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segunda-feira, 14 de março de 2016

Ainda falando de diplomacia brasileira, um capitulo disponivel - Paulo Roberto de Almeida

Já informei sobre a publicação deste livro, agora recebido em pdf, e que coloco à disposição dos interessados, no qual colaborei com um texto que havia escrito para minha participação num seminário especial da PUC-RS em 2013, que transcrevo no corpo desta mensagem, para os muito apressadinhos:


1186. Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica: uma síntese tentativa”, 
In: Marçal de Menezes Paredes et al. (orgs.), Dimensões do poder: história, política e relações internacionais (Porto Alegre: EDIPUCRS, 2015, 191 p.; ISBN livro impresso: 978-85-397-0714-0; ISBN livro digital: 978-85-397-0715-7); pp. 135-164; 
anunciado no blog Diplomatizzando (06/08/2015; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2015/08/padroes-e-tendencias-das-ri-do-brasil.html). 
Relação de Originais n. 2522.
 

Padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica: uma síntese tentativa

Paulo Roberto de Almeida
Texto preparado para o IX Congresso de Estudos Ibero-Americanos da PUC-RS.
Apresentado em 29/10/2013; versão para publicação: 17/01/2014.

Esquema do trabalho:
1. Introdução: premissas conceituais e suas limitações
2. Periodização tentativa: cinco momentos das relações internacionais do Brasil
     2.1. O Império: a construção da nação e as bases de sua diplomacia
     2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa
     2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo
     2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático
3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil
     3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo
     3.2. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal
     3.3. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional
     3.4. Por fim, a era do nunca antes: a diplomacia personalista de Lula
4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?
5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização


Resumo: Ensaio histórico sobre as grandes linhas das relações internacionais do Brasil e sobre seu processo de desenvolvimento ao longo dos séculos 19 e 20, com considerações mais detalhadas sobre as características da política externa no período recente, em especial as diplomacias conduzidas nas presidências FHC e Lula. Seguem-se argumentos de cunho qualitativo sobre as deficiências notórias do desenvolvimento brasileiro, sobre a origem puramente interna das dificuldades atuais, concluindo pela necessidade de reformas estruturais e uma opção pela inserção na globalização.

Palavras-chave: relações internacionais, política externa, Brasil, diplomacia, desenvolvimento, globalização.

Nota sobre o autor: Paulo Roberto de Almeida é mestre em planejamento econômico, doutor em ciências sociais, diplomata de carreira, professor de Economia Política nos programas de mestrado e doutorado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub) e autor de diversos trabalhos de história diplomática do Brasil e de relações econômicas internacionais (www.pralmeida.org). As opiniões e argumentos desenvolvidos no presente ensaio são as do próprio autor, e não refletem posições ou políticas da instituição diplomática ou do governo brasileiro.



1. Introdução: premissas conceituais e suas limitações
Abordar a problemática dos padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica implica, implícita ou explicitamente, examinar as mudanças de regime ocorridas em suas configurações ao longo do tempo, discorrer sobre eventuais paradigmas ou conceitos unificadores daquelas características em suas diferentes etapas, bem como tentar detectar aquilo que se costuma chamar de “linhas de continuidade” ou, alternativamente, “momentos de ruptura”, isto é, conjunturas de descontinuidade em relação aos traços predominantes na fase anterior. Representa também identificar os componentes definidores das relações exteriores do Brasil, no seu sentido amplo, em cada um dos períodos pretensamente homogêneos da história nacional, e aplicar, a esses conjuntos, alguns rótulos que supostamente ofereceriam uma síntese de suas identidades respectivas em uma dinâmica de sucessão de políticas.
Tais exercícios de síntese não faltam na historiografia nacional, eventualmente até na área das relações internacionais do Brasil, embora sejam bem mais comuns nas áreas da história política ou da econômica. Eles começam sempre por algum tipo de periodização, que serve, justamente, para delimitar as grandes fases da história nacional. Os marcos definidores mais comumente aceitos na historiografia nacional poderiam ser representados por estes processos ou etapas da vida nacional: o período colonial, o primeiro e o segundo reinados (eventualmente intercalados pelas regências), a velha República, a era Vargas, a República de 1946, o regime militar e, para a fase mais recente, a chamada “nova República”, também identificada como de redemocratização, embora já se esteja longe do processo de reconstrução institucional do final dos anos 1980 e do início da década seguinte.
Esses ensaios de periodização também podem se fixar numa vertente menos linear politicamente, e mais de tipo econômico, a partir das grandes características estruturais de cada época: a economia primário-exportadora, a era (e a diplomacia) do café, a industrialização substitutiva de importações, o nacional-desenvolvimentismo dos anos 1950, a modernização-autoritária do período militar, ou um alegado (pelos seus adversários ideológicos, mas totalmente inexistente) “neoliberalismo” dos anos 1990, com eventualmente mais alguns processos intermediários. Vários desses rótulos, no entanto, são necessariamente simplificadores e sempre estarão sujeitos às revisões historiográficas que normalmente ocorrem nas ciências humanas e sociais. Pode-se também argumentar que alguns rótulos são francamente ideológicos, como parece ocorrer com o presumido “neoliberalismo”, que alguns observadores – talvez até historiadores – querem associar aos processos de abertura econômica e de liberalização comercial dos anos 1990, uma classificação altamente improvável no caso de um país que jamais foi liberal, muito menos neoliberal, e sempre seguiu uma cartilha abertamente intervencionista, mesmo quando se tratou de corrigir os excessos do estatismo anterior (com governos sempre recorrendo a decretos e medidas provisórias).
A fase recente, ou seja, as administrações identificadas com o presidente Lula e o Partido dos Trabalhadores, tem se prestado a algumas das simplificações e abusos a que se submetem alguns momentos de ruptura, quando sua interpretação e registro são dominados pelos discursos daqueles mesmos que querem fazer acreditar que este período de “história imediata” tenha sido de fato marcado por mudanças cujo caráter eles previamente se encarregaram de definir segundo um rótulo escolhido a propósito. Demonizar a chamada “herança maldita”, pespegar o rótulo equivocado de “neoliberal” a qualquer orientação de política econômica que não lhes parece condizente com seus objetivos protonacionalistas e reconhecidamente estatizantes, arrogar-se a pretensão de retomada da “política externa independente” de outras eras, tudo isso faz parte mais da luta política e ideológica do que da análise acadêmica, como deveria ser o propósito legítimo de qualquer governo sério. Tais explicações, convenientes do ponto de vista dos que pretendem definir os traços do período, geralmente em oposição ao que existia no período anterior, e favoravelmente ao que seus protagonistas querem realçar como alegada excelência do seu próprio momento – que seria insuperável em suas qualidades e benfeitorias para o país, como eles gostariam de registrar – podem ser enfeixadas sob dois outros rótulos: fraude acadêmica e desonestidade intelectual.
Como tentar, então, falar de padrões e tendências das relações internacionais do Brasil no longo prazo, da independência à era contemporânea, sem incorrer em alguns desses rótulos simplificadores e buscando ser o menos ideológico possível?  O exercício é arriscado, inclusive porque o autor destas linhas não costuma prender-se a conceitos acadêmicos, mesmo os mais sofisticados – como, por exemplo, a autonomia pelo distanciamento, ou a mesma, pela participação – nos trabalhos mais descritivos ou interpretativos produzidos nos últimos anos, e tampouco se deixa enredar nas legitimações oficiais das políticas públicas, que sempre trazem a marca da chamada langue de bois, mais vulgarmente conhecida entre nós como discurso “chapa branca”. Este ensaio não pretendo sucumbir a qualquer um dos escolhos que costumam marcar certos consensos acadêmicos ou que soem frequentar os escritos e discursos de acadêmicos ou diplomatas. O autor não se considera suficientemente acadêmico para juntar-se às manias temporárias das academias, nem se assume como um diplomata politicamente correto para aderir acriticamente ao discurso do momento, aliás, de qualquer outro momento. Ele se vê apenas um observador da realidade ambiente e um estudioso da história, o que lhe permite fazer seus próprios julgamentos, sem ter de apelar a paradigmas universitários consagrados ou submeter-se a qualquer versão oficial da história. A História, aliás, não pode ter versões oficiais, pelo menos não deveria, ainda que governos, ou melhor, pessoas de governos sempre tentem assim proceder.
Mas mesmo adotando uma perspectiva libertária no plano intelectual, e pouco disciplinada no contexto profissional, não é fácil escapar de certos constrangimentos metodológicos e de algum enquadramento conceitual, que estão inevitavelmente vinculados a qualquer tipo de empreendimento acadêmico que se pense fazer em torno da questão, tal como posta aqui: padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica. Este ensaio procurará ser o mais objetivo possível, ainda que não se possa evitar algum grau de subjetividade na escolha dos temas e das questões relevantes que é possível identificar nessa área relativamente complexa da atividade governamental.

2. Periodização tentativa: cinco momentos das relações internacionais do Brasil
Em qualquer tipo de exercício histórico, é inevitável começar por algum tipo de periodização, abordagem aliás incontornável, em vista das importantes transformações, com graus diversos de aprofundamento, que o Brasil enfrentou desde sua constituição, enquanto Estado nacional independente, até o período contemporâneo, tanto na esfera política quanto no domínio econômico.
Podemos adotar, para tal exercício, a divisão clássica da historiografia nacional, que cobre razoavelmente bem os três primeiros períodos, e que podem circunscrever, igualmente, as relações externas da nação: o Império, até 1889; a Velha República, até 1930; e a era Vargas, que, numa certa concepção, vai até 1964. O regime militar, de 1964 a 1985, representaria um quarto período identificado com um rápido e intenso processo de modernização do país, mas com pouca, por vezes quase nenhuma, autonomia da cidadania no que se refere à representação política e os espaços decisórios a ela correspondentes, que de fato não foram livres e estiveram muito pouco abertos a concepções alternativas de organização econômica e política da nação; mas ele também correspondeu a uma forma peculiar de o Estado organizar as suas relações exteriores. Por fim, à falta de melhor termo, e como se trata de um espaço de tempo que cobre, grosso modo, uma geração, costumamos nos referir ao período contemporâneo, o quinto da periodização aqui adotada, como sendo a era da redemocratização, mas este é um termo genérico, ou indistinto, que provavelmente será revisto pela historiografia do futuro; afinal, no que se refere às suas relações exteriores, a redemocratização também correspondeu a um novo perfil com o qual o Brasil se apresentou na cena internacional.
Como parece mais interessante, ou necessário, examinar este último período de forma mais detalhada, ele será dividido, por sua vez, em quatro diferentes momentos das últimas três décadas: (a) a redemocratização, estrito senso, que corresponde ao processo de reconstitucionalização do país, entre os anos de 1985 e 1989, quando também o país passou a oferecer um outro discurso no plano externo, tendo retomado, por exemplo, o processo de integração regional; (b) os anos de crise e de transformação, uma conjuntura bastante confusa que corresponde à aceleração inflacionária e às crises político-econômicas dos anos 1990-1994, culminando na estabilização do Plano Real, período no qual as relações financeiras internacionais do Brasil podem até ter prevalecido sobre outros aspectos de suas relações internacionais; (c) a consolidação da estabilidade e a reinserção do Brasil no mundo, num movimento bastante aberto e receptivo à globalização, anos que correspondem aos dois  mandatos de Fernando Henrique Cardoso; e, finalmente, (d) a grande afirmação internacional do Brasil e a transformação do cenário político nacional, nos anos distributivistas do governo Lula, que foram identificados à chamada diplomacia Sul-Sul, período ainda em aberto.
O ensaio tratará perfunctoriamente dos quatro períodos anteriores à fase contemporânea, que figuram aqui apenas a título de enquadramento histórico preliminar à discussão dos problemas atuais da relações internacionais do Brasil. Maior atenção será dedicada, como já indicado, ao período atual, mesmo sob risco de algumas dificuldades interpretativas, já que o discurso oficial da diplomacia brasileira, por um lado, ou os diversos enfoques analíticos privilegiados na academia, por outro, sempre podem estar sujeitos a certo imediatismo de tipo subjetivo ao tratar da presente fase.

2.1. O Império: a construção da nação e as bases de sua diplomacia
A emergência do Estado, no Brasil, e portanto, de suas relações internacionais, se fez com base na herança portuguesa deixada por D. João VI em 1821. Na “herança” figuravam os conflitos no Prata, algumas pendências com Estados europeus (Espanha, por exemplo) e diversos compromissos assumidos pela ex-potência colonial obrigando o Brasil, como o tratado de comércio de 1810, com a potência protetora, ou já em nome do Reino Unido, como o de abolição do tráfico, no quadro do Congresso de Viena. Eles não deixaram de apresentar consequências práticas para a economia do Estado nascente. A primeira providência, contudo, foi a de assegurar o reconhecimento do novo Estado, processo que se delongou por três anos, tempo necessário para concretizar negociações com Portugal e com a Grã-Bretanha, de escopo sobretudo financeiro. O Brasil começou  assumindo para si empréstimos contraídos pela Coroa portuguesa na Grã-Bretanha, e também por acatar indenizações em favor do soberano português: a longa trajetória, tortuosa e torturada, da dívida externa começou naquele mesmo momento.
Os esforços para assegurar o livre trânsito no Rio da Prata – indispensável para o acesso às províncias brasileiras do interior, pela via dos rios da bacia platina – e certo controle de segurança sobre as fronteiras meridionais também ocuparam a nascente diplomacia, na qual iniciativas tomadas pelo próprio primeiro imperador muitas vezes predominavam sobre as opiniões da Assembleia Geral ou sobre outras orientações do governo de gabinete. A guerra em torno da Cisplatina, bem como as desavenças familiares em torno da sucessão do trono português consomem recursos e a atenção do chefe de Estado, terminando por gerar conflitos políticos que encontrariam o seu desenlace no ato de abdicação de 1831. Antes, contudo, frustrado pela recusa da Grã-Bretanha em renunciar às vantagens que lhe tinham sido concedidas pelo tratado de comércio de 1810, o governo resolver estender os privilégios da tarifa baixa aos demais países que buscavam estabelecer relações comerciais com o Brasil. O problema do tráfico foi outro irritante nas relações com a principal potência da época, questão sobre a qual as elites dominantes do Brasil tergiversaram enquanto foi possível, em meio a demonstrações da prepotência britânica; o assunto se arrastou por um quarto de século após um tratado de “abolição” (“para inglês ver”) de 1826, até ao lei de proibição do tráfico de 1850.
As regências foram mais dominadas por conflitos internos do que externos, ainda que a situação turbulenta do Prata e outras incertezas quanto às fronteiras amazônicas continuassem preocupando o governo. Mas foi nessas circunstâncias que foram assentadas algumas das bases da diplomacia imperial, entre elas a preocupação com os equilíbrios do Prata, o que significava, basicamente, garantir a independência do Uruguai e do Paraguai em face das pretensões e dos interesses de Buenos Aires, cujos líderes pretendia reconstruir o Vice-Reinado do Prata, que se estendia até o sul da Bolívia. Essa preocupação levou o Brasil a mais de uma intervenção nos assuntos internos do Uruguai, um dos vetores para assegurar esse equilíbrio e a liberdade de acesso, o que culminou com a aliança com os inimigos de Rosas, ditador de Buenos Aires, e acabou resultando, mas por outros motivos, na guerra do Paraguai. Esse conflito, a maior guerra na qual o Brasil se envolveu, é até hoje uma tragédia paraguaia, deixando marcas também em certa historiografia enviesada; ela foi oportunamente revista, e corrigida, pelo historiador Francisco Doratioto, cujo livro, Maldita Guerra, desfaz muitos mitos e equívocos cometidos por historiadores dos quatro países envolvidos no conflito.
O Império não tinha vergonha ou remorsos de suas intervenções no Prata, comportamento de certa forma “imperial” que, a partir da era Vargas passou a ser apagado da historiografia nacional, num exercício precoce de revisionismo histórico: tenta-se eludir o fato de que o Brasil praticou intervenções nas tribulações platinas, não exatamente para ampliar o território, mas para garantir a segurança e a integridade de suas fronteiras meridionais. O Império foi um renitente tomador de empréstimos externos, e um bom pagador, ainda que fosse eventualmente obrigado a contrair novos empréstimos para pagar os anteriores. Mas o Império sempre honrou as suas dívidas, o que já não mais seria o caso da República, que incorreu em moratórias e em insolvências diversas vezes ao longo de mais de um século de anarquia emissionista e de esquizofrenias econômicas.

2.2. A Velha República: os mitos e as deficiências da política externa
A República começou confusa, revisando as bases da diplomacia imperial, e se mostrando simpática aos americanos do norte e do sul, consoante o refrão do Partido Republicano: “somos da América e queremos ser americanos”. Com os primeiros foi contraído um acordo comercial rapidamente descontruído pelo errático protecionismo americano, embora nunca tivesse havido, na história econômica mundial, país tão protecionista quanto o Brasil, sob o Império, sob a República, sob qualquer regime, até hoje, aliás. Com os segundos, mais especialmente com os argentinos, o primeiro chanceler da República acertou um acordo de fronteiras que praticamente deixava o Rio Grande do Sul isolado do Brasil, já que reproduzindo alguns mapas mal desenhados do tratado de Madri; o Congresso recusou aprovação para esse acordo mal costurado, o que permitiu a Rio Branco começar a brilhar, logo depois, na demarcação por via arbitral das fronteiras da pátria. Justamente, nos primeiros dez anos de regime republicano, o Brasil teve praticamente dez chanceleres, senão mais, ao passo que teve um só, nos dez anos seguintes. O Barão se identificou tão completamente com as bases da política externa do Brasil que virou o patrono da diplomacia brasileira, passando a figurar em cédulas de praticamente todos os regimes monetários desde 1913. Estes foram muitos, ao longo do século XX: mil-réis (e bilhetes da caixa de conversão em 1906), cruzeiro em 1942, cruzeiro novo em 1967, de volta ao cruzeiro três anos depois, cruzado em 1986, cruzado novo em pouco mais de dois anos, cruzeiro de volta em 1990, cruzeiro real e, finalmente, o real (o Barão do Rio Branco só esteve ausente da URV, pois esta não conheceu bilhetes impressos, já que tratou de uma moeda virtual).
Na Velha República, assim como o Brasil era café e o café era o Brasil, a diplomacia era o Barão e o Barão era a diplomacia: desde então, nunca mais se conseguiu superar o paradigma, embora alguns tenham tentado imitá-lo, até em longevidade. Mas o Barão tinha uma noção muito precisa do equilíbrio que era preciso manter entre os interesses europeus e americanos no Brasil, e sobre como conduzir os negócios sul-americanos do Brasil, com plena afirmação, sem arrogância, mas também na estrita defesa dos interesses nacionais, sem qualquer concessão a algum vizinho mais afoito ou atrabiliário, de qualquer tamanho que fosse. Ela não dava muita relevância para ideologias, mas dava, sim, muito valor às ideias, se possível claras, diretas, sem afetação e sem ceder a modismos circunstanciais, e sem precisar lembrar o tempo todo que estava defendendo a soberania nacional (para ele isso era tão evidente que sequer precisava ser dito, o que poderia denotar algum sinal de insegurança psicológica). Sem bravatas, conseguiu manter a Argentina no seu lugar – ou seja, sem interferir na capacitação estratégica do Brasil – e também entreteve boas relações com bolivianos, assim como o teria feito com bolivarianos, se por acaso existissem em sua época.
O Barão não cultivava nenhuma mania de catalogar geograficamente a política externa, para o Norte, para o Sul, ou para qualquer direção: ele simplesmente cuidava pragmaticamente da política externa, e sempre disse, desde o primeiro dia, que não tinha entrado no governo para servir a partidos, e sim ao Brasil. Uma lição razoável para os dias que correm, embora não se possa esperar que todos os homens públicos sejam razoáveis, ou pautados pelo simples bom senso, como parecia ser o Barão.
Uma das grandes questões das relações internacionais do Brasil, que o Barão teve de administrar em sua época – mas a mesma questão permanece até hoje, cem anos depois, ainda que de forma talvez um pouco diferente – foi a transição de projeção de poder entre o velho hegemonismo imperial britânico e a crescente ascendência da nova potência americana, o que ele fez de modo muito natural, sem qualquer demanda por uma relação especial e sem afetar qualquer tipo de hostilidade vazia ou descabida. Quando teve de opor-se a posições americanas – o que ocorreu tanto na conferência americana do Rio de Janeiro, quanto na segunda conferência da paz da Haia – ele assim procedeu sem pedir licença a ninguém, mas também sem vangloriar-se de tal feito. Não precisou ficar agredindo a potência hemisférica apenas porque ela não reconhecia o papel do Brasil na região e em outras esferas.
Depois do Barão, o Brasil conheceu pequenos e grandes chanceleres, como Oswaldo Aranha, por exemplo, que, já na era Vargas, soube avaliar muito bem onde estavam os interesses brasileiros numa era de enfrentamentos globais, tendo conseguido preservar tanto a autonomia do Brasil quanto alianças estratégicas adequadas e convenientes em função dos interesses de longo prazo do Brasil, numa conjuntura em que muitos apostavam na ascensão das potências fascistas.

2.3. A era Vargas: escolhas estratégicas, a despeito de tudo
A menção a Oswaldo Aranha nos leva justamente à era Vargas, que começou quando os gaúchos amarraram seus cavalos no Obelisco do Rio de Janeiro, para ali ficar durante algumas décadas, pelo menos até o final do regime militar. A revolução que levou Vargas ao poder não teria acontecido, precisamente, se não fosse por Oswaldo Aranha, um líder decidido, decisivo, e de clara visão quanto aos problemas do Brasil, bem como sobre os melhores caminhos para resolvê-los. Getúlio Vargas, como se sabe, era basicamente um hesitante, ainda que com várias qualidades maquiavélicas – no sentido vulgar da expressão – para preservar-se no poder durante breves quinze anos, como ele mesmo mencionou. Sem a ação de Aranha talvez jamais tivesse acontecido a revolução de outubro de 1930. Sem ele, aliás, provavelmente a política externa do Brasil, no decorrer dos anos 1930, e ao longo da Segunda Guerra, teria sido muito diferente, e talvez o Brasil tivesse ficado na incômoda posição dos argentinos, que mantiveram-se neutros – na verdade simpáticos aos nazifascistas – até quase o final da guerra, e só mudaram de posição por pressões americanas e muitos gestos brasileiros.
Talvez não só a política externa, mas também a própria política econômica do Brasil e sua posição internacional teriam sido muito diferentes, caso Oswaldo Aranha tivesse ascendido a posições ainda mais altas na política nacional, o que ele não fez por amizade e condescendência com Getúlio e em virtude das várias traições deste último. Ele poderia ter sido presidente em 1934, em 1938, na redemocratização pós-1945, e também em qualquer um dos pleitos que foram feitos na República de 1946, até 1960, quando morreu, de certa forma ainda jovem. O Brasil teria adotado outras políticas econômicas, mais liberais, menos estatizantes ou protecionistas, mais abertas ao capital estrangeiro e a uma presença internacional de maior prestígio, graças à inteligência, habilidade política e conhecimento do mundo e dos grandes líderes que Aranha exibia.
Mas estas são hipóteses que pertencem ao terreno da história virtual, aos “big ifs” da trajetória da nação. A era Vargas só termina, de fato, em 1964, quando militares efetivam um golpe para afastar as forças varguistas e populistas que eles consideravam nefastas ao desenvolvimento do país. Antes disso, durante a República de 1946, o Brasil manteve uma política externa tradicional, que um crítico chamou de “bacharelesca”, e que outros apelidavam de “punhos de renda”. De fato, antes que os militares entrassem com os seus punhos de aço – inclusive projetando poder brasileiro sobre outros governos do Cone Sul – os bacharéis da diplomacia brasileira conduziram uma diplomacia bastante previsível em seus grandes traços de alinhamento ao Ocidente durante a Guerra Fria, com alguns momentos de aparente modernização, quando se tentou impulsionar ações e iniciativas próprias do país, sempre voltado para as questões cruciais do desenvolvimento econômico.
O Brasil pretendia, por exemplo – tanto na conferência interamericana de Bogotá, em 1948, quando se criou a OEA, quanto nas demais conferências econômicas subsequentes desse organismo, e nas reuniões da Cepal, ou no projeto de JK de uma Operação Pan-Americana – que os Estados Unidos financiassem uma espécie de Plano Marshall para a América Latina, ou seja, a transferência de capitais governamentais americanos para impulsionar o desenvolvimento econômico da região. Os EUA sempre responderam – aliás pela boca do próprio Marshall, em Bogotá – que os países latino-americanos deveriam reformar e modernizar suas estruturas econômicas, abrir-se ao comércio e aos investimentos estrangeiros, e apoiar-se bem mais nos capitais privados do que em grandes projetos governamentais, se desejassem manter ritmos de crescimento sustentável, ademais de melhorar a educação, a distribuição de renda e de terras. As mesmas recomendações eram feitas, aliás, pela Cepal, assim como pela OEA, pelo Banco Mundial e por muitos economistas estrangeiros e da própria região. O Brasil, assim como outros países da região, aprecia os capitais estrangeiros, mas não tanto os capitalistas estrangeiros, assim que o seu grau de abertura externa sempre permaneceu limitado, estritamente dependente de capitais de empréstimos.
O Brasil, em todo caso, soube fazer algumas escolhas estratégicas, como foi a industrialização impulsionada pelos capitais estrangeiros da era JK, que os nacionalistas da época depreciavam como sendo entreguista e submissa ao imperialismo. O Brasil, de fato, deu seu primeiro passo no sentido de avançar na industrialização plena nessa época, processo que depois seria completado pelos militares, mas com as deformações estruturais que se conhecem – de protecionismo excessivo, de introversão tecnológica, de custos muito altos – que pesariam muito na fase ulterior de descontrole inflacionário e de baixo coeficiente de abertura externa.
A chamada “política externa independente”, que teve início com Jânio Quadros e Afonso Arinos, e continuou sob Jango e seus muitos ministros, transformou-se numa espécie de mito histórico, tendo sido magnificada muito além das realizações efetivas; ela aparece, retrospectivamente como tendo sido excepcional, devido, em certa medida, à radical reversão de orientações na primeira fase do regime militar. Registre-se, porém, que esta reversão ao alinhamento quase incondicional se desenvolveu por um tempo relativamente limitado, pois a partir de 1967, no segundo governo da era militar, já ocorreria uma recondução a padrões mais afirmativamente desenvolvimentistas e orientados para o pleno exercício da soberania brasileira. As avaliações acadêmicas sobre a PEI, assim como as dos próprios diplomatas, estão, talvez, ainda impregnadas de certo viés saudosista e de algum sentimento de perda; caberia, provavelmente, uma revisão historiográfica mais acurada, para recolocá-la em seu contexto histórico de mudança geral nas relações internacionais – processos como os da descolonização e de um começo de détente entre as duas grandes potências – e também nos próprios padrões da diplomacia brasileira, que seguia as transformações rápidas que passaram a ocorrer no país desde meados dos anos 1950.

2.4. O regime militar: consolidação do corporatismo diplomático
Consoante a intenção de discorrer brevemente sobre a diplomacia brasileira das eras que precederam o período contemporâneo, cabe também ser breve sobre o regime militar, em grande medida porque já existem dezenas de teses acadêmicas e muitos livros sobre o período, inclusive do ponto de vista diplomático, mas cuja qualidade e sobretudo objetividade, como soe acontecer em relação a muitas outras avaliações dessa fase autoritária da história nacional, podem ser consideradas divergentes, em função, precisamente, dos preconceitos políticos e da memória “sentimental” da geração que viveu na carne aquelas duas décadas de fechamento político e de muita contestação por parte da chamada intelligentsia nacional. Tais circunstâncias políticas podem dificultar um julgamento mais matizado sobre o período, feito de grandes traumas políticos, é verdade, mas também de grandes avanços econômicos, ainda que marcados pelo super-centralismo estatal e uma política de super aquecimento da máquina econômica, o que parece ter ecos ainda atualmente. A historiografia brasileira sobre o período também mereceria um sério esforço de revisão, para afastar maniqueísmos e simplismos que ainda caracterizam boa parte da literatura especializada produzida em torno e a propósito do regime militar.
Em todo caso, na diplomacia, depois de alguns poucos anos de alinhamentos com o império – o que levou o Brasil a romper com Cuba, a enviar tropas para a República Dominicana, e aprovar uns quantos atos favoráveis ao capital estrangeiro na legislação econômica – logo se voltou, até com maior empenho, a um padrão de comportamento que foi chamado de desenvolvimentista (certamente) e de terceiro-mundista, no sentido mais corriqueiro da palavra. Em outros termos, se passou ao alinhamento em favor de teses reformistas da ordem econômica internacional, do tratamento especial e diferenciado em favor dos países em desenvolvimento, do princípio da não-reciprocidade nas relações comerciais, de modo a refletir as novas aspirações das economias que buscavam industrialização e acesso a mercados. Os problemas da nova postura não estavam aí, contudo, e sim na tentativa de capacitação nuclear plena, inclusive para fins não declarados, o que envolvia não apenas a recusa formal dos mecanismos de não-proliferação nuclear e de salvaguardas aplicadas às tecnologias duais e sensíveis, como implicava também conflitos potenciais com as potências guardiãs da ordem nuclear e com a própria Argentina, cujos sucessivos regimes militares (e também civis) perseguiam igualmente a tecnologia nuclear, numa competição pouco saudável para ambos os países.
Ocorreram conflitos menores com os Estados Unidos, no terreno comercial e em diversas votações dos organismos da ONU, no contexto subjacente do enorme problema da dependência financeira e da quase completa dependência da importação de petróleo, uma vez que o histórico nacionalismo petrolífero não permitia qualquer associação da monopolista estatal com empresas estrangeiras, obviamente mais capacitadas em tecnologias de prospecção e de exploração. Havia também o clima de renovada Guerra Fria, com a aparente expansão mundial da União Soviética, o que levou o Brasil à participação em alguns golpes contra regimes ditos progressistas na América do Sul, cujos contornos e intensidade não foram ainda totalmente esclarecidos pelos arquivos militares e diplomáticos. De resto, os militares conduziram uma política econômica, e externa, bastante nacionalista e autárquica, o que levou o Brasil a inacreditáveis índices de autossuficiência no abastecimento interno, que jamais seriam igualados desde então, embora o protecionismo comercial continue renitente, e até renovado em sua pujança.
O regime militar foi, justamente, mais derrotado pelos seus erros econômicos – inflação galopante, crise da dívida externa, crescimento errático – do que pela eventual dureza da ditadura política, relativamente morna comparada a padrões mais brutais observados em países vizinhos. Os cidadãos brasileiros saíram às ruas para protestar contra a ausência de eleições diretas, mas, na verdade, a transição foi negociada e basicamente aceita pelos militares, inclusive porque se partiu de uma dupla anistia que alguns pretendem atualmente revisar, com certo ânimo de vingança. O regime militar se esgotou nele mesmo, mais do que foi derrubado pelas forças de oposição, ainda que existisse um forte movimento de opinião contrária. Os militares não tinham sucessor próprio, e aceitaram compor, em 1984, com o candidato moderado das oposições.
No âmbito da política externa, pode parecer estranho, mas foi um dos períodos em que os diplomatas se sentiram mais “livres”, se cabe o contraditório, no sentido em que a corporação dos militares respeitava muito a casta dos diplomatas e lhe concedeu, salvo em poucas áreas consideradas de segurança nacional, ampla autonomia política e operacional, inclusive com os vários diplomatas se sucedendo à frente do Itamaraty. A Casa se profissionalizou mais ainda, criando uma corporação bastante autocentrada, que depois seria objeto de críticas de certa diplomacia partidária que se manifestou mais adiante. Em todo caso, a autonomia funcional obtida durante o regime militar tinha suas peculiaridades e a historiografia especializada ainda precisa fazer o balanço dessa época, no que tange o aparato institucional do Itamaraty no período.
Sob o regime militar, os valores e princípios essencialmente profissionais cultivados pela diplomacia foram ainda mais acentuados por uma relativa introversão do corpo diplomático no estrito cumprimento de seus deveres funcionais, o que de certa forma foi permitido pelo mútuo respeito que mantinham as duas corporações mais tradicionais do Estado brasileiro – soldados e diplomatas –, aliás, de qualquer estado. Assim, o estamento diplomático preservou as tradições de profissionalismo e de adesão aos grandes princípios, mesmo quando certas iniciativas do regime – em relação a governos progressistas na América do Sul, por exemplo – destoaram do padrão normalmente seguido pela estrita politica de não intervenção do Itamaraty.
O alto profissionalismo de seu corpo de funcionários permanentes, o respeito absoluto ao direito internacional, a seriedade no tratamento dos dossiês diplomáticos, a preservação das tradições herdadas do Império (de fato, as boas qualidades da velha diplomacia lusitana) passaram a ser, assim, uma marca distintiva do serviço exterior brasileiro em face de congêneres no continente e além. “El Itamaraty no improvisa” era uma frase muito ouvida na Casa de Rio Branco durante décadas, tanto se tornou um refrão repetido incessantemente durante anos a fio, mas caberia indagar se ela ainda é válida, não exatamente na diplomacia, mas na política externa. A principal ferramenta da diplomacia é o corpo de funcionários permanentes a ela dedicados, mas o conteúdo mesmo da política externa é dado pelo soberano, seja ele, dependendo do país, o monarca, um chefe de gabinete, o presidente ou até um ditador ou uma junta militar.

3. A redemocratização e as relações exteriores do Brasil
A quinta etapa desta periodização tentativa é a atual, aliás imediatamente contemporânea, fase que costuma ser enfeixada sob o conceito de redemocratização, ou de Nova República, o que parece pouco apropriado para uma correta apreciação de todos os seus matizes e rupturas, por vezes dramáticas, seja no plano político, seja, especialmente, na área econômica. O termo tampouco se presta a uma caracterização mais precisa de suas implicações e peculiaridades do ponto de vista da política externa; esta tem a ver com a capacidade de projeção externa e de defesa dos interesses do país no plano mundial, o que também tem pouco a ver com a natureza de um determinado regime político. Algumas considerações iniciais, de caráter conceitual, são de rigor.
Ditaduras exibem política externa e capacidade de projeção internacional, tanto quanto as democracias. Por vezes se tem a situação esdrúxula de ver democracias ditas ideais se comportarem de modo arrogante no plano externo – comportamentos ditos imperiais, ou unilaterais –, assim como perfeitas ditaduras podem exibir, por exemplo, uma política externa formalmente correta, sem ofender o direito internacional. É claro que um país democrático sempre possuirá uma melhor imagem internacional do que uma ditadura aberta. O Brasil dos militares não conformou a pior das ditaduras do planeta, e certamente não no plano regional, mas não se pode negar que a volta à democracia e o respeito aos direitos humanos, tanto quanto a estabilidade econômica, fizeram um bem enorme ao Brasil, desde meados dos anos 1980 e especialmente após conquistada a estabilidade econômica. Ainda persistem problemas quanto ao respeito dos direitos humanos, não por motivos políticos, mas de pessoas comuns; também esses aspectos serão corrigidos, pouco a pouco...
A redemocratização é, portanto, um conceito inadequado, para discorrer sobre a evolução e as novas características da política externa brasileira, que deve ser vista em seu âmbito próprio, inclusive porque a diplomacia pode guardar certa distância das tribulações da política interna. Por isso mesmo, uma nova subdivisão se impõe como forma de apreender as mudanças ocorridas ao longo do último quarto de século.

3.1. Uma periodização diplomática para o período contemporâneo
O ano de 1985 é o ponto de partida de um período marcado pela reconstrução constitucional do país, depois de mais de duas décadas de regime autoritário militar. Ele foi seguido pelos anos turbulentos de reformas econômicas e sociais, com a chamada ruptura do “neoliberalismo” – um termo profundamente equivocado, mas que pode contentar os mais estatizantes, ao risco de descontentar os verdadeiramente liberais. O período de reconstitucionalização foi marcado por algumas importantes mudanças conceituais e práticas nas relações internacionais do Brasil.
Essa segunda fase do período contemporâneo foi especialmente conturbada em todas as frentes das políticas públicas, mas ela desembocou no processo de estabilização macroeconômica comandada por FHC – primeiro como ministro econômico, depois em dois mandatos como presidente –, ela mesma profundamente perturbada pelas crises financeiras dos anos 1994 a 2002, com todos os ajustes adicionais que o país teve de fazer para superar essas conjunturas difíceis nos contextos econômicos nacional e internacional. Finalmente, a partir de 2003, o país entrou numa fase bem diferente das precedentes, e que continua, mesmo na ausência do seu promotor e patrono, com políticas na área externa bastante distintas daquelas seguidas nos períodos anteriores.
Pode-se distinguir, pois, quatro grandes fases da vida política e econômica nacional, desde o final do regime militar, às quais não caberia, por enquanto, atribuir qualquer novo rótulo simplista, o que aliás denotaria uma falsa identidade entre, de um lado, os processos em curso nos terrenos da política e da economia, na frente doméstica e no plano internacional, e, de outro lado, nas relações internacionais do país, uma área que por vezes apresenta um comportamento de certa forma autônomo em relação aos desdobramentos que ocorrem no cenário interno no período contemporâneo imediato.
Essa relativa autonomia das relações exteriores do país, em relação às duras realidades da conjuntura interna, pode ser vista como algo relativamente natural, considerando-se as distintas modalidades de tomada de decisões em cada frente, ou os procedimentos adotados na condução das relações exteriores, mais autocentrados, em face, por exemplo, das intensas pressões que se exercem em qualquer área das políticas públicas na frente interna. Ela também depende da personalidade e do engajamento do presidente, que dispõe de ampla margem de manobra nessa área, mas que também pode escolher para liderá-la um aliado político ou um profissional da própria diplomacia, casos nos quais se apresentam agendas e resultados eventualmente diferentes, em função das próprias personalidades e suas perspectivas políticas. Não se pode tampouco negligenciar os influxos ou demandas externas, já que a agenda internacional se faz, ou se constrói, a partir de outras forças e outras dinâmicas, às quais o país nem sempre consegue influenciar ou se adaptar de modo adequado, sem falar de crises externas, ou de desequilíbrios internos que se transformam em crises de transações correntes ou em outros desafios do gênero.
Em qualquer hipótese, uma característica distingue profundamente as três primeiras fases deste exercício de periodização de sua fase mais recente, a que se desenvolve no presente, enfeixada sob o rótulo ainda provisório do “lulo-petismo”. Nos três primeiros períodos – chamemo-los, simplificadamente de “redemocratização”, de “ruptura neoliberal” e de “reformas globalizadoras” – as relações exteriores do Brasil, no plano estritamente diplomático, estiveram enfeixadas, talvez dominadas, pelo staff diplomático, ou seja, o próprio corpo de profissionais do Itamaraty, que forneceu alguns ministros, conselheiros presidenciais e, mais importante, determinou grande parte da agenda externa, senão toda ela; ocorreu, também, o fato relativamente inédito, desde a ditadura do Estado Novo, de uma grande estabilidade na condução da política econômica, com um único ministro da Fazenda a permanecer durante dois mandatos presidenciais no comando da pasta. O período do “lulo-petismo” foi caracterizado por muitos observadores como sendo o de uma diplomacia partidária, o que parece evidente em muitas opções de política externa, com claro distanciamento em relação às linhas tradicionais de ação do Itamaraty, e também pelo fato de que o conselheiro presidencial é um funcionário do partido, bem mens identificado com as posturas relativamente neutras do corpo diplomático em diversas matérias da política internacional e regional.
Cabe agora examinar, na sequência, os padrões e as características das relações internacionais do Brasil no período atual, ou seja, na fase da redemocratização estrito senso, na fase da ruptura “neoliberal” e dos ajustes reformistas, ambos dos anos 1990, e, finalmente, na fase da diplomacia partidária iniciada com o “lulo-petismo”, ainda em curso. Serão igualmente sugeridos alguns elementos interpretativos sobre as grandes tendências da diplomacia brasileira em cada uma dessas fases, com considerações finais sobre as características do desenvolvimento brasileiro e seus desafios mais importantes.

3.1. A restauração constitucional e os erros econômicos
O processo de reconstitucionalização do país, engajado ao término do regime militar e no seguimento de diversos outros atos relevantes da história política do País, não foi efetuado mediante a convocação de uma Assembleia Constituinte exclusiva, que tivesse trabalhado independentemente das demandas que normalmente se exercem sobre os representantes e partidos engajados na luta pelo poder. Optou-se por um Congresso Constituinte, que procedeu em bases relativamente inéditas, mesmo tendo sido precedido por uma Comissão Constitucional, da qual ele não acolheu formalmente as propostas feitas por um grupo selecionado pelo vice-presidente escolhido na eleição indireta feita no período autoritário, empossado como presidente na doença do titular.
A Constituição saída desse exercício não produziu alterações radicais no plano das relações internacionais do Brasil, mas algumas características merecem ser apontadas na sequência desta apresentação. O novo texto constitucional contemplou toda uma gama de novas garantias e benefícios constitucionais que repercutiram de maneira definitiva na organização econômica e social da nação, mas negativamente, já que distribuindo favores a todos, numa demonstração de inconsciência econômica que corre o risco de comprometer, de maneira estrutural e sistêmica, as possibilidades de crescimento sustentado no Brasil. O contrato social efetuado pela nova constituição andou na direção de distribuir renda e favores, antes de acumular produção e renda ampliada, distorção econômica que ainda não foi corrigida pelos contemporâneos.
A fase da democratização foi marcada por essa mudança política fundamental, ou seja, uma Carta prolixa, carregada de direitos e benefícios para todos os brasileiros, exageradamente nacionalista, ou introvertida, num momento em que o mundo se abria a nova fase da globalização. Mas essa fase também esteve caracterizada por uma inegável deterioração da situação econômica, o que levou as autoridades econômicas a implementar diversos planos de estabilização, todos fracassados até o advento do Plano Real. O Brasil acumulou, nesses anos de 1985 a 1994, mais inflação do que em toda a sua história pregressa, estimada por alguns economistas em cifras astronômicas, na casa de alguns quatrilhões por cento, com todas as trocas de moedas.
Não parece existir, na história econômica mundial, algum outro país que tenha tido, não uma ou duas trocas de moedas, mas cinco ou seis instrumentos monetários sucessivos, num turbilhão de inflação e de mudança de regras poucas vezes visto no cenário mundial das hiperinflações. Senão vejamos: do cruzeiro ao cruzado, em 1986, depois ao cruzado novo, dois anos depois, seguido pela volta ao cruzeiro, logo adiante, que foi por sua vez substituído pelo cruzeiro real, até chegar ao real, passando por uma moeda indexada, a URV, unidade real de valor. Isso se descontarmos a troca do cruzeiro pelo cruzeiro novo, em 1967, voltando ao antigo padrão três anos depois, que por sua vez já tinha se substituído ao mil-réis (uma moeda já inflacionada, como evidenciado pelo seu próprio nome) em 1942. Em matéria de padrões e mudanças de regimes econômicos e monetários o Brasil foi, sem dúvida alguma, um campeão mundial.
As mudanças constitucionais nas relações internacionais estrito senso, foram menos relevantes, ou quase imperceptíveis, registrando-se apenas a consolidação dos valores e princípios pelos quais se deveria guiar o Brasil – promoção e defesa dos direitos humanos, por exemplo, repúdio ao terrorismo, entre outros – e a inscrição, inédita nos textos anteriores, da busca da integração latino-americana como uma espécie de obrigação constitucional imposta ao país no seu relacionamento com os vizinhos. A demanda pela integração regional pode ser até legítima, mas deve-se reconhecer que ela é rara nos anais do constitucionalismo mundial, podendo talvez existir no contexto europeu nas últimas duas ou três décadas.
Esse preceito da integração latino-americana – pela qual lutou o senador Franco Montoro – cria, em todo caso, uma agenda praticamente compulsória para as relações exteriores do país, que terá de buscar atender ao requisito, independentemente do contexto regional, das condições políticas e econômicas vigentes nos países vizinhos, de suas orientações políticas, ou de sua própria factibilidade, para não dizer de sua razoabilidade ou racionalidade econômica. Alguns economistas poderiam argumentar que, de um ponto de vista estritamente econômico, seria muito melhor a abertura econômica e a liberalização comercial unilateral, e a ênfase nos acordos multilaterais, antes que nos esquemas minilateralistas, sempre discriminatórios, do que essa necessidade de se construir um bloco econômico regional, mas aparentemente ninguém cogitou mudar esse dispositivo, no quadro de emendas constitucionais que foram corrigindo, nos anos 1990, os excessos mais evidentes do nacionalismo econômico e do estatismo renitente do texto original da Constituição.

3.2. Os anos turbulentos das revisões radicais do momento neoliberal
A presidência Sarney, a despeito do nome pretensioso de Nova República, representou um retorno do sistema político aos padrões mais usuais da Velha República, com criação de ministérios, cargos, distribuição de favores, a própria mudança para um mandato de cinco anos, no regime presidencialista, contra as expectativas constituintes de um regime de feições mais parlamentaristas e de um retorno aos quatro anos tradicionais da Velha República. A presidência Collor, por sua vez, constituiu um episódio inédito para os padrões conhecidos na Velha ou na Nova República. Começou com uma promessa praticamente impossível, de terminar com a inflação – que ao finalizar o governo Sarney alcançava 80% ao mês – com um golpe de “ippon”, típica de um lutador de caratê, e terminou com a vitória da inflação sobre o caçador de marajás, e seu afastamento da maneira mais melancólica possível, por acusações de corrupção e de desvio de recursos públicos. Em todo caso, o governo realmente começou com um “ippon”, mas sobre as contas dos cidadãos, com o sequestro compulsório de todas as contas bancárias superando um determinado valor; aquele golpe efetivamente paralisou a dinâmica da inflação durante algum tempo, inclusive porque, entre outras violências econômicas e constitucionais, o Plano Collor representou o tabelamento de contratos, tarifas e outros valores, que engessaram a economia num beco sem saída, ou com saídas cada vez mais arbitrárias que representaram, ao mesmo tempo, a volta da inflação, em patamares até mais agressivos do que antes.
A despeito dos malabarismos econômicos, o governo Collor também significou outras transformações no plano da política externa, com implicações importantes ainda hoje, vários deles até positivos para o Brasil, pelo menos numa perspectiva contrária ao que vinha ocorrendo até então, ou ao que poderia ocorrer, se o candidato socialista, Lula, tivesse conseguido ser eleito naquela ocasião, quando o PT defendia um tipo de política econômica diferente do que veio a sustentar quando do primeiro mandato do líder sindical. Com efeito, segundo as promessas do candidato do PT – todas no sentido da nacionalização, estatização, socialização, protecionismo, rompimento de contratos e recusa do pagamento das dívidas públicas –, uma eventual presidência petista poderia aproximar o Brasil bem mais de um governo à la Salvador Allende do que de um líder socialista moderado como Felipe González, responsável pelo ingresso da Espanha na OTAN, na Comunidade Econômica Europeia, pela abertura aos investimentos estrangeiros e outras atitudes contrárias aos velhos dogmas socialistas aos quais se aferram ainda alguns personagens em outros continentes.
Ao lado da abertura econômica e da liberalização comercial – com uma importante reforma tarifária que fez com que o Brasil passasse do protecionismo exacerbado para um protecionismo relativamente moderado, para os padrões históricos da nossa introversão comercial –, o governo Collor tinha a pretensão de retirar o Brasil da condição de primeiro dos países pobres para o último dos países ricos, ou seja, desloca-lo do grupo dos países em desenvolvimento para o clube da OCDE. Ele não o conseguiu, obviamente, inclusive porque as reformas ficaram no meio do caminho, e as resistências de grupos de interesse foram mais fortes do que as intenções do presidente. Mas ele começou a reformular diversos outros aspectos da política externa que estavam colocando o Brasil na condição de “pária” do sistema internacional, como, por exemplo, no terreno da não-proliferação e das tecnologias sensíveis, ou de uso dual.
Com efeito, o Brasil mantinha, ao lado do programa nuclear legal e reconhecido, baseado na construção de centrais nucleares com tecnologia estrangeira e a supervisão da AIEA, um programa paralelo e clandestino, de natureza militar, que visava alcançar o domínio tecnológico e o desenvolvimento prático de um artefato explosivo, o que de resto se chocava com dispositivos mandatórios da Constituição nesse aspecto. Collor operou, portanto, a primeira viragem decisiva na política nuclear brasileira, ao terminar com as loucuras militares, ao aceitar a ratificação plena do tratado de Tlatelolco e ao dar prosseguimento à construção de confiança com a Argentina nessa área, que levaria à assinatura do acordo quadripartite de salvaguardas extensivas – Brasil, Argentina, Abacc e AIEA – e, mais adiante, à aceitação, já por FHC, do famigerado TNP, o Tratado de Não-Proliferação Nuclear de 1968, gesto pelo qual este último é considerado um traidor dos interesses nacionais por vários militares e alguns diplomatas. As escolhas decisivas foram feitas por Collor, e independentemente dos fracassos econômicos, esse crédito diplomático lhe deve ser inteiramente concedido.
Em um outro aspecto, ele também significou um avanço, que ocorreu no âmbito da política econômica externa, mais especificamente, no contexto da integração regional. O processo com a Argentina teve início em meados dos anos 1980, sobre a base de protocolos setoriais, visando uma complementação produtiva e uma abertura apenas recíproca, que deveria ser flexível, gradual e administrada; ou seja, se tratava de um modelo de abertura comercial limitado, conduzindo a fluxos administrados pelos dois governos, numa concepção que se aproximava mais do mercantilismo do século 17 do que do multilateralismo ilimitado, incondicional e não discriminatório do século 20. O que o governo Collor fez foi, por meio da Ata de Buenos Aires, de julho de 1990, substituir o esquema em vigor dos protocolos setoriais e do Tratado de Integração de 1988 por um mecanismo automático, irrecorrível e universal – ou seja, não mais setorial – de reduções tarifárias, conduzindo ao livre comércio com a Argentina na metade do tempo previsto no tratado em vigor (que aliás não garantia que o livre comércio, ou o mercado comum, viessem realmente a existir nos dez anos anteriormente previstos). Nascia aí, verdadeiramente, o Mercosul, que só veio a ser quadrilateralizado um ano depois, mas sobre os mesmos dispositivos de abertura econômica e de liberalização comercial que tinham sido concertados entre os governos Collor e Menem.
O fato de o Mercosul não ter avançado em fases posteriores, ou de ter até regredido, institucionalmente, na fase recente, não tem muito a ver com desvios “neoliberais” cometidos pelos dois governos. Quem conhece o protecionismo exacerbado vivido pelos dois países no anos anteriores à década de 90, não pode em sã consciência achar que o Brasil ou a Argentina estivessem se rendendo ao capitalismo internacional com o modesto grau de abertura operado naquele momento por esses dois governos, apenas em algumas frentes econômicas. A culpa da estagnação relativa e do real retrocesso institucional do Mercosul tem a ver com o descumprimento, pelos governos ulteriores, sobretudo na fase recente, de cláusulas fundamentais do Tratado de Assunção, não por causa dos mecanismos antes criados para operar o estabelecimento de um mercado comum, ou pelo menos de uma união aduaneira, entre os quatro países membros. Brasil e Argentina retornaram ao protecionismo rústico dos anos 1970 e 80, sendo que a Argentina parece ter retornado às patéticas medidas de controles de capitais e de manipulações cambiais típicas da época da grande depressão, nos anos 1930.

3.3. Estabilização macroeconômica e nova presença internacional
Depois do furacão Collor, o Brasil entrou em outro tipo de furacão, mas sob a presidência honesta, ainda que confusa, do vice-presidente Itamar Franco, conhecido pela sua perfeita correção política, mas por alguns rompantes econômicos, que o fizeram trocar três ou quatro vezes de presidentes do Banco Central e de ministros da Fazenda. Finalmente, e para sua sorte, um senador que resolveu esquecer o que tinha escrito nos tempos de desvarios acadêmicos, em torno da teoria da dependência, deu à presidência Itamar a melhor marca de reconhecimento nacional a que um governo pode aspirar numa era turbulenta como a que o Brasil viveu, com a inacreditável aceleração inflacionária do início dos anos 1990.
Com origem nos diversos planos frustrados de estabilização que tinham sido ensaiados desde o governo militar, e de forma crescente e recorrente na “Nova República”, o Brasil passou de uma inflação anual de três dígitos para a casa do milhar, e já tendo conhecido seis trocas de moedas no espaço de uma geração. O que o senador Fernando Henrique Cardoso fez, para seu crédito pessoal, e com a aprovação do presidente, foi juntar uma equipe de jovens e ousados economistas que souberam colocar as bases de um processo de estabilização macroeconômica, não mais baseado em golpes milagrosos e repentinos, mas atacando as bases da dinâmica inflacionaria, autoalimentada pelo mecanismo de indexação generalizada que tinha se estendido por toda a economia brasileira, mas de forma anárquica e sustentado nos mais diversos indicadores de correção de valores (dólar, títulos públicos, índices de preços e o que mais servisse para garantir alguma reposição do poder de compra de uma moeda que já não mais servia de parâmetros para as suas três funções fundamentais e tradicionais).
O Plano Real, cujas características não é necessário descrever aqui, teve uma importância fundamental também para a política externa, pois significou igualmente a recuperação da credibilidade do Brasil nos mercados internacionais, não apenas em termos de atração de investimentos e de contratos financeiros externos, mas sobretudo no que se refere à capacidade do Brasil de engajar-se em processos negociadores com parceiros internacionais em condições minimamente previsíveis quanto à preservação da legalidade jurídica e à capacidade do país de honrar seus compromissos externos num ambiente liberado das ameaças de mudança contínua de regras como tinha sido o caso até ali, e praticamente desde o início da crise do petróleo, ainda nos anos 1970.
Com a casa colocada novamente em ordem a partir do início dos seus dois mandatos, FHC pode dar continuidade à política externa de abertura moderada nos planos regional e mundial e, de forma geral, em relação à globalização, o que era inédito para os padrões históricos do Brasil desde o entre-guerras e que, de certa forma, também voltou a patamares ainda mais modestos na sua sucessão. O Brasil abandonou o conceito difuso de América Latina, em favor do espaço geográfico bem mais concreto da América do Sul, avançou bastante na construção de mecanismos de inserção nos foros mais sensíveis da agenda mundial de segurança – nos terrenos nuclear, espacial, e de exportações de equipamentos de uso dual – e também desenvolveu um diálogo desprovido de vieses ideológicos com as entidades multilaterais da globalização financeira, o que foi relevante em função das turbulências por que o mundo passou a partir das crises do México (1994), da Ásia (1997), da moratória russa (1998) e da própria crise brasileira de 1999, logo seguida pela crise terminal do modelo argentino de estabilização (com forte impacto no Brasil).
FHC estimulou o que passou a ser chamado de diplomacia presidencial, para a qual ele estava amplamente preparado desde seus curtos meses de chanceler, no início do governo Itamar Franco, e em função de sua experiência como acadêmico conhecido internacionalmente. Os bons resultados foram em certa medida obscurecidos pela ocorrência de crises externas e internas, justamente, comprovando, assim, que o processo de estabilização deve ser levado de modo contínuo em todas as frentes da economia, sobretudo nos planos fiscal e monetário. O Plano Real foi amplamente bem sucedido ao desmantelar os aspectos mais nefastos da indexação generalizada em que vivia o Brasil, mas pelo fato de que o presidente Itamar se opunha veementemente a qualquer tratamento de choque, ou recessivo, os ajustes fiscais foram muito moderados e tiveram de ser compensados por uma taxa de juros relativamente alta, inclusive porque estados e municípios ainda não tinham se ajustado aos novos tempos e ainda não existia a Lei de Responsabilidade Fiscal ou o câmbio flutuante.
Deve ser registrado, porque se trata de fato histórico importante para a correta avaliação da trajetória ulterior do Plano Real, que o Partido dos Trabalhadores se opôs frontalmente a sua implementação, em quaisquer de suas etapas, tentando inclusive embargar a Lei de Responsabilidade Fiscal em processo movido junto ao STF; o partido empreendeu igualmente uma campanha de desinformação, antes e depois, em relação não apenas aos aspectos internos do plano de estabilização macroeconômica, como também no que se refere aos acordos concluídos no plano externo com o Fundo Monetário Internacional, objetivando a superação das fragilidades cambiais do país. Felizmente, a primeira administração do governo do PT soube preservar os elementos mais relevantes do Plano Real, ainda que nas administrações posteriores determinados aspectos (metas de inflação, superávit primário e flutuação cambial) tenham conhecido sensível deterioração, tal como confirmado pelos principais indicadores econômicos.
Diversas dentre as iniciativas exibidas posteriormente pelos governos do PT como feitos “inéditos” na política externa a partir de 2003 – nos terrenos da integração, das negociações comerciais internacionais e inter-regionais, do relacionamento com parceiros ditos estratégicos – tinham sido de fato iniciadas sob os dois mandatos de FHC. O governo FHC se beneficiou apenas parcialmente do crescimento meteórico da China, cuja demanda elevou a níveis historicamente inéditos os preços das commodities exportadas pelo Brasil a partir de 2004 e ajudou na própria expansão do PIB durante o governo Lula. Bafejado pela procura chinesa, este último pouco fez para estimular a competitividade brasileira, anteriormente beneficiada pelas medidas de abertura adotadas pelos governos FHC, em especial, a revisão radical dos aspectos mais discriminatórios e economicamente irracionais da carta constitucional de 1988 e a correção cambial feita em 1999. Depois de FHC, nenhuma outra reforma estrutural foi empreendida pelos governos do PT para dar continuidade aos processos de abertura comercial e de inserção econômica internacional do Brasil.

3.4. Por fim, a era do nunca antes: a diplomacia personalista de Lula
A fase atual, finalmente, corresponde à era do “nunca antes”, a este período inédito na história do Brasil durante o qual todos os recursos da propaganda governamental e da retórica presidencial foram mobilizados para dar a impressão de que o país ingressava numa era de ouro, jamais vista desde Cabral e impossível de ser igualada pelas gerações que seguirão nos próximos anos ou décadas. Não se deve ser muito derrogatório com um governo que, finalmente, ao preservar todos os elementos essenciais da política econômica anterior – que os petistas chamam, com bastante má-fé, e de forma algo ignorante, de neoliberal – conseguiu manter o Brasil ao abrigo de um retrocesso econômico que não deixou de ocorrer em diversos países da região; de fato, em vários deles se observa, de forma circunstancial ou cumulativa: retorno da inflação, fuga de capitais, manipulações cambiais, recrudescimento do protecionismo, enfim, desorganização da vida econômica, embora alguns desses aspectos começam a ser visíveis também no Brasil, e de maneira bastante preocupante.
Atendo-se exclusivamente aos aspectos diplomáticos do governo do “nunca antes”, pode-se aliás argumentar que, nem sob esse aspecto, o panorama é totalmente inédito. Ao presidir a uma diplomacia super-presidencialista, e bastante personalista, Lula, segundo o grande intelectual da diplomacia que é o embaixador Rubens Ricupero, conduziu uma política externa de roupagem gaullista, ou seja, moldada na figura do General De Gaulle. Vários diplomatas, que acompanharam em momentos diversos os passos da diplomacia lulista, confirmam que o Itamaraty foi colocado a serviço pessoal do chefe de Estado, de suas muitas de viagens e de sua desenvoltura nos contatos com vários líderes internacionais, inclusive com personalidades que, por suas características especiais, não frequentam muito os foros internacionais ou não são convidados amiúde para visitas bilaterais; algumas das afinidades eletivas do governante e de seu partido foram de fato inéditas em todos os planos, a começar pela ilha dos irmãos Castro.
A diplomacia do “nunca antes” assistiu, de fato, a eventos nunca antes vistos na história do Itamaraty, como a aceitação passiva de um expropriação violenta e unilateral feita contra um patrimônio nacional por país vizinho; registrou-se, ainda, o rompimento do velho preceito constitucional da não-intervenção em assuntos internos de outros países, inclusive no que tange o apoio eleitoral a candidatos ditos progressistas, bem como, de forma geral, alianças com regimes e governos que provavelmente não passariam em alguns testes elementares em relação a princípios democráticos e de respeitos aos direitos humanos. A diplomacia do “nunca antes” foi, sobretudo, uma diplomacia partidária, o que foi formalmente confirmado pelo próprio presidente em discurso feito num dia do diplomata, no Itamaraty, ao se referir ao seu assessor internacional como o companheiro dedicado a manter as relações com os partidos de esquerda da América Latina. Impossível não concordar com o argumento, quando fatos como esse são confirmados nesse nível de responsabilidade governamental.
O Brasil de fato aumentou sua presença no mundo, abriu embaixadas em lugares nunca dantes explorados e contraiu várias “parcerias estratégicas”, em nível bilateral, plurilateral ou de grupo, que duplicaram a capacidade de expressão do país nos mais diferentes cenáculos internacionais. O ativismo dessa diplomacia foi realmente exemplar, embora em alguns episódios possa ter ocorrido mais transpiração do que propriamente inspiração, como evidenciado nos casos das relações com a China, nas frustradas tentativas de fazer a paz no Oriente Médio, se de envolver numa solução ao programa nuclear iraniano (em grande medida clandestino), ou na própria pretensão – ilusória, para os diplomatas experientes – de exercer uma liderança na região, como base para um salto de qualidade no plano mundial.
Alguns erros de cálculo foram cometidos, inclusive no trato com alguns países vizinhos, assim como foram mantidas expectativas irrealistas quanto à realização de diversos objetivos retoricamente proclamados. Em certos temas da agenda externa, observou-se um descompasso completo entre um diagnóstico realista das opções abertas ao Brasil e intenções idealistas constantemente exibidas, seja quanto à “transformação das relações de força no mundo”, seja quanto a uma fantasmagórica “nova geografia do comércio internacional”. A China, por exemplo, já tem a sua geografia comercial bem assentada: ela importa matérias primas de todos os fornecedores possíveis, e exporta seus manufaturados – grande parte produtos de design e tecnologia ocidentais – para todos os mercados abertos ao engenho e arte de seus diplomatas e mercadores absolutamente pragmáticos quanto aos resultados esperados, sem qualquer concessão a veleidades ideológicas ou uma patética aliança de não-hegemônicos contra os poderosos do mundo. A maior parte dos países, aliás, segue os mesmos preceitos: eles procuram antes trabalhar na perspectiva de ganhos concretos do que simplesmente projetar transformações imaginárias do cenário mundial.
São muitos, de fato, os aspectos inéditos da diplomacia partidária na era do “nunca antes” e seria especioso discorrer sobre acertos e desacertos da política externa de Lula e dos seus companheiros de partido. A historiografia futura, provavelmente mais sensata que certos vieses acadêmicos atualmente em curso, se encarregará de filtrar, e de avaliar, na sua justa medida, os aspectos positivos e os menos positivos dessa diplomacia que foi de verdade especial, sem que se possa dizer se o Brasil real, o do seu sistema produtivo e o da sua capacidade de competição internacional, tenha usufruído da pirotecnia praticada durante a década lulo-petista na política externa. O Brasil perde espaço nos mercados internacionais – e o grande debate no momento é o da desindustrialização – e a integração regional não avançou de fato nos aspectos que deveriam contar: a abertura recíproca de mercados, a inserção das economias dos países membros nas redes produtivas mundiais ( de fato, ocorreu o contrário), e até o livre comércio, que deveria vigorar internamente ao bloco, tem retrocedido a olhos vistos.
Dos três grandes objetivos da diplomacia lulista – a obtenção de uma cadeira permanente para o Brasil no Conselho de Segurança da ONU, o reforço e a expansão do Mercosul e a conclusão exitosa das negociações comerciais multilaterais da Rodada Doha – não se pode dizer que algum deles tenha sido conquistado, sequer arranhado. O Mercosul, a despeito de preservado, perde espaço na interface externa do Brasil e abandonou quase completamente suas características iniciais, por sinal as únicas legítimas, já que derivadas do Tratado de Assunção, uma promessa frustrada. Pode-se, nessas condições, fazer um balanço esplendoroso, como pretendem seus executores, do “nunca antes” diplomático? Para todos os efeitos, a formidável máquina de propaganda do PT – construída, diga-se de passagem, com vários milhões ou bilhões de reais de recursos públicos – vai encarregar-se de passar uma imagem fabulosa destes tempos inéditos, quando se alega que tudo foi realmente maior e mais vigoroso do que antes, inclusive em certos aspectos talvez menos recomendáveis.
Parafraseando uma expressão muito conhecida, poder-se-ia dizer da diplomacia lulista que, onde ela foi nova, não foi boa; e onde foi passavelmente boa, ou apenas razoável, não era nova. A diplomacia presidencial, por exemplo, já existente (mas nunca referida sob esse conceito), foi levada a extremos, e isso não é bom, nem para a diplomacia, nem para a figura do presidente, de qualquer presidente. Presidentes devem se reunir quando todos os estudos técnicos tenham sido feitos pelos diplomatas e quando os chanceleres tenham limpado o terreno para a assinatura e os discursos, geralmente vazios e anódinos, dos presidentes; nunca antes na história diplomática do Brasil tivemos tantas vezes o presidente, com seus contrapartes regionais ou externos, discutindo projetos e novas iniciativas, que deveriam ficar no âmbito das chancelarias respectivas. Presidente é a última linha de decisão, não a primeira de discussão.
Por outro lado, nunca antes na história da região se fizeram tantas reuniões de cúpula, e não se pode dizer que a causa da integração tenha avançado satisfatoriamente com toda a retórica a seu favor. Ao contrário; a América Latina está fragmentada em pelo menos três modelos, ou experimentos, de organização regional, um dos quais é declaradamente anti-integracionista, a despeito de toda as proclamações em contrário: o bolivarianismo só se sustenta à base de petrodólares chavistas e com indução estatal de um sub-comércio totalmente desequilibrado; o segundo modelo é o livre-comércio e o da inserção nas redes mundiais de integração produtiva, o da Aliança do Pacífico, ou da abertura unilateral a la chilena; no meio, sem uma caracterização mais precisa, ficam os países do Mercosul e outros desgarrados, sem saber exatamente para onde pretendem ir.
Cabe registrar, também, que muitas das novas entidades apressadamente criadas nos últimos anos, o foram para dar um caráter exclusivamente regional, ou introvertido, ao que antes era exageradamente hemisférico e “assimétrico”, como se comprazem em repetir os neófitos. Mas será que a América Latina vai realmente progredir, ao orientar para dentro todos os seus movimentos políticos e econômicos? Será que ela não teria nada a aprender com os países asiáticos e ocidentais da imensa bacia do Pacífico, que estão substituindo cinco séculos de dominação econômica norte-atlântica, por meio do estímulo a todos os intercâmbios possíveis, sem discriminação de espécie alguma?

4. O que concluir de tudo isto? Que lições ficam de nossa trajetória histórica?
Acadêmicos, em geral, historiadores em especial, exibem uma inclinação um pouco doentia por paradigmas, por modelos explicativos, por padrões e tendências que eles imaginam detectar no imenso caos material que é a trajetória das sociedades humanas sobre a face da Terra. A História não seria tão emocionante, e não teria tantos cultores, amadores ou profissionais, se ela não apresentasse, justamente, esses acidentes contingentes, essas possibilidades de caminhos alternativos e de trajetórias insuspeitas, que dependem, basicamente, de duas coisas: de um lado, as chamadas forças profundas, como gostam de lembrar os durosellianos e alguns marxistas estruturalistas (ou seja, sem aqueles fatalismos simplistas da sucessão inevitável dos modos de produção); de outro lado, dos imponderáveis da ação humana, que, muito longe dos determinismos históricos, está impregnada de paixões e de racionalidade, nem sempre bem calculada.
É por isso que temos a história virtual, os big ifs que especulam um pouco sobre tudo, especialmente sobre as grandes viradas do processo histórico. O que teria ocorrido conosco se tivessem sido os chineses a ocupar as Américas? O que teria acontecido na Europa se os muçulmanos não tivessem sido detidos nos Pirineus, ou nas muralhas de Viena? O que teria acontecido se Napoleão tivesse vencido a Grã-Bretanha, se Hitler tivesse derrotado a União Soviética, ou se os soviéticos tivessem conseguido, de fato, submergir a Europa ocidental, com base não em tanques, mas na sua ideologia que prometia futuros radiantes numa sociedade sem classes? Nelson, Churchill, o papa polonês, entre vários outros líderes, foram realmente decisivos em algumas grandes reviravoltas da história contemporânea? Stalin, Hitler, Mao poderiam ter sido contidos, ao fazer o mal sobretudo para os seus próprios povos? Ou são as forças profundas da história que sempre se impõem, independentemente de líderes geniais ou malévolos?
Pode-se especular sobre como o Brasil poderia ter se desenvolvido, de forma diferente, caso Oswaldo Aranha, o grande líder gaúcho da revolução de 1930, tivesse ascendido à presidência da República, em alguma das muitas oportunidades que a história talvez lhe tenha oferecido, nas quais ele deixou passar a oportunidade, seja por imposição ou amizade com o ditador castilhista que dominou a história brasileira durante praticamente três décadas. Poderia ter sido em 1934, mas talvez fosse muito cedo, num momento em que ele ainda parecia demonstrar algumas simpatias pelo modelo fascista de organização social; provavelmente em 1938, se ele não tivesse sido afastado do país pelos cálculos maquiavélicos do mesmo Vargas; com maior razão, ainda, em 1945, em sua condição de líder inconteste da oposição democrática, mas quando o terreno foi ocupado por dois candidatos militares; ou talvez em 1950, quando ele decididamente continuou apoiando o ex-ditador, e a quem serviu uma segunda vez como ministro da Fazenda, tentando colocar mais uma vez em ordem o câmbio e as contas nacionais, esgarçadas por crises externas e comportamentos populistas e irresponsáveis dos decisores políticos; finalmente, mas talvez já fosse tarde, em 1955, quando várias opções e alianças partidárias ainda lhe estavam abertas.
Depois de Rio Branco, bastante mitificado e incontestável no seu domínio dos temas e dos métodos diplomáticos, Oswaldo Aranha foi, possivelmente, o maior e melhor chanceler que a diplomacia brasileira conheceu no século 20, numa conjuntura de extremos desafios e de opções contrastadas para o futuro da nação: ele soube manter o rumo das alianças corretas e das escolhas certas, o que assegurou ao país bastante prestígio durante certa época. No período seguinte, o Brasil se perdeu na ditadura – pelo menos no plano moral, ainda que os progressos materiais tenham sido reais – tanto quanto na voragem inflacionária que destruiu várias possibilidades de crescimento sustentado, construindo um Brasil desigual, sempre penalizado pela baixa educação geral do seu povo. Oswaldo Aranha, provavelmente, teria optado por outros variantes de políticas econômicas e de alinhamentos internacionais, possivelmente mais condizentes com as possibilidades do país e com suas necessidades de sua modernização produtiva e social. Sua não ascensão ao cargo de maior responsabilidade no comando da nação representou uma das muitas oportunidades perdidas pelo Brasil, um país que nunca perdeu uma oportunidades de perder oportunidades, como não se cansava de lembrar o diplomata e economista Roberto Campos (uma espécie de Raymond Aron nacional, que teve razão antes do tempo, mas que não conseguiu, tampouco, reformar a França, como também ocorreu com Oswaldo Aranha no caso do Brasil). 
Alguns líderes, verdadeiros estadistas, conseguem elevar seus países ao ponto máximo de suas possibilidades transformadoras, mas tais iniciativas parecem pertencer ao terreno dos fatores contingentes na História. O que ocorre mais frequentemente, na vida das sociedades, é que elites esclarecidas logrem conduzi-las pelo caminho correto, o das políticas econômicas adequadas, o da educação de qualidade, o das escolhas mais vantajosas no plano internacional. O Brasil, infelizmente não tem sido premiado com lideranças particularmente brilhantes, e pode-se mesmo indagar se, na presente conjuntura da política nacional, o país não está de fato retrocedendo, bem mais no plano mental do que propriamente material. As possibilidades não se fecharam, mas elas são estreitas, para um país que praticamente não tem educação de qualidade, ostenta baixíssima produtividade e capacidade de inovação e que tem exibido um quadro de corrupção institucional e de degradação moral nunca antes visto na história nacional. O cenário pode parecer muito pessimista, mas é a constatação que emerge a partir de uma visão realista sobre os atuais padrões políticos e as tendências econômicas associadas.
Ao mencionar padrões e tendências, se volta ao tema central do presente ensaio, sobre os padrões e tendências das relações internacionais do Brasil em perspectiva histórica. Poder-se-ia pensar que uma postura mais ativista, por parte da diplomacia brasileira, seria uma via possível de vencer alguns dos desafios que se apresentam ao Brasil atual, um pouco na linha do foi empreendido na fase recente da vida política, como forma de avançar decisivamente na solução dos problemas mais cruciais do país. Mas, de fato, não existem respostas reais a esses problemas do lado da diplomacia, sequer pela ação de uma política externa mais ativista do que a tradicionalmente conduzida pelo Itamaraty. Durante toda a história do Brasil, a diplomacia teve uma função puramente subsidiária nos grandes desafios que a nação enfrentou, em cada etapa, e provavelmente não foi ela que contribuiu para encontrar as soluções mais criativas aos problemas detectados.
O Brasil, assim como metade da humanidade, iniciou seu itinerário histórico como colônia. Tal condição de submissão, a um ou outro dos centros dominantes da economia mundial, em alguma etapa preliminar, não constitui nenhuma fatalidade quanto ao futuro itinerário do país, assim como não constituiu uma tragédia definitiva, impeditiva do desenvolvimento de países como Estados Unidos, Canadá, Austrália ou até mesmo vários países europeus, que também foram colônias ou nações dominadas por vizinhos mais poderosos. Tal passado não os impediu de se desenvolverem e de se tornarem grandes benfeitores da humanidade, como de fato são, pela via da ciência e tecnologia, pelos progressos da medicina, pela paz e segurança e pela manutenção dos direitos humanos e das liberdades democráticas, que estão de fato concentrados nos capitalismos competitivos das modernas democracias de mercado.
Se o Brasil não se libertou do tráfico de escravos no momento recomendado por José Bonifácio, durante a independência e a constituinte, foi por escolha de suas elites, não por imposição de portugueses ou de britânicos, aliás bem ao contrário, no que concerne estes últimos. Se ele não começou a construir uma economia aberta aos investimentos externos e à iniciativa privada, como recomendava Irineu Evangelista de Souza, depois barão de Mauá, foi por decisões de suas elites, as do Estado e as da economia escravocrata, que teimavam em preservar as mesmas estruturas anacrônicas. Se ele não se libertou da escravidão, como pressionavam os britânicos e como pedia o idealista Nabuco, foi inteiramente por decisão de suas elites, nos estertores do Império. Se, na República nascente, ele não fez uma reforma agrária e não implantou a educação universal, como também queriam Nabuco, o barão do Rio Branco, e tantos reformistas educacionais, como Lobato, Azevedo, Teixeira e vários outros, estas também foram escolhas inteiramente nacionais, não determinadas por nenhuma imposição ou relação de dependência externa. Nunca houve uma demanda externa pelo atraso nacional.
A diplomacia, de vez em quando, oferecia algumas sugestões, colhidas ao acaso entre as elites ilustradas dos países mais avançados, mas não se pode dizer que ela, até meados do século 20 quase totalmente expatriada, tenha influenciado decisivamente as grandes escolhas feitas pela nação. A modernização acabou chegando, inclusive por força das contingências externas, devido às crises e o fechamento de mercados do entre guerras, mas o Brasil estaria muito melhor se o mundo tivesse continuasse a ser aberto como foi até 1914, e se o Brasil, sobretudo, tivesse escolhido o caminho da inserção internacional. Ao contrário: dos anos 1930 aos anos 1980, o coeficiente de abertura externa do Brasil se reduziu dramaticamente, e no auge do regime militar, o grau de nacionalização do mercado interno atingia absurdos 95% da oferta disponível em bases correntes. O Brasil era um país fechado e aparentemente contente com essa autonomia, essa autossuficiência, essa independência de fontes externas. Qual foi o papel da diplomacia em todos esses anos de desenvolvimentismo acelerado? Justamente o de defender o modelo, resistir às investidas estrangeiras pela abertura, como aliás acontece até hoje, num recrudescimento de atitudes introvertidas que se acreditava terem sido superadas nos anos 1990. Não, elas não foram enterradas e a diplomacia, mais uma vez, serve de anteparo, escudo e justificativa para esses caminhos para dentro que não devem conduzir o Brasil a parte alguma.
Se é possível, portanto, resumir o sentido da trajetória nacional, sintetizar os padrões e tendências das relações internacionais do Brasil, não há como escapar de algumas velhas paranoias de sua história, de algumas grandes obsessões da sociedade: a ideologia nacional brasileira, desde os anos 1930, pelo menos, parece ser o culto do desenvolvimento nacional, nessa exata combinação de palavras. Culto, quase religioso, a um objetivo que é visto como desejado por todas as camadas sociais, por todos os líderes políticos e defendido ardorosamente por todos os diplomatas. Deve ser por isso que os padrões e tendências do Brasil nas relações internacionais sejam tão enviesados para dentro, que suas políticas econômicas sejam tão arraigadamente keynesianas, que as legitimações para certas posições nas negociações econômicas internacionais sejam tão cansativamente prebischianas, ou cepalianas da velha escola, e que o máximo de legitimação para as mesmas políticas que os dirigentes políticos exibem seja essa espécie de crítica a um fantasmagórico neoliberalismo, a la Ha-Joon Chang, que nada mais é do que keynesianismo prebischiano requentado ao molho de conceitos do momento. Tais características apenas comprovam quão pobre é a reflexão da intelligentsia nacional sobre a diplomacia e o desenvolvimento.

5. Nota final: reformas internas e inserção na globalização
Não se deve, contudo, terminar um ensaio deste tipo por uma nota de angústia existencial ao estilo de Kierkegaard. Mas tampouco convém ser ingenuamente otimista em face da retórica grandiloquente de certos falsos profetas da atualidade. O que cabe fazer é tentar manter a racionalidade instrumental quanto aos meios e fins do objetivo nacional do desenvolvimento econômico e social do país e quanto ao amplo espectro de reflexões registradas nas últimas décadas a esse respeito, inclusive no que se refere a algumas poucas contribuições no campo da diplomacia.
Já foi dito, por exemplo, que a salvação do Brasil não virá pela diplomacia, nem pelo lado externo. Os principais desafios do Brasil estão mesmo dentro do país, e os instrumentos para superá-los dependem inteiramente de suas elites, do leque de políticas públicas escolhidas, das opções adotadas por uma sociedade consciente quanto aos desafios, ou orientada nesse sentido por elites esclarecidas. Muitos procuram bodes expiatórios para o baixo crescimento do país na situação externa, num fantasmagórico tsunami financeiro de países ricos, na concorrência desleal de países que não protegem sua mão-de-obra ou o meio ambiente. Estas são escapatórias à realidade, e não será na proteção mercantilista do mercado interno que o Brasil vai encontrar a solução dos seus problemas de falta de competitividade e de ameaça concreta de desindustrialização. Ao contrário, o ambiente internacional, a inclusão na globalização oferecem oportunidades inigualáveis para o crescimento e o desenvolvimento de qualquer país, como a própria China demonstra a cada dia.
Enquanto não for conduzido um diagnóstico correto da presente situação, e uma autocrítica sincera, da qual, aliás, todos os marxistas deveriam gostar – sobretudo os leninistas, como ainda existem alguns – enquanto não se reconhecer todas as políticas equivocadas que têm sido implementadas nos últimos anos, no plano interno e no plano externo, não será possível superar os desafios do presente. O mundo é complicado, talvez, mas a cabeça de certas pessoas parece ser muito mais. O mundo, por sinal, oferece exemplos fabulosos de progresso e melhorias de bem-estar com algumas receitas muito simples. Algumas das mais comprovadas por sua eficácia podem ser assim resumidas: estabilidade macroeconômica; abertura e competição no nível microeconômico; níveis excelentes de governança e de gestão próxima à de mercados competitivos para a maior parte dos bens e serviços; alta qualidade dos recursos humanos; e, por fim, mas não menos importante, abertura ao comércio e aos investimentos internacionais. Tudo isso requer, obviamente, elites esclarecidas, uma mercadoria talvez rara nos tempos atuais.
Paulo Roberto de Almeida
[Hartford, 19 de outubro de 2013;
Revisão: 17 de janeiro de 2014]

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