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terça-feira, 5 de maio de 2015

Retorno ao Futuro, Parte II - Paulo Roberto de Almeida (1990)


Retorno ao Futuro, Parte II

Paulo Roberto de Almeida
Revista Brasileira de Política Internacional
(Rio de Janeiro: Ano XXXIII, nºs 131-132, 1990/2, pp. 57-60).

Num ensaio de reflexão prospectiva que redigi em junho de 1988, e intitulado "Retorno ao Futuro" (Revista Brasileira de Política Internacional, XXXI, 1988/2, 63-75), eu tentava algumas modestas previsões sobre a evolução da ordem internacional em direção do horizonte 2000.  Embalado pelos recentes acordos sobre mísseis intermediários na Europa e pelos progressos alcançados na liberalização econômica das sociedades socialistas  - um dos capítulos era mesmo intitulado "A Transição do Socialismo ao Capitalismo" e outro "O Fim da Guerra Fria"-,  eu arriscava algumas previsões otimistas sobre o desenvolvimento do processo de détente na Europa e seu impacto no jogo geopolítico global.  Depois de retornar ao passado da "Europa do futuro",  meu ensaio se terminava com estes dois parágrafos:
"A dimensão Leste-Oeste continuará, é verdade, a desempenhar um papel relevante no jogo político-diplomático do continente europeu no futuro imediato.  Mas, a delimitação dos interesses em causa obedecerá cada vez menos a critérios de natureza ideológico-militar para se concentrar nos imperativos da cooperação econômica e do intercâmbio comercial.  A Europa oriental,  liberando-se da ideologia que prometia enterrar o capitalismo, abre campo a que a Europa ocidental possa  por sua vez libertar-se do fantasma de uma defesa superdimensionada.
"Os contornos da nova realidade são relativamente previsíveis: um grande espaço mittel- europeu no qual em lugar de manobras de divisões adversárias se observará a circulação de mercadorias e de serviços.  O cenário pode parecer róseo, mas o otimismo em direção ao futuro parece ser uma mania daqueles que costumam lidar com os desastres do passado."
Um ano e meio depois de ter apresentado esse ensaio num seminário do Instituto de Estudos Estratégicos e Internacionais de Lisboa, observo, orgulhosamente, que a maior parte de meus exercícios de "futurologia" se mostrou razoavelmente correta e mesmo saudavelmente antecipatória.  Apenas para referir-me às principais questões abordadas, permito-me relembrar que as grandes tendências então detectadas (e muitas já em pleno desenvolvimento) referiam-se, entre outros, aos seguintes problemas: declínio imperial e esfarelamento do condomínio bipolar; preeminência estratégica e econômica do saber tecnológico, dissociado da simples afirmação do poderio militar;  o abandono das últimas ilusões econômicas do "socialismo realmente existente" e a introdução das forças de mercado nas economias de planificação centralizada; o esmaecimento do conflito ideológico global e a consequente superação histórica do conflito Leste-Oeste.
Nenhum desses elementos de minha análise prospectiva foi desde então desmentido pelos fatos, mas devo confessar que em relação a um único  ponto,  a marcha da democracia no Leste Europeu, minhas antecipações foram terrivelmente conservadoras.  Tendo começado, em meados de 1989, a transformar aquele pequeno ensaio em projeto de livro, logo constatei, para minha surpresa, que as contínuas manifestações dos povos da Europa oriental iriam impedir-me de  dar uma redação definitiva ao capítulo sobre a transformação "capitalista" daquela região.  Desde então, ainda não consegui retomar da pena (ou melhor, abrir novamente esse "file" em meu computador) para "encerrar" a história do socialismo na URSS e no Leste Europeu.
Ainda bem.  Naquele ensaio, eu comparava a abertura política da União Soviética a uma espécie de transição entre a monarquia absoluta e o despotismo esclarecido, no quadro de um "ancien régime" iluminado pelos ares da "glasnost".  Em outro "retorno ao futuro" do regime soviético, eu traçava um paralelo histórico entre a revolução da "perestroika" e a Inovação Meiji do Japão, no século passado, quando a elite dominante abriu-se a uma maior ocidentalização do país, no sentido da abolição de certos privilégios "feudais" (que são os da "nomenklatura"), na constituição de um "parlamentarismo de fachada" e na incorporação acelerada das conquistas estrangeiras em ciência e tecnologia.
Continuando meu passeio comparatista pelo "passado" da futura União Soviética, eu detectava uma transformação "bismarckiana" nas instituições políticas, sociais e econômicas daquela potência imperial, onde o objetivo da nova Revolution von oben ("revolução pelo alto") conduzida pelo Kaiser Gorbachev seria o de modernizar o País sem trazer prejuízo às instituições tradicionais (leia-se o Partido Comunista) e sem alijar do comando político aqueles que ocupam as alavancas de poder.  Obviamente, eu não deixava de chamar a atenção para essa contradição fundamental do novo revisionismo socialista:   "a solução para a maior parte dos problemas estruturais das sociedades socialistas passa por uma reforma radical do sistema de organização econômica, mas essa transformação teria de ser operada em detrimento do monopólio político partidário.  Mesmo os sistemas que avançaram mais longe  no caminho das reformas econômicas, nomeadamente Hungria e China (estávamos apenas em meados de 1988, cabe lembrar), não ousaram ainda demolir a exclusividade da representação política atribuida ao Partido Comunista".
Felizmente, num caso, e tragicamente, em outro, a grande carroça da História conduziu a transformação naqueles países aos desenlaces que se conhece.  Em todo caso eu operava uma distinção entre processos diferenciados de transição política, em função da sociedade envolvida:   
"Nos países dotados de maior rigidez estrutural nas instituições de representação, ou cuja estrutura social é marcadamente fragmentária e heterogênea, o processo de transição deverá assumir contornos conflitivos.  É o caso , por exemplo, da maior parte dos países balcânicos, da China e da própria União Soviética. As crises de legitimidade política reforçarão, em consequência, a natureza autoritária do processo de reforma política, de acordo aliás com o modelo de Revolution von oben". Não creio ter sido até agora desmentido nessas previsões ou naquelas formuladas acima sobre a União Soviética: em todo caso, a História ainda está em marcha.
Já para países dotados de uma estrutura social mais homogênea, eu previa um avanço mais rápido nas mudanças institucionais:  "Nos países caracterizados pela existência de uma sociedade civil historicamente independente do Estado (caso específico da Polônia e da Hungria), a marcha para a democracia política será provavelmente mais rápida".  Até aí, tudo bem: tampouco fui desmentido por Clio, essa tão complacente donzela. 
Mas, naquelas "cenas de futurologia explícita" sobre o mundo socialista, em seu conjunto, eu falhei miseravelmente em prever o ritmo mais "empolgado" que iria tomar o "fim da história" no Leste Europeu:  "A tendência deverá ser marcada pelo lento desenvolvimento do pluralismo partidário e sindical e pela introdução das regras mais elementares da competitividade eleitoral na esfera das instituições políticas de representação popular.  O monopólio do Partido Comunista será, assim, erodido gradualmente, num processo de transição tutelada e administrada".
Lamentavelmente, a tentativa de traçar linhas evolutivas relativamente homogêneas para o conjunto das sociedades socialistas, levou minha análise a deixar-se influenciar excessivamente pela rigidez burocrática da transformação em curso na URSS, esquecendo-me do peso - e da permanência estrutural -  da maior "invenção societal" da época moderna: o Estado-nação.  O regime político pode ser transitório, mas a comunidade de língua e de tradições, bem como a existência de uma rica história nacional, não deixam de manifestar-se de forma latente e continuada na vida dos povos, a despeito mesmo de um sistema político e de uma organização econômica e social brutalmente impostos de cima para baixo. Reconhecendo o erro e proclamando a meus leitores o mea culpa, só posso, assim, alegrar-me com esse fracasso da "teoria" e com essa tremenda aceleração da "prática": aliás, no Leste Europeu felizmente, a História já não corre simplesmente, ela galopa.
A meu favor, tenho o argumento de que os povos da Europa oriental não teriam embarcado no "assalto ao céu" do poder político se não tivessem certeza de que o caminho para a fortaleza do socialismo burocrático não estaria engarrafado por alguns tanques soviéticos.  Em meados de 1988, a promessa, explícita ou implícita, da "não-intervenção" ainda não tinha sido feita e a chamada "doutrina Brejnev" ainda não tinha sido formalmente enterrada. Mas, uma vez desimpedido o caminho, deve-se reconhecer que a rapidez das mudanças foi alucinante, mesmo para os "videntes" profissionais. Para um futurólogo aprendiz como eu, errar tão simplesmente a leitura do velocímetro do carro de Cronos, não deixa de ser um consolo.
Em todo caso, nem tudo são espinhos na atividade de um "prospector" do futuro.  Minha análise sobre o difícil processo de transição econômica das economias pós-socialistas, por exemplo, não corre o risco de uma esclerose precoce.  Abordando a séria questão do mecanismo de formação de preços, pedra angular de todo sistema econômico "racional", eu afirmava:
"A opção pelo mercado, que aparece como inevitável na transição do socialismo ao "capitalismo" empreendida sub-repticiamente [agora de forma aberta] pelas economias socialistas, implica igualmente aceitar todas as suas distorções e efeitos desestabilizadores sobre as unidades produtivas e sobre a distribuição de renda ao nível dos consumidores.  Quando o sistema de preços de mercado guiar toda a economia e tiver sido abolido o "pecado original" ligado à apropriação de lucros privados, o socialismo "realmente existente" se terá desfeito de seus últimos mitos econômicos e poderá enfim penetrar no purgatório do sistema capitalista".
Os países do "pós-socialismo" ainda não tiveram tempo de organizar, sobre bases mais racionais, um sistema de "exploração do homem pelo homem".  Em todo caso, eles são benvindos à realidade.

Paulo Roberto de Almeida, PhD pela Universidade de Bruxelas,  é cientista político e estudioso das relações internacionais.

180. “Retorno ao Futuro, Parte II”, Genebra, 10 janeiro 1990, 4 p. Artigo sobre tendências recentes no cenário internacional, atualizando o ensaio publicado anteriormente sobre o mesmo tema (Originais n. 164). Publicado na Revista Brasileira de Política Internacional (Rio de Janeiro: Ano XXXIII, n. 131-132, 1990/2, p. 57-60). Relação de Trabalhos Publicados n. 061.

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