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domingo, 9 de junho de 2013

Avaliacao do governo Lula (3): a area social

Balanço do governo Lula: os programas da área social

Paulo Roberto de Almeida

Dando continuidade aos exercícios anteriores, vejamos agora o cenário na área de políticas públicas, terreno no qual o governo Lula acredita ter feito o maior bem para o maior número possível de brasileiros, ainda que à custa de alguma manipulação de dados e da apropriação indevida de políticas iniciadas no governo anterior.

Social: avanços dos “direitos”, retrocesso das “obrigações”
Em nenhum outro terreno das políticas públicas, o governo Lula pode reivindicar, e obter, tanto sucesso quanto no plano social, ainda que considerações sobre a extensão exata e a sustentabilidade no longo prazo sejam de rigor. Sua base foi a economia, que apresentou uma combinação de continuidade das mesmas políticas econômicas “neoliberais” herdadas do governo anterior, acrescida do benefício de um ambiente internacional, entre 2003 e 2008, excepcionalmente favorável ao crescimento brasileiro: nunca antes na história do mundo, a economia mundial cresceu tanto, com tanta valorização das commodities exportadas pelo Brasil. O lado fiscal apresenta preocupações, não tanto por eventual dificuldade do governo em obter recursos – pois sua capacidade “extrativa” é, como se sabe, notoriamente eficiente, para infelicidade dos contribuintes – mas, sim, pela má qualidade dos gastos, notoriamente ineficientes e tendentes à irracionalidade (como os salários dos funcionários e as pensões e aposentadorias, em detrimento das crianças e jovens).
Foi no terreno social, entretanto, que o governo Lula se apresentou com um grande diferencial em relação a todos os governos anteriores, até com certo exagero na cronologia histórica e no número de realizações efetivas (ambos simbolizados no famoso bordão do “nunca antes neste país”, uma clara usurpação da verdade). Não é necessário, num exercício como este, retomar todos os dados do desempenho alcançado nas diversas áreas, inclusive porque a máquina de propaganda do governo – outra de suas enormes realizações – se encarrega de martelar os números de forma retumbante: diminuição da pobreza, incorporação de camadas desfavorecidas à classe média, desconcentração de renda, aumento do emprego formal, inclusão educacional, digital, racial e várias outras inclusões de gênero. A realização símbolo do governo é, manifestamente, o programa Bolsa-Família – uma reunião de diversos programas iniciados no governo anterior, depois que o Fome Zero fracassou – que atende a mais de um quarto da população brasileira, segundo os dados oficiais, e que atenderia bem mais se a oportunidade se apresentasse. Ele tende, aliás, a se eternizar e a se deformar.
As alegações numéricas são, portanto, legítimas e efetivas, devendo, assim, ser acolhidas como um desenvolvimento saudável no panorama social brasileiro, certamente beneficiado pela incorporação de novos estratos sociais aos mercados formais de consumo, de trabalho e a novas oportunidades de realizações pessoais e familiares. Nada pode obscurecer o fato de que o Brasil melhorou sensivelmente no plano social nos últimos anos, mesmo se os fatores causais desses progressos não podem ser resumidos a iniciativas exclusivas de políticas setoriais do período recente, derivando, em grande medida, de um longo processo de transformações sociais (demográficas, educacionais) e de investimentos materiais (saneamento básico, campanhas de saúde, capacitação técnica, infra-estrutura etc.); ou seja, resultam de políticas em curso desde os anos 1990 e aceleradas com a estabilização trazida pelo Plano Real; todos sabem que a inflação constitui um imposto terrível sobre os pobres, sendo responsável por boa parte da concentração de renda no Brasil.

As consequências sempre vêm depois...
Um exercício de avaliação deve ir além dos certificados congratulatórios e tentar determinar, com os olhos no futuro, os efeitos duráveis e a sustentabilidade das políticas sociais, com o objetivo de antecipar suas consequências de longo prazo. Basicamente, todos os governos dispõem de duas vias para promover políticas sociais: a via dos mercados e as do próprio Estado, sendo as primeiras indiretas e aleatórias, e as segundas diretas e focadas em objetivos pré-determinados. A via dos mercados está identificada com produção de riquezas e criação de renda na sua vinculação com investimentos e empregos no setor privado – o único gerador real de riqueza social, já que o Estado se apropria da riqueza produzida por empresários e trabalhadores – cabendo ao Estado promover um ambiente favorável à realização de negócios, investimentos privados e intercâmbios externos, com um mínimo de interferência possível nos mecanismos de acumulação de riquezas.
Não é preciso ser um gênio da ciência política e da análise econômica para constatar que o governo Lula escolheu a outra via, a da redistribuição estatal da riqueza criada pela sociedade, seja por meio de programas já existentes – subsídios e transferências diretas e indiretas a grupos e indivíduos, serviços estatais tradicionais, elaboração constitucional de diretrizes orçamentárias, etc. –, seja mediante grande variedade de novos programas que ele mesmo concebeu e implementou, cuja eficácia social e eficiência operacional são, no mínimo, questionáveis. Um dos grandes problemas associados a esta via é o de que é preciso, também, certo investimento nos meios, antes de se poder chegar aos fins. Ora, cada vez que o Estado implementa, um programa – digamos, aleatoriamente, um de inclusão digital, seja lá o que isso queira dizer – ele precisa se “abastecer” de recursos junto à sociedade, para depois oferecer sua “solução” ao “problema” detectado. Esse via geralmente dilapida recursos.
Os meios, então, tomam invariavelmente precedência sobre os fins: é inevitável, nessas circunstâncias, que o dinheiro arrecadado compulsoriamente – e todos os impostos e taxas são compulsórios, como essa estúpida taxa sobre a cadeia livro que o governo pretende cobrar para... estimular a leitura (!!!) – pague um “pedágio” na entrada (para remunerar o “trabalho” dos burocratas que conceberam e desenvolveram tão edificante programa) e pague um novo “pedágio” na saída. Aqui se trata de remunerar o feliz concessionário que redistribui a “solução-milagre” do suposto “problema” detectado pelos gênios que trabalham para o governo, digamos o microempresário de uma lanhouse “comunitária”. Deixemos de lado, para não complicar demais o roteiro dos pedágios, todas as demais inovações em quaisquer etapas da cadeia, como as licitações dirigidas, a seleção para um fornecimento seletivo, o superfaturamento e outras oportunidades de desvios desses recursos.

Haverá um custo a pagar mais à frente...
Tendo em vista todas as evidências documentadas, todos os registros acumulados de malversações recorrentes associados à coleta, manipulação e circulação de recursos públicos – aliás, da sociedade, apenas intermediados pelo Estado – parece incrível que a própria sociedade brasileira e, a mais forte razão, os partidos políticos e os burocratas e dirigentes estatais ainda insistam nessa via altamente custosa e ineficiente de prestação de serviços públicos, ou de supostos “benefícios sociais”. No caso em espécie, a tal de “inclusão digital”, seria muito melhor e mais barato que ela fosse feita por iniciativa e decisão pessoal de cada indivíduo, atuando por sua própria conta, com plena soberania sobre o seu dinheiro: ele saberia melhor do que qualquer burocrata como empregar seus recursos da melhor forma, para sua maior satisfação, desde que seu dinheiro permanecesse em seu bolso, decidindo-se, eventualmente, por algum computador e algum serviço de conexão, a preços competitivos como devem ser os de um mercado aberto, não cartelizado por grandes empresas favorecidas pelo governo (e, claro, desde que os produtos e serviços não viessem sobrecarregados de todos esses impostos, contribuições e taxas que no Brasil podem chegar abusivamente a 40% do preço final).
Compreende-se que o cidadão comum – inadvertido quanto à carga total de impostos que ele paga compulsoriamente a cada compra, tanto porque esse dado não consta do ato de compra – não estabeleça ele mesmo a relação de custo-prejuízo advinda da “solução” estatal ao seu suposto “problema” de exclusão digital – que nem existiria se ele dispusesse de abundantes ofertas de bens e serviços em mercados competitivos – e que ele até favoreça, em seu imaginário, a “solução” oferecida a “baixo custo” pelo Estado (que na verdade tem um custo embutido bem mais alto). Isso ocorre em razão da deformação geral de compreensão da sociedade brasileira quanto ao papel do Estado numa sociedade “normal”. É menos compreensível que pessoas informadas, burocratas públicos – economistas, administradores, gestores, planejadores – não percebam, e não declarem, que a solução oferecida é a de menor bem-estar possível, tendo em vista alternativas melhores disponíveis em regime de mercados abertos. É, aliás, inadmissível que institutos de economia aplicada, supostamente armados do que existe de mais aperfeiçoado em termos de análises comparativas, não tragam eles mesmos essas evidências quanto à existência de um “ótimo social paretiano” em matéria de políticas públicas, e não levantem essa discussão para o público em geral e para os responsáveis políticos em particular.
Compreende-se, por outro lado, que partidos políticos favoreçam a solução estatal, a menos racional e a menos eficiente, para esse tipo de “serviço público”, já que eles estão diretamente interessados na intermediação do dinheiro coletado na sociedade e canalizado pelo Estado, com a sua participação  direta e interessada nos instrumentos e mecanismos dessas “políticas públicas”. Desse ponto de vista, o PT representa a exacerbação extrema, se me permitem a redundância, desse tipo de comportamento predatório e rentista, que só produz diminuição do bem-estar social e o aumento da burocracia estatal. É o que se poderia chamar de “partido parasitário”.

O Estado-mãezona e a acomodação social...
Mas ainda existe um outro componente profundamente deletério das “políticas sociais” aplicadas pelo governo Lula, que vai pesar como uma herança maldita nas próximas décadas de (não) desenvolvimento brasileiro: é a criação de uma cultura da “assistência pública”, de uma “mentalidade de Estado-mãe”, o patrono de todas as bondades coletivas que o imaginário social concebe como sendo “um direito do cidadão e um dever do Estado” (sem, obviamente, nunca calcular os custos sociais e microeconômicos de todas essas bondades). Esse aspecto é relevante e não vem sendo suficientemente destacado pelos analistas da área de políticas públicas.
O Brasil – não apenas em decorrência do Bolsa-Família, mas do conjunto de iniciativas do mesmo teor e filosofia – está sendo dividido em uma nação de assistidos, de um lado – com todas as demandas legítimas, ou reais, que possam existir, mas também com todos os desvios esperados nesse tipo de empreendimento gigantesco – e em uma nação de pagadores, do outro, em geral a classe média, já que os muito ricos são moderadamente afetados por esse tipo de política (embora alguns queiram, vingativamente, e ainda de forma totalmente equivocada e ineficiente, criar um imposto sobre as “grandes fortunas”). A mentalidade assistencialista e todos os canais rígidos de “redistribuição compulsória” de renda que estão sendo criados nesse universo mental de administração pública, constituem, sem dúvida alguma, a pior herança social que o governo do PT criou e que vai pesar terrivelmente no futuro brasileiro, mais até no plano da psicologia social do que da gestão fiscal.
Pior de tudo, os próprios pobres, supostamente os beneficiários primeiros e últimos com esse tipo de política, não percebem que são eles mesmos que pagam (duplamente) os serviços, são os seus financiadores injustiçados. Todos sabem que, em média, os mais pobres “deixam” (involuntária e inconscientemente) 50% de seus “rendimentos” (quaisquer que sejam eles, inclusive o Bolsa-Família, ou pensões e aposentadorias) nas mãos do Estado, sob a forma de impostos indiretos (já que eles não pagam impostos diretos, ou qualquer outra forma de contribuição sobre uma renda que manifestamente eles não possuem).
Este julgamento severo sobre as políticas “sociais” do governo Lula vai ser, obviamente, recusado por todos aqueles que costumam ver injustiças nos mercados e no capitalismo e que só vêem benefícios advindos das políticas administradas pelo “Estado corretor”. Essa concepção deformada quanto ao funcionamento dos mecanismos sociais de criação e distribuição de riquezas pode ser atribuída a uma ignorância econômica fundamental, mas também a um preconceito político e ideológico que, infelizmente, é muito disseminado num país de baixa educação geral e de qualidade discutível das faculdades de humanidades.

Paulo Roberto de Almeida 
Shanghai, 25.09.2010

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