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domingo, 20 de novembro de 2011

Associacionismo: novo curso de Paulo Roberto de Almeida

Como no caso do post anterior, este também se origina de uma entrevista-gravada para curso do Instituto Legislativo do Senado Federal para a formação de quadros. Ou melhor: o texto foi preparado antecipadamente para que eu desse essa entrevista, sem que eu o lesse exatamente como foi escrito.
Aqui está a ficha do trabalho: 

1198. “Associacionismo”, Brasília, 27 jan. 2004, 6 p. Respostas a questões colocadas no quadro do programa Conexão Mundo – ILB, TV do Senado Federal, Programa 2: Conceitos Fundamentais. Para resumo e exposição oral. Gravação diferiu substancialmente do texto preparado. Vídeo disponível em: http://www.senado.gov.br/sf/senado/ilb/medias/Videos_Educacionais/Conexao_Mundo/conexao03c.wmv

Associacionismo

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004
(pralmeida@mac.com; www.pralmeida.org)

1) O que é o associacionismo internacional?
O associacionismo é a constituição de entidades intergovernamentais ou mesmo organizações privadas, mas de cunho internacional, ou regional, que se destinam a resolver determinados problemas técnicos ou facilitar o trânsito e o nível de bem estar das pessoas. É um movimento relativamente recente na história da humanidade, já que surgiiu em meados do século 19, para encaminhar determinados problemas práticos, como o trânsito e as comunicações entre países vizinhos.
De fato, o fenômeno surgiu quando países europeus precisavam compatibilizar suas normas técnicas, ou facilitar o ingresso em seu território de linhas ferroviárias ou linhas de comunicação telegráfica. As primeiras “uniões internacionais” surgiram assim para estender vias férreas ou linhs telegráficas entre dois ou mais países. Uma das velhas uniões internacionais é, assim, a União Internacional de Comunicações, que surgiu em meados do século 19 como União Telegráfica. Depois tivemos a União Postal, também uma das mais velhas organizações internacionais existentes, logo em seguida a União para a Proteção da Propriedade Industrial e assim por diante.
Também tivemos, ainda no século 19, organizações da própria sociedade civil, como a Cruz Vermelha, de cunho humanitário, criada para humanizar o tratamento de feridos e dos prisioneiros de guerra, por iniciativa do suiço Henry Dunant, não por acaso um cidadão de país neutro, voltado para a solução pacífica dos conflitos. Ainda no âmbito da sociedade civil, podemos citar a Câmara Internacional de Comércio, com sede em Paris, constituída para facilitar os negócios privados e também para dirimir possíveis conflitos entre parceiros, mediante o uso de cláusulas de arbitragem comercial, um expediente muito útil se se pensa no tempo que leva uma solução tipicamente judicial.
A primeira organização especificamente política se deu no âmbito parlamentar, ainda no final do século 19, mas a que verdadeiramente começou a mudar o panorama das relações internacionais foi a Organização Internacional do Trabalho, surgida em 1919, no âmbito da então Sociedade das Nações, antecessora da ONU. A OIT também procurou harmonizar as relações de trabalho, buscando conciliar os interesses de empregadores e empregados. Ela continua a ter características especiais, uma vez que apresenta uma estrutura tri-partite, com a representação dos governos, ademais daquelas duas categorias de agentes econômicos.
Na mesma conferência de Versalhes, em 1919, foi constituído o embrião do que viria a ser, já no âmbito da ONU, a Corte Internacional de Justiça, voltada unicamente para conflitos entre Estados que aceitem sua jurisdição. Ainda antes do final da Segunda Guerra Mundial, foram constituídas outras organizações internacionais que logo em seguida viriam integrar a estrutura da ONU, ainda que sob estatutos diferentes. Podemos assim citar o Fundo Monetário Internacional e o Banco Mundial, por ocasião da famosa conferência de Bretton Woods, em 1944, que atualmente ficam em Washington, a Organização Mundial de Alimentos e Agricultura, a FAO, com sede em Roma, e a OACI, organização da aviação civil internacional, localizada no Canadá.
Com a constituição da ONU, na conferência de São Francisco em 1945, o associacionismo internacional conheceu notável expansão e organização, uma vez que a constituição de organismos especializados para cooperação entre Estados soberanos passou a ser a forma normal do relacionamento entre estados e de solução de problemas práticos que ultrapassam as fronteiras nacionais: comércio, meio ambiente, normas industriais, acordos recíprocos em matéria de transportes aéreos, comunicações, cooperação financeira e monetária, enfim, as mais diversas matérias técnicas e de defesa do consumidor, e mesmo dos direitos humanos, passaram a ser negociados e adotados como acordos multilaterais, substituindo, portanto, os antigos acordos bilaterais que regiam as relações entre os países.

2) O que ele representa para a sociedade internacional?
Basicamente duas coisas: por um lado, passar da fase de concorrência, competição ou mesmo animosidade nas relações entre Estados, para a de cooperação e de solução conjunta de problemas comuns; por outro, substituir as dezenas, talvez centenas de acordos puramente bilaterais para regular essas matérias entre os muitos países da comunidade internacional, para um quadro multilateral, composto de regras comuns e algumas disposições especiais, aos quais todos os Estados podem aderir, com base nos tradicionais princípios de nação-mais-favorecida, isto é, tratamento não discriminatório, e reciprocidade, ou seja, vantagens e concessões equivalentes, aind que não absolutamente simétricas.
Trata-se de enorme progresso no plano das relações internacionais, e também de uma evolução natural e necessário do direito internacional, já que o associacionismo pode não apenas criar um meio ambiente uniforme à aplicação de regras, que escapam assim do arbítrio de decisões de países individuais e de mudanças intespetivas, como prover cooperação aos países economicamente frágeis, que não conseguem, eles mesmos, implantar normas de segurança, de saúde, de bem estar da sua população sem essa assistência dos membros mais avançados da comunidade internacional.

3) Como surgiu?
Da necessidade da adoção de padrões comuns, para dois países se comunicarem, por exemplo, mediante linhas ferroviárias ou de telégrafo. Ou então da necessidade de serem respeitados, mutuamente, direitos patrimoniais, como as patentes, que dispunham de proteção no plano territorial nacional mas não necessariamente em outros países. Ou ainda, da necessidade de se combaterem determinadas epidemias, afetando homens, plantas ou animais, que não respeitam fronteiras, ou para combater a criminalidade trans-fronteiriça. Enfim, os motivos foram vários.
Associações nacionais se reuniram com suas congêneres de outros países para constituir uma união em defesa ou pela promoção de tal ou qual área técnica, ou então chefes de estado tomam a iniciativa de convocar conferências diplomáticas para resolver determinados problemas percebidos como importantes, nos campos da política ou da economia internacional. Por vezes indivíduos abnegados, como o suíço Henry Dunant, quer minorar o sofrimento humano, e propõe a criação de um órgão neutro, apolítico e não-estatal para cuidar de feridos e prisioneiros de guerra. Enfim, são várias as formas e motivações, mas todas as iniciativas têm em comum o desejo de estabelecer cooperação transfronteiriça para resolver problemas práticos.

4) Que características marcam o associacionismo?
Uma das consequências do crescimento do associacionismo, que está indissolivelmente ligado ao multilateralismo, é a diminuição relativa da soberania absoluta dos Estados, que passam a compartilhar decisões com outros Estados ou então delegam poderes a um órgão internacional, geralmente respondendo a uma assembléia de estados (como acontece na maior parte dessas uniões ou pode ocorrer no caso do Conselho de Segurança, que não é, entretanto, absolutamente igualitário).
Na maior parte das organizações assim formadas, vale o princípio de um pais um voto, ou seja, cada membro tem iguais direitos e obrigações. Em algumas, porém, o poder decisório pode depender da participação no capital constitutivo, como numa sociedade comercial, o que é o caso do FMI e do Banco Mundial, por exemplo.
Em qualquer hipótese, os membros, sócios ou afiliados decidem conjuntamente determinadas matérias que, ou podem obrigar a todos os membros igualmente, ou então isentar alguns deles de deteminadas disposições, como por exemplo os países em desenvolvimento, que podem receber concessões comerciais de países mais avançados sem ser necessariamente obrigados a reciprocar com vantagens equivalentes. Este último princípio se chama não-reciprocidade, que também caracteriza a sociedade internacional, feita de países ou membros desigualmente dotados, como aliás ocorre no plano nacional.

5) Qual o papel do indivíduo nesse processo?
Há um movimento contraditório: por um lado, o associacionismo pretende superar as diferenças individuais para promover o bem comum de todos os membros da comunidade internacional, por outro lado, ele o faz, sem dúvida alguma, para melhorar o bem estar de todos os indivíduos. Isso é particularmente evidente no campo humanitário, na defesa dos direitos humanos, da igualdade de gêneros, da promoção da pessoa humana sem diferenças raciais ou religiosas, em especial das minorias e comunidades mais frágeis. Nesse terreno, destacam-se as organizações não estatais, e aqui o papel individual é altamente relevante, pois que se trata de iniciativas tomadas por indivíduos generosos, sinceramente comprometidos com o bem estar da espécie humana (e em muitos casos dos animais e do meio ambiente).
Um indicador simbólico mostra a importância do indivíduo: os prêmios Nobel da paz, distinguindo grandes personalidades que trabalharam em favor da paz, da promoção dos direitos humanos, da defesa de minorias em perigo, geralmente mediante associações não-governamentais criadas por eles mesmos.

6) Qual o poder dos novos atores, diferentemente dos estados?
As chamadas ONGs, junto com as empresas multinacionais, são certamente entidades relevantes no cenário internacional contemporâneo, geralmente atuando por pressão moral, por campanhas de opinião pública, ou por meio da publicidade e promoções comerciais, como é o caso das grandes empresas, que também atuam por meio de fundações humanitárias, como no caso de Bill Gates, provavelmente o homem mais rico do mundo e que dedica parte de sua fortuna ao combate de epidemias em países pobres.
Esse poder paralelo ao dos Estados tende a crescer, o que é também um dos resultados da globalização, ou seja, do aumento mundial dos intercâmbios, em todos os níveis. Teoricamente, em pouco tempo, grande parte da humanidade poderá estar conectada simultanemente através da Internet, o que hoje ainda ocorre de forma muito restrita ou limitada a países e regiões mais avançados. Trata-se de um papel multiplicador de opiniões, informações e ações concretas em favor de determinadas causas globais que não tem prcedente histórico e que tende a aumentar cada vez mais.

7) Que mudanças, na prática, o associacionismo provoca na vida das pessoas?
Ele permite superar o horizonte citadino ou mesmo nacional, para colocar em contato pessoas desconhecidas em cantos diversos do planeta, mas que têm objetivos comuns em alguma causa nobre ou para resolver algum problema prático. Ele reune países, associações de classe, grupos de interesse num mesmo foro, que não precisa hoje ser no mesmo local físico, em busca de uma solução aceitável para todos ou para a maioria na resolução de alguma questão que afeta o conjunto dos envolvidos naquela área ou temática, ou potencialmente o conjunto da humanidade em certos temas globais (direitos humanos, meio ambiente, comércio internacional, etc).
Esse processo passa a dar a cada indivíduo a consciência de pertencer ao mesmo gênero universal, ou a uma mesma comunidade de interesses, ultrapassando, portanto, barreiras físicas ou políticas que sempre separaram os homens até um período ainda recente na história da humanidade. Estamos assistindo ao surgimento de uma comunidade verdadeiramente global, e isso se deve em grande medida ao crescimento do associacionismo.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 28 de janeiro de 2004

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