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quinta-feira, 21 de janeiro de 2016

Ginasio Vocacional Oswaldo Aranha: minhas professoras preferidas - Paulo Roberto de Almeida


Minhas professoras favoritas: saudades do Vocacional
(um tributo a quem foi decisivo em minha formação)

Paulo Roberto de Almeida

O aluno e suas professoras preferidas, de Geografia e de História (SP, 2004)
Paulo Roberto de Almeida, Professoras Odila Feres e Maria Fonseca Frascino 

Um humorista americano da primeira metade do século XX, Will Rogers – nos EUA, humoristas passam por serem filósofos igualmente, a exemplo do grande escritor Mark Twain, ou do satirista Louis Mencken –, tinha uma frase que eu selecionei para introduzir a seção relativa aos trabalhos originais do meu site. Ele dizia que, na vida, “as pessoas aprendem de duas maneiras: uma pela leitura, a outra em associação com pessoas mais espertas”. A frase exata, no original, é a seguinte: “A man only learns in two ways, one by reading, and the other by association with smarter people”.
Se, no meu site (ver: http://www.pralmeida.org/03Originais/00originais.html), eu selecionei essa frase para sintetizar o que representam os trabalhos acadêmicos no conjunto de minhas atividades profissionais e intelectuais é porque ela simboliza exatamente o método de aprendizado que mais desde sempre esteve associado à minha formação e ao processo de incorporação de novos conhecimentos ao estoque de saberes pacientemente acumulado ao longo de anos e anos de estudos formais e de aprendizado informal. Essas duas vias estão justamente na base do profissional e do acadêmico que sou hoje: de um lado, os livros, todos eles; de outros, pessoas mais espertas, várias.
Em relação aos livros, minha interação foi relativamente tardia: só comecei a ler, realmente, quando ingressei no curso primário, já na idade “avançada” de sete anos. Venho, desde então, procurando recuperar o “atraso”. A partir de minha autonomia na leitura, provavelmente um ano e meio depois, nunca mais parei de ler, todos os livros que me chegam às mãos, em toda e qualquer circunstância (menos, é claro, aqueles muito idiotas). A coisa mais importante que aconteceu em minha vida infantil, e que se prolongou até a primeira adolescência, foi ter à minha disposição a Biblioteca Infantil Municipal Anne Frank, minha “residência secundária” – eu até diria primária – por vários anos, entre 1956 e 1962, mas ela já o era, mesmo antes de começar a ler.
Ela ficava apenas a um quarteirão e meio de distância da modesta casa em que habitávamos em São Paulo, no bairro periférico que então levava o nome de Chácara Itaim (hoje Itaim Bibi, uma pujante aglomeração de prédios de luxo). Em lugar de passar a tarde jogando “pelada” com os demais garotos nos campinhos de várzea, eu me refugiava quase todas as tardes na biblioteca para ler todos os livros interessantes (e ainda retirava um ou dois para ler de noite, já deitado na cama). Eu me fiz nos livros, pelos livros, com os livros, e devo à Biblioteca Anne Frank a fase formativa mais importante da primeira etapa de minha vida intelectual. Já adulto, percorri uma vez as estantes da biblioteca para registrar os livros que havia lido enquanto criança, uma lista que infelizmente se perdeu naqueles tempos de primeiros computadores portáteis (o que levei, se bem me lembro, era um Sinclair, britânico, dos anos 1980).
A segunda coisa mais importante que aconteceu em minha vida foi ter tido a oportunidade de conviver com pessoas mais espertas, pelo menos do ponto de vista de um adolescente que, aos doze anos, teve a inacreditável chance de começar o ciclo ginasial – então a primeira fase do secundário – numa instituição excepcional, o Ginásio Estadual Vocacional Oswaldo Aranha. Durante os quatro anos do GEVOA, eu pude me beneficiar do ensino ministrado por professores excepcionais, dentre os quais cabe agora destacar as minhas “heroínas preferidas”, as professoras de Geografia e de História, que sempre foram minhas matérias de estimação. “Dona” Odila Feres, a “gordinha” da Geografia, e “Mariazinha” Fonseca Frascino, a “magrinha” da História, foram essas heroínas, ainda que elas não tenham desconfiado dessa minha paixão secreta (na verdade, muito pouco discreta) pelas duas matérias pelas quais eram responsáveis, aliás intimamente associadas, nos métodos, nos conteúdos e nas práticas.

Como ainda disse o mesmo “filósofo” Will Rogers, “todo mundo é ignorante, mas em assuntos diferentes”. Quando ingressei no Vocacional, eu certamente não era um ignorante no que se referia à História. Desde quando li a adaptação de Monteiro Lobato do História do Mundo para as Crianças, ainda no primário, tornei-me um fanático por livros de história, mesmo se não me orientei para essa disciplina na vida acadêmica ou profissional. Cheguei ao ponto de decorar algumas das dinastias de faraós do antigo Egito e de, já levemente agnóstico, ler a Bíblia unicamente pelo seu forte conteúdo histórico, onde estavam relatados episódios políticos e guerreiros de toda a região coberta pelos dois testamentos. Assim, precocemente contaminado pelo vírus da História, eu só podia ficar fascinado pelas aulas da Professora “Mariazinha”.
Mas, até ingressar no Vocacional, eu era, provavelmente, bem mais ignorante em Geografia. Foi nessa área que a Professora Odila teve fundamental importância, ao me prover de conhecimentos sólidos, de novos saberes, que solidificaram minha paixão pelas duas matérias conjuntamente. Aliás, as duas matérias era dadas imbricadas uma na outra: começávamos com o estudo da comunidade local, passávamos ao estado de São Paulo, depois ao Brasil e o mundo, sempre fazendo levantamentos geográficos e sociais e estudando o itinerário histórico de cada uma dessas “entidades”. Ambas as professoras nos acompanhavam nas “saídas de estudo”, nas visitas locais, nas regionais (aos outros GVs do estado), e mesmo fora do estado, com aulas que não paravam sequer nos trajetos: Dona Odila nos recomendava observar as ondulações e cores dos terrenos das janelas dos ônibus, fazer o registro das formações geológicas do interior de São Paulo e observar a terra roxa do café no norte do Paraná, no seguimento da marcha do produto mais importante da história econômica do Brasil. Entre uma subida “geográfica” ao pico do Jaraguá, e uma incursão “histórica” (e também política) ao Rio de Janeiro, todos nós passamos a conhecer o Brasil, da melhor forma possível. A fórmula era simples, mas ao mesmo tempo sofisticada: unir o estudo teórico ao conhecimento prático, era isso o que tínhamos nas aulas e visitas com as duas “fadas madrinhas” dos estudos sociais.
A verdade, no entanto, é que pudemos desfrutar de muito mais do que simples aulas de História e de Geografia. Lembro-me perfeitamente, ainda hoje, de alguns encontros que foram decisivos para fixar e consolidar meu profundo interesse nas ciências sociais e que desde a adolescência me dirigiram para essa disciplina em nível universitário, a despeito de tentativas familiares de me orientarem para uma inefável (e detestada) carreira na advocacia. Ambas professoras tinham estudado com mestres da USP, da famosa Fefelech, a Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, provavelmente a primeira geração daqueles que tinham sido formados por mestres da França e de outros países, que tinham vindo ao Brasil nas primeiras décadas de existência da primeira universidade estadual de São Paulo. A USP passou a ser, então, o meu objetivo intelectual, e, com meros 13 ou 14 anos, passei a ler os livros de seus professores muito tempo antes de poder ingressar na Faculdade, em Ciências Sociais, justamente. Muitas dessas recomendações de leitura, registro, foram dadas por elas.
Foi assim, por exemplo, que fomos levados pelas duas à casa do historiador Sérgio Buarque de Holanda, um pequeno sobrado no Pacaembu, junto ao qual ficamos sabendo que ele era o pai de um jovem compositor de música popular que despontava então com algumas canções inovadoras, bem diferentes no velho repertório dos velhos boleros e sambas-canção a que estávamos acostumados. Foi com elas, também, que visitamos um arqueólogo da USP, Ulpiano Bezerra de Menezes, de quem ouvi uma recomendação jamais esquecida desde então: manter, com respeito a qualquer processo de pesquisa e de investigação intelectual, um “ceticismo sadio”, ou seja, uma atitude de desconfiança curiosa em relação a qualquer argumento ou prova “empírica” de um evento ou fato qualquer, buscar seus fundamentos, aprofundar o conhecimento. Foi, provavelmente, um dos mais importantes conselhos metodológicos de que guardei lembrança, e que me serve de guia em qualquer circunstância, e que está na origem de minha postura moderadamente “contrarianista”.
Tudo isto que posso agora recordar, no mesmo momento em que registro estas poucas recordações, ficou gravado de maneira indelével em minha mente, de maneira profunda e persistente, tão claras eram as exposições de ambas as professoras sobre todos esses matizes dos estudos sociais. Lembro-me de várias recomendações de leituras, entre elas algumas traduções brasileiras dos livrinhos da coleção Que Sais-je?, no Brasil publicados como “Saber Atual”. Um deles me impressionou vivamente: o geógrafo francês Yves Lacoste, ainda no início dos anos 1960, insistia em colocar o Japão entre os “países subdesenvolvidos”. Anos mais tarde, fui conferir tal curiosidade na edição original francesa: Les Pays Sous-développés (creio que a primeira edição era de 1955). De fato, essa inclusão estava nas primeiras edições, e a explicação se dava pelo lado da demografia, ainda relativamente galopante no Japão, como de resto no Brasil. Em todo caso, nos tempos do Vocacional, eu fui muitas vezes ver filmes de samurai no bairro japonês da Liberdade e nunca me pareceu que aquele povo limpo, correto, organizado, fosse tão “subdesenvolvido” quanto os brasileiros pobres que circulavam pelas ruas: contrastes tão visíveis me indicavam que algo estava errado na classificação do geógrafo francês. Mas, foi a Dona Odila quem mencionou o livro...

As pesquisas, orientadas por ambas, eram sérias, e quase de nível universitário, para garotos e garotas entre os 12 e os 15 anos. Lembro-me, por exemplo, que para cada visita a municípios do estado, ou fora dele, consultávamos previamente a Enciclopédia dos Municípios Brasileiros, enorme publicação do IBGE em grossos volumes de cor cinza. Era a partir dessas pesquisas que fazíamos mapas bem cuidados, em papel de seda, colorindo rios, montanhas, acidentes geográficos, cidades e estradas. Tudo o que era humanamente possível aprender em História e Geografia estava à nossa disposição, através das duas queridas professoras, as que mais recordo de todos os mestres das muitas matérias que tínhamos no Vocacional. Tudo aquilo era a abundância do saber, quase a plenitude do conhecimento, tudo o que eu sempre valorizei na vida.
Aliás, para mim, que vinha de uma família modesta, sem livros em casa, com pai e mãe que sequer tinham concluído o ensino primário, o Vocacional foi mais do que uma escola, ou um local de aprendizado: foi uma universidade precoce, um verdadeiro templo da educação, num ambiente sadio, desafiador e ao mesmo tempo acolhedor. Sem o Vocacional Oswaldo Aranha – e sem a Biblioteca Anne Frank, antes dele – eu não teria sido o profissional bem sucedido que fui na vida adulta, bem como nas atividades acadêmicas que sempre exerci paralelamente à carreira diplomática. Não existe um só terreno dos conhecimentos em humanidades, mesmo em alto grau de especialização e de sofisticação, no qual eu não descubra uma semente ou um fundamento enraizados naqueles quatro anos durante os quais frequentei o magnífico ginásio do Brooklin.

Fui, realmente, muito feliz ao longo de todos aqueles anos, cada um deles identificado com algum evento político, no Brasil ou no mundo, que por acaso também me levaram na direção dos estudos de questões internacionais, às quais estou ligado profissionalmente desde meu ingresso na carreira diplomática no final dos anos 1970. Em 1962, por exemplo, ocorreu o famoso episódio da crise dos mísseis soviéticos em Cuba, uma crise geopolítica maior das relações internacionais na era da Guerra Fria, cuja dimensão dramática nós só fomos descobrir, um ou dois anos mais tarde, a partir de uma palestra feita no Vocacional por Oliveiros da Silva Ferreira, um jovem editorialista do venerável Estadão, jornal “reacionário” que eu também aprendi a ler, na precoce idade de treze anos, em função dessa extraordinária abertura permitida pelo Vocacional. O ano seguinte, 1963, foi marcado por lutas camponesas no Brasil, conduzidas pelo famoso advogado Francisco Julião, líder das Ligas Camponesas na zona canavieira no Nordeste (cuja história e geografia também tínhamos estudado com as professores); daí derivou, suponho, meu esquerdismo juvenil, desde muito cedo identificado com os conflitos sociais então em curso. Em 1964, o ano do golpe militar no Brasil, pudemos sentir que algo estava mudando no ambiente externo, uma nova atmosfera que, poucos anos mais tarde, iria se refletir no fechamento, pelo regime autoritário, de todos os ginásios vocacionais existentes no estado de São Paulo. Em 1965, finalmente, a geopolítica mundial voltou à baila, com a revolução cultural na China, e a curiosidade que aqueles eventos misteriosos despertavam em nossas mentes juvenis. Não haverá, por certo, nenhuma surpresa em reconhecer que eu me politizei precocemente no e por meio do Vocacional Oswaldo Aranha, aliás um patrono pelo qual guardo especial afeição: não tenho nenhuma dúvida, hoje, conhecida sua trajetória de estadista e de diplomata, em afirmar que o Brasil teria sido um país muito diferente do que foi se, em algum momento de sua trajetória política, entre o começo dos anos 1930 e o final dos 1950, Oswaldo Aranha tivesse ascendido à suprema magistratura do país.

Os quatro anos que passei no GEVOA, quando consolidei amizades até hoje mantidas, foram, repito, os mais decisivos em minha formação intelectual, de resto em minha própria definição ulterior de vida e de carreira acadêmica, sobretudo na vertente das Humanidades que estou aqui destacando. Foi tão grande o impacto exercido sobre mim pelas duas professoras de Estudos Sociais que se tornou inevitável, chegado o momento, a opção pela mesma área de estudos quando terminei o segundo ciclo do secundário, o colegial na vertente “clássica”, de preferência à “científica” que constituía sua segunda vertente. À diferença, provavelmente, de todas as outras disciplinas que “enfrentei” ao longo dos estudos de graduação e de pós-graduação, jamais dispendi qualquer esforço adicional no estudo de matérias atinentes à História e à Geografia, tão forte e tão sólida foi a minha formação nessas duas áreas. Devo à Dona Odila e a Dona Mariazinha esse meu convício natural com as duas disciplinas-fundadoras dos estudos sociais, que elas justamente explicavam a partir de suas raízes clássicas, na Grécia antiga, mas que elas traziam até os grandes mestres fundadores das ciências sociais no Brasil, os grandes nomes que pontificavam dos anos 1930 aos 1950.
De todas as áreas e domínios das ciências sociais e das humanidades em geral, foram essas duas matérias que sempre me deram um prazer indescritível em ouvir, em ler, em sintetizar, e mais tarde ao escrever. De todos os exames, bastante rigorosos, que fiz para o ingresso na carreira diplomática, quando tive de me debruçar sobre livros de direito, de economia e de inglês, praticamente não me ocupei, quase nada, de História e de Geografia, tão forte era a minha confiança no conhecimento acumulado desde a primeira adolescência nessas duas disciplinas. A lembrança das duas jovens professoras foi inevitável naquelas horas, como ainda é hoje, cinquenta anos depois de concluído o Vocacional e quase quarenta de vida profissional e acadêmica.

Às duas professoras, meu sincero carinho e meu total reconhecimento, com um grande sentimento de satisfação intelectual por ter tido o privilégio de desfrutar de suas aulas altamente motivadoras. Minha homenagem especial à Dona Odila Feres, meu “anjo da guarda geográfico”, presença ainda viva e testemunha vibrante dos nossos “anos dourados” de incorporação ao mundo juvenil (na verdade quase adulto, tão ricas e profundas eram suas aulas nesse terreno).
Muito do que sou hoje, intelectualmente falando, devo ao que aprendi nesses anos do Vocacional Oswaldo Aranha, em especial com as minhas duas professoras preferidas. Devo a elas o primeiro contato direto, fascinante, com a obra de um grande historiador brasileiro, como também a oportunidade de erigir em padrão de conduta na pesquisa acadêmica o “ceticismo sadio” do arqueólogo uspiano, atitude que sempre caracterizou todos os meus empreendimentos intelectuais desde então. Lições como essas não se aprendem apenas nos livros: elas requerem pessoas mais espertas que nos guiem os passos e as reflexões.
Muito obrigado, de coração, e um grande beijo de saudades... 

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 2921: 19-21 de janeiro de 2016, 7 p.

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