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sexta-feira, 13 de março de 2015

Um discurso de formatura: um tratado de economia brasileira - Alexandre Schwartsman

Discursos de formatura costumam ser aborrecidamente enfadonhos, com perdão pela redundância. Não este aqui. Uma aula magna de economia e de história brasileira recente. Leiam e desfrutem. 

Discurso formatura FEA (11/março/2015)
Boa noite a todos, formandos, pais, e professores.

Quero, em primeiro lugar, agradecer o convite honroso para, mais uma vez, voltar à minha antiga casa. É sempre um prazer reencontrar pessoas e instituições que foram fundamentais para moldar nossa vida e dar um norte aos nossos caminhos e eu, ex-aluno, de graduação e mestrado, não posso esquecer o quanto a FEA foi importante para mim, seja do ponto de vista profissional, seja do ponto de vista pessoal.

Houve tempo que meu objetivo de vida era permanecer nesta casa, mas trilhei caminhos que me levaram a outros destinos, sem jamais, porém, perder o carinho ao lar.

Não é sobre isto, contudo, que pretendo falar esta noite.

Vivemos, como se sabe, tempos difíceis e, se cabe ainda à minha geração tentar solucionar os problemas que hoje enfrentamos, à nova geração – aqui representada pelas formandas e formandos – caberá um papel crescente para encaminhar o país a um futuro melhor.

Não é uma tarefa fácil. Se fosse, certamente estaríamos em situação mais confortável. Fomos capazes de resolver alguns dos problemas que atormentaram o Brasil durante décadas, mas certamente não (ainda – e aqui destaco ainda) de recolocar o país na rota do crescimento equilibrado e vigoroso. Às vezes foi vigoroso, outras (menos) foi equilibrado, mas raramente conseguimos esta combinação preciosa.

O que me dói é que estivemos, talvez, perto de consegui-lo. Há não muito tempo, menos de 10 anos, chegamos a ter uma economia que crescia, se não a taxas exuberantes, pelo menos em ritmo mais que confortável, absorvendo não só o crescimento da população, mas também gerando oportunidades para aqueles que permaneciam à margem do mercado de trabalho. O desemprego, portanto, caiu de forma segura, desempenhando papel central inclusive na melhora da distribuição de renda, ainda maior que as transferências de renda operadas pelo governo.

Ao mesmo tempo havia indicações de estabilidade. A inflação, flagelo de outras eras, fora posta sob controle; as contas externas, origens de tantas crises, não representavam ameaça; as contas públicas, por fim, se não se mostravam inteiramente equilibradas e ainda dependiam muito de uma carga tributária extraordinariamente elevada, eram consistentes com uma trajetória de redução persistente do endividamento do setor público.

Isto certamente não implica concluir que todos nossos problemas já tivessem sido endereçados. Pelo contrário, como digo há tempos, o Brasil é um país condenado à reforma e havia – como ainda há – questões a serem tratadas, que iam da complexidade do sistema tributário nacional ao crescimento ainda insuficiente da produtividade, da baixa exposição da economia à competição ao desempenho medíocre dos nossos alunos nos testes internacionais. 

Não, problemas não faltavam e, desconfio, nunca faltarão, mas, ao menos, havíamos atingido um estágio em que finalmente, superados os principais desafios à estabilidade, poderíamos nos dedicar a tratar de forma mais profunda questões de natureza mais “estrutural”, que, se bem encaminhadas, nos permitiriam crescer mais rapidamente de forma sustentada, com maior justiça.

Esta oportunidade, porém, foi desperdiçada.

Como sempre ocorre, não foi uma única medida que tirou a economia brasileira dos trilhos, mas um conjunto delas, ao longo de vários anos, erodindo lenta, porém, continuamente as conquistas anteriores.

Ainda assim, se tivesse que escolher um momento divisor de águas, seria uma reunião ocorrida há pouco menos de 10 anos. Nela discutiu-se a possibilidade de aprofundar os rumos do ajuste fiscal brasileiro por meio de um programa de longo prazo que, de forma muito resumida, propunha manter o crescimento das despesas correntes abaixo do ritmo de expansão do PIB, com o objetivo de reduzir o gasto corrente como proporção do produto e assim abrir espaço para aumento do investimento público, principalmente em infraestrutura, ou reduzir a carga tributária, ou reduzir mais rapidamente a dívida pública (ou ainda uma combinação destas três alternativas).

Esta proposta foi morta no nascedouro pela então ministra-chefe da Casa Civil que a classificou de “rudimentar”, não sem antes acrescentar que “despesa corrente é vida”. Como notei certa vez, se tivéssemos seguido esta “proposta rudimentar”, o gasto federal teria caído para cerca de 14% do PIB no ano passado; ao invés disto atingiu 20% do PIB, uma diferença de 6% do PIB, ou seja, algo como R$ 300 bilhões de reais por ano!

Não parece ser outro o motivo de termos o governo mais “gastão” da história recente do Brasil.

Grave, porém, como foi tal despropósito, tratou-se apenas do primeiro passo no sentido de desmontar um regime de política econômica que havia se provado particularmente bem-sucedido nos termos que expressei acima: crescimento sólido, inflação controlada, contas públicas e externas em ordem.

Aos poucos cada um destes elementos foi descartado e, pior, ao invés de nos aprofundarmos no sentido de tornar o país mais competitivo (e, portanto, mais produtivo), voltamos muitos passos atrás.

Assim, ainda que a economia brasileira permaneça mais aberta do que foi num passado remoto, houve medidas que a tornaram mais protegida da concorrência externa, de leis de conteúdo nacional (como no caso da indústria de petróleo, reproduzindo tentativas fracassadas, como a Lei de Informática dos anos 80) a velhas práticas de proteção tarifária.

Foram escolhidos – sabe-se lá por qual critério – “campeões nacionais”, que receberam enormes somas de dinheiro público que, de fato, não é dinheiro público, mas de todos nós, contribuintes, sem a transparência que se espera no trato deste tipo de recursos. O financiamento do Tesouro Nacional ao BNDES, o agente na escolha dos “campeões”, atingiu cerca de R$ 490 bilhões, equivalente a nada menos do que 9,5% do PIB.

Houve controle de preços, impedindo que os mecanismos de mercado funcionassem a contento, levando por conseqüência a graves distorções em setores-chave da economia, como o energético e o sucroalcooleiro.

Este retrocesso marcante nas relações entre o setor público e o privado implicou forte desaceleração do ritmo de produtividade, que caiu de algo próximo a 2% ao ano na segunda metade da década passada para menos de 1% ao ano no período mais recente.

As dificuldades que hoje enfrentamos – crescimento baixo, inflação elevada, déficits externos consideráveis, dívida pública crescente – são resultados diretos da inflexão de política econômica que – em retrospecto – parece ter começado já em 2005, ainda que tenha sido acelerada, sob o nome de Nova Matriz Macroeconômica, apenas no período mais recente, a partir de 2011.

É bom notar que não houve uma motivação estritamente econômica para a esta inflexão. Ainda que não extraordinário, o desempenho do país foi, como vimos, mais do que razoável em termos de crescimento, estabilidade e inclusão social.

A motivação parece ter sido política e ideológica. Havia – como ainda há – a crença que políticas econômicas que privilegiam o crescimento com estabilidade em detrimento da expansão a qualquer custo; que apontam para as limitações orçamentárias; que destacam o papel da poupança e dos mercados no crescimento econômico entre outras características, seriam fruto de um “pensamento conservador”, que daria preferência a “rentistas” sobre os “produtores”.

Seria possível, na visão destes economistas, romper os limites do possível. A demanda criaria sua própria oferta. O aumento de gastos – ao elevar o produto – geraria os recursos necessários ao seu financiamento. A intervenção do governo – sábio e benevolente – permitiria a superação de “falhas de mercado”, levando o país a novos patamares de desenvolvimento.

Pouco importa que tudo isto já tivesse sido tentado. Para economistas que se dizem fundamentalmente preocupados com a história, é notável a ignorância acerca dos resultados de políticas semelhantes aplicadas no passado: choro e ranger de dentes.

* * *

Economia é uma ciência humana. Como tal, não é melhor ou pior do que a Física, ou a Biologia; é apenas obrigada, por força de seu objeto, a empregar métodos distintos. 

A Física pode se basear em explicações causais: uma força aplicada sobre um corpo o faz mover; ou os meios diferentes em que a luz passa alteram sua velocidade. 

A Biologia pode se amparar em explicações funcionais: determinadas características de certa espécie se perpetuam porque aumentam as chances de cada indivíduo com estas características passar adiante os genes que as carregam.

Já a Economia, como ciência humana, não pode se amparar neste tipo de explicações. A ela cabe, assim como nas demais ciências sociais, se amparar na busca dos motivos que guiam a ação humana. A explicação adequada para este caso é a explicação intencional.

Neste sentido os economistas criaram uma ficção extraordinariamente poderosa. O “homem econômico”, um ser amoral, que busca, sem paixões, o máximo de satisfação, limitado apenas pela disponibilidade de recursos e pela tecnologia existente. 

Por mais que saibamos que seres humanos de carne e osso não se comportem exatamente da forma presumida para o “homem econômico” (podem, por exemplo, ser altruístas e morais, assim como provavelmente não são capazes de atingir os incríveis limites de racionalidade da nossa ficção), a verdade é que modelos que supõem que as pessoas se preocupam mais com seu próprio interesse e que são capazes de realizar feitos extraordinários de raciocínio para atingir seus objetivos têm se mostrado melhores no sentido de prever a ação econômica do que presunções acerca da bondade inata do ser humano.

Há custos, porém. Para lidar com esta ficção vocês foram expostos a técnicas razoavelmente sofisticadas, tanto no campo matemático quanto estatístico. Cálculo diferencial, álgebra linear, métodos de máxima verossimilhança, propriedades assintóticas de estimadores, otimização sujeita a restrições, etc. representam uma amostra modesta do tipo de tortura a que vocês foram submetidos, com maior ou menor grau de sucesso (e, posso dizer, vocês aprenderam muito mais do que eu aprendi na minha graduação).

Não é todo mundo que está disposto ou preparado para lidar com isto. Muito mais fácil é recitar meia dúzia de citações de economistas ilustres, mortos há mais de 60 anos, e tomar isto como verdades reveladas. O que Keynes disse, o que Marx disse viram critérios de verdade, mais do que a evidência empírica. Se o mundo não se comporta como estes sábios previram, tanto pior para o mundo.

Não é o caso de vocês.

Por mais que não haja respostas definitivas, a ciência que vocês aprenderam nestes últimos anos é um instrumento poderoso na busca de verdades, ainda que sejam “verdades provisórias”, válidas até nova evidência e novos desenvolvimentos teóricos se mostrem mais adequados para lidar com a realidade.

Posto de outra forma, Economia não é uma ciência que lhes dará certezas. Mas lhes oferece uma ferramenta adequada para explorar o mundo, formular hipóteses, testá-las contra a realidade e, com base nisto, formular políticas que possam endereçar nossos problemas. 

Não é um caminho fácil. As respostas não estão num livro empoeirado na biblioteca da FEA. As respostas virão como resultado da aplicação dos métodos que vocês aprenderam nestes anos. Posto de outra forma, Economia, mais que uma coleção de verdades, é um método para resolver problemas.

* * *

Concluo. 

A inflexão da política econômica observada nos últimos anos resulta da visão da Economia como a tal coleção de verdades proferidas pelos velhos mestres. Não foi a evidência empírica nem a abordagem científica que estavam por detrás da mudança de paradigma, mas crenças de caráter quase religioso. O resultado não poderia ser diferente: quem ignora a realidade sofre sério risco de ser por ela atropelado.

Não é, certamente, o que ocorrerá com vocês. Vocês começam agora suas carreiras, dotadas de todas as condições para alcançarem mais longe que minha geração alcançou. Em mais alguns anos será a vez de vocês tomarem o leme do país, seja em postos-chave no governo, seja no comando das principais empresas do setor privado.

Se cabe um conselho é: não esqueçam o que aprenderam. E aqui não me refiro a nenhum dogma em particular; mais que as conclusões, o que interessa é o método que vocês utilizam para alcançá-las. É um instrumental, repito, poderoso; não infalível, claro, mas, de certa forma passível de autocorreção. 


Respeitem o método; submetam-se à evidência empírica; e permaneçam céticos acerca de toda e qualquer conclusão. Assim irão muito além do que um dia pudemos sonhar.

Obrigado, parabéns, sucesso e boa sorte!

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