tem sido realçado e privilegiado, desde o G3 (IBAS), até o tradicional G77, passando pelo G4 (reforma do CSNU, com os outros três candidatos assumidos), pelo G20 comercial (que o Brasil liderou desde o início), pelo G20 financeiro (que assumiu maior importância com a crise financeira), pela eventual transformação do G8 em G13 (com a incorporação do Outreach-5) e por uma miríade de outros grupos mais ou menos informais, como o Bric. Alguns são discretamente abandonados – como o foro iberoamericano, em função, justamente, da presença das ex-metrópoles coloniais – enquanto outros são revitalizados e reforçados, como o Grupo do Rio – que estava praticamente desativado, mas que foi “renascido” para acolher Cuba numa instância de diálogo latino-americana (já que seria difícil incorporá-la diretamente ao Mercosul; aliás, seu ingresso naquele grupo foi apresentado como um grande sucesso diplomático).
De forma geral, todos esses grupos e instâncias de coordenação e de atuação em determinados foros – ONU, OMC, agências especializadas – visam a potencializar a ação da diplomacia brasileira, embora os fins explícitos e proclamados sejam o reforço da solidariedade dos países em desenvolvimento para os objetivos tradicionais desses países: comércio, cooperação, transferência de tecnologia, reforma das instituições, etc. Esse ativismo brasileiro, por vezes, pode criar focos de fricção ou de resistência por parte de alguns parceiros, que se sentem melindrados com a desenvoltura diplomática do Brasil, ou até com o que eles possam classificar como oportunismo e protagonismo excessivos. Tal ocorreu, por exemplo, com o impulso para o exercício de uma liderança regional brasileira, mal recebida em vários países da região sul-americana. Outros exercícios improvisados de liderança mundial – em especial no âmbito do Oriente Médio, com as questões palestina e do programa nuclear do Irã – confirmaram essa vocação para os holofotes, com muita retórica associada, mas pouca substância negociadora capaz de sustentar os esforços feitos.
Os objetivos brasileiros em cada uma das várias iniciativas diplomáticas podem ser específicos aos foros e temas envolvidos na agenda de cada uma dessas instâncias, mas o objetivo geral parece ser um só, e é de natureza essencialmente política: realçar a presença do Brasil, provavelmente a do próprio presidente, no plano internacional, como parte de um projeto de colocar o Brasil no círculo restrito das grandes potências mundiais (senão no terreno militar ou econômico, pelo menos nos planos político e diplomático). Em torno desse projeto forma mobilizados grandes recursos materiais e humanos e é em função dele que está construída a agenda de viagens presidenciais. Os temas envolvidos em cada uma dessas iniciativas recebem um tratamento superficial no campo diplomático – já que várias iniciativas carecem de estudos aprofundados para o seu adequado embasamento técnico, e podem, inclusive, representar perdas econômicas para o Brasil – mas são sistematicamente apresentados como consistentes com o interesse nacional brasileiro.
O problema da integração energética na América do Sul e a questão mais geral da cooperação Sul-Sul representam dois exemplos de investimentos políticos carentes de análise mais profundas no plano técnico. A despeito do imenso potencial existente e da diversidade de fontes em matéria de energia no continente sul-americano, parece evidente que o neonacionalismo energético e a orientação estatizante em cursos nos diversos países – inclusive no Brasil – não deve favorecer um processo real de integração nos próximos anos: a constante mudança de regras e a utilização da matriz energética para outros fins que seus objetivos precípuos num terreno puramente econômico, estão de fato afastando as possibilidades da integração para um horizonte distante. Quanto à cooperação Sul-Sul, registre-se a multiplicação de convênios e protocolos de cooperação com todos os parceiros possíveis, num esforço bem mais quantitativo do que seletivo na promoção de projetos viáveis: neste terreno, como em vários outros, a intenção parece ser a de formular uma agenda de viagens e depois redigir alguns atos, quaisquer atos, para serem assinados na ocasião. Em outros termos: monta-se a moldura e depois vai se buscar o que colocar em seu interior.

3. As roupas novas da diplomacia brasileira
Da exposição precedente, em suas duas partes – ou seja, tanto nos elementos conceituais, como na agenda prática – se pode concluir que o governo Lula foi bem mais propositivo no terreno das intenções diplomáticas do que ele conseguiu realizar, para todos os efeitos concretos, como resultados efetivos para o Brasil. Sem dúvida o Brasil tornou-se um ator mais relevante no plano internacional, com maior projeção de seus interesses nos cenários externos, mas essa presença ampliada também pode ser atribuída à continuidade de sua estabilidade econômica interna e à atratividade crescente aos capitais internacionais, dois resultados cujos fundamentos já tinham sido colocados no governo anterior, do presidente Fernando Henrique Cardoso. Com efeito, os elementos fundamentais da situação econômica brasileira – cujo sucesso nunca foi bem acolhido pela esquerda brasileira, passavelmente esquizofrênica em matéria econômica – tinham sido estabelecidos no início do segundo governo FHC, em 1999: sistema de metas de inflação, regime de flutuação cambial, superávits primários na gestão do orçamento nacional e lei de responsabilidade fiscal, que impede os políticos executivos de gastar de forma irresponsável e de deixar a dívida para os sucessores (lei que o PT, quando na oposição, tentou contestar no Supremo Tribunal Federal).
Foi precisamente em função da boa gestão econômica – que a esquerda do PT sempre chamou desdenhosamente de ‘neoliberal’ – que o governo Lula encontrou boa receptividade entre os governos do G7-G8. Seu governo dispõe, obviamente, de grandes recursos publicitários e pode contar, em parte, com o desconhecimento ou alheamento do grande público – para nada dizer dos próprios jornalistas – em relação aos itens da agenda externa, dado que é notório que o Brasil carece de centros de pesquisa e de especialistas em temas internacionais. O governo conta, assim, com grande latitude de ação, mas também com o respeito que a diplomacia profissional do Itamaraty granjeou ao longo do tempo. Mais importante, talvez, para seus objetivos imediatos e propagandísticos, ele conta com um grande capital de simpatia adquirida ou já ganha por antecipação, de muitos atores sociais, seduzidos pelo aparente progressismo de sua política externa, que atua como uma espécie de compensação prática para os aspectos mais conservadores de sua política econômica.
Existem poucas avaliações independentes e poucos estudos fiáveis, inclusive envolvendo o lado do custo-benefício, da maior parte das iniciativas diplomáticas do governo Lula. Alguns jornalistas bem informados, sobretudo na área econômica, exibem algum espírito crítico, mas eles são relativamente raros. Apenas o jornal O Estado de São Paulo tem exercido sua visão crítica sobre a diplomacia brasileira, acompanhado de maneira muito tênue pela Folha de São Paulo e O Globo. Não há perspectiva de que esse panorama pouco crítico – inclusive de escassa reflexão mais aprofundada – venha a mudar no horizonte previsível, o que permite supor a continuidade da concepção segundo a qual foi o governo Lula quem “colocou” o Brasil no mundo, não a de que este conquistou a posição de destaque de que goza hoje por mérito próprio, do país e de seus empresários, em função das características de sua economia estabilizada e da dimensão de seus mercados internos de bens e serviços – inclusive no terreno bancário do financiamento externo do consumo e no de grandes retornos para os investidores de curto prazo em suas bolsas e mercado de títulos governamentais – bem mais do que como resultado das grandes linhas da sua diplomacia ou de aspectos específicos da política externa brasileira.
No plano institucional, o Itamaraty foi de certa forma enquadrado pela diplomacia partidária e teve de cumprir missões, em especial na região, em relação às quais uma análise técnica e profissional, conduzida em bases puramente internas, teria provavelmente recomendado outro curso de ação, sobretudo no que se refere aos países ditos “bolivarianos”. O perfil estritamente profissional, sempre discreto, dos diplomatas de carreira contornou algumas situações mais constrangedoras, que uma atuação partidária amadora criou para a diplomacia nacional, não sem algum desgaste público, como revelado em diversos episódios comentados na imprensa (como o de Honduras, por exemplo). O terreno no qual o Brasil mais poderia ter exercido um papel de estabilizador e de garantidor da paz, da democracia, de promoção dos direitos humanos sempre foi, não é necessário lembrar, o da América do Sul, onde sua diplomacia tem condições de exercer algum papel de relevo, em função da longa presença e da capacidade interna, do Itamaraty, de “digerir” e de encontrar terrenos de entendimento e de conciliação compatíveis com o tamanho e a importância relativos do País. Contraditoriamente, porém, foi também o terreno no qual mais se fez sentir sua ausência em iniciativas apaziguadoras – em face de notórios problemas existentes ou criados por aliados inconvenientes – ao mesmo tempo em que a diplomacia de Lula se lançava em aventuras mundiais de desfechos imprevisíveis ou antecipadamente inócuos. Não seria necessário lembrar aqui esses muitos casos – em especial o conflito Argentina-Uruguai em torno das “papeleras”, bem como as tensões e fricções entre a Colômbia e seus vizinhos, a respeito do problema do narco-terrorismo – para comprovar que a reivindicação explícita ou implícita à liderança careceu de bases regionais compatíveis e condizentes com as pretensões mundiais do governo Lula.
Independentemente, porém, das ações governamentais, parece claro que o Brasil tem emergido como grande ator regional e, quiçá, internacional, em função da dimensão própria de sua economia, da estabilidade macroeconômica alcançada desde o Plano Real e a partir dos regimes de metas de inflação e de flutuação cambial, da sua capacidade decorrente de atrair capitais de risco e da sua posição naturalmente protagônica no quadro da América do Sul, como maior mercado regional. No plano da mídia mundial, o Brasil tem de fato ocupado maiores espaços em função do ativismo de sua diplomacia e da superexposição de presidente Lula. Cabe a esse respeito indagar se esses esforços vêm sendo direcionados para os temas e objetivos mais adequados aos interesses permanentes do Brasil.
Ao fim e ao cabo, não obstante o sucesso de imagem obtido pela diplomacia do governo Lula – aliás construído expressamente para essa finalidade específica – um julgamento mais adequado de sua diplomacia terá de esperar um debate ponderado entre observadores imparciais e independentes, além e acima dos interesses conjunturalmente relevantes ligados aos enfrentamentos políticos do período eleitoral. No que concerne à visão crítica exercida neste ensaio de avaliação, o julgamento provisório e preliminar que se poderia oferecer vem baseado nestas constatações: os insucessos e limitações da diplomacia de Lula em seus dois mandatos podem ser debitados, antes de tudo, a erros de concepção derivados de uma visão partidária limitada – e equivocada – das relações internacionais, bem como de uma seleção de “parceiros”, ou aliados, decorrente dessa mesma visão amadora do mundo e da região, atando o Itamaraty a uma cadeia de compromissos e de iniciativas que destoaram de suas linhas tradicionais de atuação; no terreno da prática, em segundo lugar, a multiplicação de iniciativas, amplamente centradas na figura presidencial, também careceu de um exame técnico mais ponderado, por parte da diplomacia profissional, quanto às condições de seu sucesso, o que também contribuiu para o registro limitado de resultados efetivos, à exceção da própria exposição da figura presidencial, como já mencionado.
Em suma, o “pensamento” e a “ação” da diplomacia de Lula são compatíveis e coincidentes com a sua figura e com as concepções e métodos de atuação de seu partido; ambos levam as marcas da personalidade presidencial e do universo “mental” – se é o caso de empregar a expressão – do movimento político que ele representa; a ambos devem ser debitados os resultados diplomáticos dos oito anos do mandato de Lula. Dado o grau de politização alcançado por essa diplomacia – o que atingiu de modo grave o Itamaraty – um exame ponderado desses resultados terá provavelmente de esperar tempos mais serenos e menos sujeitos a querelas ideológicas. O presente ensaio de análise crítica deve, portanto, ser considerado apenas como uma etapa preliminar e parcial desse esforço de avaliação objetiva da diplomacia brasileira na era Lula.

Theory and practice of Lula’s diplomacy: a critical assessment
Paulo Roberto de Almeida *
Abstract: Critical evaluation of the conceptual foundations and of the diplomatic agenda of Lula’s government (2003-2010), with an examination of the theoretical elements that support its initiatives, both in Brazil’s external relations and international policy, as well as of the practical measures that marked its eight years administration. Brazil grew significantly in world scenarios, with an enhanced posture, albeit not followed by concrete results. Lula’s three main diplomatic priorities – to gain a permanent membership at UN Security Council, strengthening and consolidating Mercosur and the regional economic integration in South America, and successfully concluding multilateral trade negotiations – were not achieved, and may be not achievable in the near future. There was one single success: Lula’s personal promotion as world leader, at the expense of professional diplomacy.

Key-words: Brazil. Foreign Policy. International Relations. Conceptual foundations. Diplomatic agenda.

* Paulo Roberto de Almeida é doutor em Ciências Sociais pela Universidade de Bruxelas (1984), Mestre em Planejamento Econômico pela Universidade de Antuérpia (1977) e diplomata de carreira desde 1977; é autor de numerosos livros e ensaios sobre as relações internacionais e a política externa do Brasil (www.pralmeida.org).

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