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domingo, 24 de abril de 2016

Escritores e escrevinhadores do Itamaraty: minhas respostas a um questionario - Paulo Roberto de Almeida


Escritores e escrevinhadores do Itamaraty:
Respostas a questionário enviado a Paulo Roberto de Almeida

Respostas de Paulo Roberto de Almeida
a questionário enviado em 30/03/2016 por Aurea Domenech, escritora, artista e funcionária do Itamaraty, a propósito de uma reunião com "escritores" da Casa. 


Nota introdutória: Respondo voluntariamente às 20 simpáticas perguntas do questionário abaixo transcrito, que me foram enviadas como preparatórias à elaboração de uma monografia a respeito do tema, e como possível proposta de realização de um congresso de “escritores” do Serviço Exterior brasileiro, não na condição de “escritor”,  o que eu não me considero ser, mas na de um mero “escrevinhador”, como consignei no título deste trabalho. Escritores são aquelas pessoas que fazem da escrita – e da ulterior publicação de seus escritos – uma atividade constante, podendo servir até de ganha-pão, ou, mais frequentemente, aquelas que escrevem pelo prazer da escrita, por uma motivação interna que as leva a traduzir suas ideias e pensamentos, suas reflexões e sentimentos, suas observações sobre a vida exterior e qualquer outra elaboração mental a respeito da experiência vivida, ainda que alheia, em uma atividade constante, regular, consciente e deliberada, de transposição de todos esses elementos numa plataforma qualquer de comunicação, sob a forma de uma escrita compreensível à maioria dos eventuais leitores.
No meu caso, não creio poder utilizar-me dessa classificação, não apenas porque não faço da minha escrita – que aliás é constante e regular – um meio de vida, mas também porque meus escritos são motivados unicamente por um objetivo didático explícito, o de instruir os mais jovens (e alguns mais velhos também), sobre o que aprendi na vida, lendo, viajando, conversando com pessoas mais espertas, observando simplesmente o funcionamento do mundo e seus problemas, com destaque para o Brasil, seu processo de desenvolvimento, sua inserção internacional. Essa não é, portanto, a atividade de um escritor, e sim a de um professor, aliás voluntário, pois a condição é secundária à minha atividade principal de servidor do Serviço Exterior brasileiro. Por isso, considero não poder abrigar-me sob o chapéu dos escritores, daí minha preferência por essa outra categoria que os franceses chamam de “scribouillard”, que corresponde exatamente à palavra escrevinhador em Português.

1.   Qual é o ponto fundamental no cotejo entre a atividade diplomática e a produção literária e ensaística? A convivência entre a cultura e as instituições do Estado nas sociedades ibero-americanas é notória? Como isso se dá em nosso país?

PRA: A atividade diplomática, em qualquer país, em qualquer época, constitui, provavelmente, a mais intelectual, a mais “literária”, das profissões associadas à burocracia de Estado, uma vez que congregando, recrutando e atraindo pessoas já naturalmente dotadas de educação acima da média, com conhecimentos igualmente mais elevados e diversificados do que o padrão normal dos burocratas estatais. Essa atividade, ou profissão, também exige, impulsiona e estimula, naturalmente, a arte da boa escrita, as virtudes da síntese, da análise precisa, do equilíbrio de julgamento, da amplitude de visões sobre as mais diversas nações do planeta, sobre a diversidade cultural e as riquezas linguísticas que são dotações exibidas por praticamente todas as sociedades organizadas do planeta.
Isso não quer dizer que todo diplomata será um escritor, literário ou em outras áreas, mas significa que ele saberá pelo menos escrever bem, o que já é meio caminho na direção de uma atividade literária ou de análise de fatos e processos políticos e sociais. Tampouco creio que essa convivência entre a cultura e uma instituição estatal como a diplomacia seja mais distinguida nas sociedades ibero-americanas do que em quaisquer outras sociedades civilizadas da contemporaneidade. Talvez os diplomatas e outros membros do Serviço Exterior, sejam, nessas sociedades, mais do que em outras, os representantes de uma elite ainda mais reduzida do que o próprio conceito de elite, dadas as grandes distâncias culturais e a desigualdade social mais acentuada nessas sociedades. Em todo caso, a corporação diplomática, de certa forma, sempre faz parte de uma elite cultural, mesmo se seus membros, em países de maior igualdade social sejam típicos representantes da classe média, e não membros de uma reduzida elite social como pode ser o caso de algumas das sociedades ibero-americanas. No Brasil, creio que o perfil da corporação diplomática tendeu a se “democratizar” nas últimas décadas – ou seja, a ampliar seu recrutamento em camadas típicas da classe média –, mas ainda assim, seus membros pertencem quase que naturalmente a uma elite cultural, uma vez que os requerimentos de ingresso na carreira são “anormalmente” elevados, o que tende a selecionar pessoas já potencialmente “escritoras”, ou futuros membros prováveis dessa confraria, se por acaso possuírem a vocação ou a vontade para tal.

2.   Como vê o antigo axioma de que o diplomata e os demais servidores do Serviço Exterior são especialistas em generalidades? Estas generalidades tirariam do foco os escritores se esses se entusiasmassem por outros caminhos? O caminho do escritor é diverso do caminho do diplomata?

PRA: De fato, na tradição diplomática profissional brasileira não existem, a priori, especialidades, ou seja, o funcionário não é treinado para, e não se espera que fique em, “nichos eternos”, podendo servir em diversas áreas do Serviço Exterior ao longo da carreira. Isso não impede que alguns, motivados por suas próprias “afinidades eletivas”, procurem, ou se dediquem, a certas áreas de suas preferências pessoais: econômico, multilateralismo, bilateral, administração, consular, etc. Mas, na maior parte das vezes, os diplomatas e outros servidores são mesmo especialistas em generalidades, ou seja, podem servir em áreas muito distintas entre si, no curto, no médio e no longo prazo. Isso poderia, teoricamente, obstar a uma carreira de “escritor” em uma determinada área, mas a literatura, tomada no sentido estrito, independe de áreas de trabalho, pois sua inspiração é a experiência humana, em todas as suas dimensões, o que pode ser feito em qualquer lugar em qualquer época.
Cabe no entanto observar que os caminhos e as ocupações do escritor e do diplomata são necessariamente diversos. Este último, tomado em sua dimensão própria, é um perfeito burocrata, preparando telegramas e outros expedientes estritamente dentro de suas atribuições funcionais, nas quais se concede, em princípio, pouco espaço para alguma atividade literária adicional. O escritor, por sua vez, se também diplomata, o é, geralmente, nas horas vagas, no recesso do lar, ou nos intervalos de trabalho, num universo que pode até tomar a diplomacia como inspiração, mas que não deve a ela a motivação principal para a escrita, que é sempre interior, não ditada por autoridades burocráticas acima do “escritor diplomata”. Raramente um diplomata será promovido ou a ele serão concedidos benefícios adicionais, ou de alguma forma compensatórios, apenas por que se trata, supostamente, de um “escritor”. A diplomacia profissional não espera e não exige que seus servidores se tornem quaisquer outras coisas fora do ambiente próprio de trabalho, e não deveria recompensar por “artes externas” quaisquer de seus membros e servidores, pois não foi para isso que eles se prepararam, fizeram concurso e foram contratados expressamente para o desempenho eficiente na burocracia do Estado. Isso basta ao Serviço: qualquer outra atividade paralela corre por “conta e risco” do servidor, não lhe sendo facultado valer-se dela, ou tomá-la como suporte e alavanca para qualquer impulso na carreira e demanda por postos e funções.

3.   Há na Literatura felicidade? Escreve-se melhor quando se está feliz? A chave da Literatura é a experiência ou a ficção se faz presente com maior relevo na sua literatura?

PRA: Difícil responder, pois essa questão é essencialmente subjetiva. Quem escreve literatura, nos moldes tradicionais, sendo diplomata, o faz necessariamente por alguma necessidade interior, não por compulsão ou obrigação de trabalho. Se supõe, então, que esse diplomata-escritor seja feliz ao ser realizar como escritor, não para se distinguir como diplomata, onde essa dimensão pode passar completamente ignorada.
A experiência vivida, ou ressentida interiormente, sempre está na base da ficção, pois mesmo os temas mais bizarros, sem qualquer conexão com a vida real, são sempre inspirados por determinadas leituras, por obras de arte, por trabalhos de outros autores, por elementos diversos que vão formando, como pequenos tijolos conceituais, a “matéria prima” da escrita. Literatura, na maior parte das vezes, é sempre uma arte ficcional, do contrário seria relato histórico, ou sociologia da relações humanas. Se supõe que a felicidade que decorre do prazer da escrita, mas parece que também existem os escritores que se entregam a essa arte, ou atividade, por alguma angústia qualquer,

4.   Quando começou a escrever, quais eram as suas expectativas e com que idade começou?

PRA: Escrevi desde sempre, desde que comecei a tomar notas a propósito dos livros que lia na biblioteca pública infantil, que frequentei desde muito cedo. Não tinha outra expectativa, nessa fase precoce, senão aprender, ou seja, os resumos de leituras eram notas para releitura e aprendizado mais fixo do que a memória passageira. Devo dizer que as bibliotecas, sobretudo as da primeira infância, tiveram um papel fundamental em minha formação intelectual, pois que vindo de uma família sem formação educacional completa, e de um lar praticamente sem livros, só me elevei na vida profissional, e nas atividades acadêmicas, que pratico paralelamente, em função das leituras em biblioteca desde que aprendi a ler na “tardia” idade de sete anos: desde então nunca mais parei.
Assim, comecei a aproveitar essas notas de leituras, e de forma não surpreendente, meus primeiros escritos, alguns publicados ainda adolescente, foram resenhas de livros, o que sempre fiz em toda a minha vida. Depois, já universitário (entre os 18 e 25 anos, portanto), comecei a escrever ensaios sociológicos e pequenos artigos de atualidade política, vários publicados, inclusive sob pseudônimo durante o regime militar. Não tinha outra expectativa senão a de participar do debate e de trabalhar em favor de um projeto de país mais desenvolvido, mais igualitário, o que nessa época, queria dizer socialista. Mais tarde, ao viajar para, e conhecer, os socialismos reais, tornei-me simplesmente reformista, mais recentemente até liberal e, num certo sentido, libertário.
Meus escritos da fase madura não são literatura, e sim aborrecidamente sociológicos, ou seja, ensaios nas áreas de humanidades e de ciências sociais, com uma inclinação mais forte, nas fases ulteriores, para as relações econômicas internacionais e a história diplomática.  Todos os meus trabalhos – originais e publicados, ou seja, artigos, ensaios, entrevistas, e sobretudo livros e capítulos de livros – estão listados cronologicamente em meu site (www.pralmeida.org, em listas de publicados e originais), e grande parte encontra-se disponível no próprio site, em meu blog (diplomatizzando.blogspot.com) e em plataformas acadêmicas das quais sou membro, com destaque para Academia.edu (https://uniceub.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida) e para Research Gate (https://www.researchgate.net/profile/Paulo_Almeida2).

5.   Qual foi, de início, o seu tema favorito? Por quê?

PRA: Sempre foi o Brasil, que é o meu tema exclusivo, predominante, essencial, permanente, em todas as suas dimensões, sobretudo econômica e política. A razão é muito simples: desde o início, minhas leituras foram dedicadas à história, depois à política, e finalmente à economia, com um grande foco voltado para o próprio Brasil. Ou seja, meus escritos não estão voltados para qualquer tema literário, e confesso ter lido pouca literatura em minha vida. As obras caracterizadamente “literárias” que pude percorrer o foram numa fase precoce, geralmente na etapa adolescente e na primeira juventude. Depois, na fase adulta, na carreira diplomática e na vida acadêmica, minhas leituras e escritos sempre foram em torno de temas relacionados às questões e a problemas nas áreas apontadas, com ênfase no desenvolvimento econômico do Brasil.

6.   De que modo um encontro anual de escritores seria algo interessante para os escritores da Casa de Rio Branco? Você tem alguma ideia para enriquecer o evento?

PRA: Creio que seria algo muito bem vindo, uma espécie de Pen Club dos diplomatas e servidores do Itamaraty, embora eu mesmo não me inclua nesse clube. Como já disse em minha introdução, não me considero escritor; sou apenas um escrevinhador de coisas chatas, aborrecidas, que são os problemas que o Brasil enfrenta para tornar-se verdadeiramente desenvolvido, com uma democracia de qualidade, uma economia “normal” (pois considero a nossa totalmente esquizofrênica), uma sociedade menos desigual (mas não igualitária, pois isso é impossível e até indesejável).
Acredito, porém, que os verdadeiros escritores do Itamaraty seriam muito poucos, ou seja, aqueles que escrevem de fato por alguma compulsão interna, não por mandato externo. A atividade de escritor não é compatível com a de redator de memorandos. Dizendo isso, excluo da categoria de escritores a enorme maioria, na verdade a quase totalidade, daqueles que exibem em seu currículo uma única obra (geralmente publicada pela própria Casa, ou seja, a Funag), pois se trata de um trabalho obrigatório, feito no Instituto Rio Branco ou para cumprir os requerimentos do Curso de Altos Estudos para fins de promoção funcional.
Esses não são escritores, mas apenas burocratas que se desempenham de uma obrigação, embora muitos exibam uma qualidade de escrita comparável à de qualquer escritor mediano. Escritores são unicamente aqueles que escrevem e publicam textos, em diversas categorias – romance, poesia, história, ensaios de crítica, contos, ou mesmo crônicas dos eventos correntes – que resultam de um desejo interno, pessoal, não motivado por qualquer preocupação funcional, ou mesmo comercial, aqueles que fazem da escrita um prazer, não uma obrigação. Não sei dizer quanto seriam, no Itamaraty, mas creio que sejam proporcionalmente muito poucos.

7.   Como a vida de viajante e exilado contribuiu para a sua literatura? Crê que se não lhe fosse dada a ventura de “correr campos”, sua literatura não seria tão rica?

PRA: Como publico textos em diversos campos das ciências sociais, e não literatura estrito senso, a vida de nômade e de “exilado” (primeiro a real, sob a ditadura militar, depois a funcional, na vida diplomática), o “correr campos” foi absolutamente essencial na tarefa de ver o Brasil inserido na região e no mundo, comparar nossos problemas com os de outros países, examinar e conhecer outros itinerários de desenvolvimento econômico, outras formas de organização social, sistemas diversos de ordenamento político. Nunca teria escrito tanto, e creio que de forma tão pertinente, se não tivesse sido exposto, desde muito cedo, e muito tempo antes de ingressar na diplomacia, a essas experiências de viagens, o que aliás faço constantemente, nos intervalos das atividades diplomáticas, em quaisquer tempos e lugares, em todas as circunstâncias. Tampouco nunca teria me dedicado tão intensamente à produção de artigos e livros se não fosse pelo gosto do material histórico, ou seja, os fundamentos passados dos problemas da atualidade, e se não fosse igualmente pelo gosto da atividade docente.
O nomadismo, diplomático ou não, sempre foi uma característica da família, antes de tudo um traço pessoal de caráter de minha mulher, Carmen Lícia Palazzo. Em quaisquer lugar onde residimos, em todos os postos onde fui designado, tanto em nossas estadas no Brasil quanto nas viagens de férias, nunca deixamos de estar constantemente na estrada, em geral de carro, mas por quaisquer outros meios igualmente. Nos países setentrionais, onde as facilidades de transportes e acomodações são maiores e melhores, quase todo fim de semana saímos para conhecer novos lugares, num tipo de turismo basicamente cultural e intelectual, com menos natureza, a não ser a passageira, de uma cidade a outra. No hemisfério sul, onde as distâncias e as dificuldades são maiores, as viagens são planejadas, mas também realizadas. Tudo isso também é matéria prima, não necessariamente para escritos literários, mas para exercícios comparativos com a situação e os problemas do próprio Brasil, e, portanto, material para algum texto novo.

8.   Um jornalista norte-americano afirmou, certa vez, que todos os escritores criativos são boas pessoas. Você concorda com essa ideia? Ele chegou a intitular o seu ensaio: “Seja sensato se não for escritor”. No mesmo ensaio, ele diz que o escritor não aquilata realmente o que faz e que desconhece a relevância de seu labor. O que pensa sobre isso?

PRA: Não havia pensado nisso, mas acredito que ele tenha razão: todo ser dotado da compulsão para a escrita, literária ou de outra dimensão, é necessariamente um ser reflexivo, pensativo, leitor, observador, anotador. Geralmente é uma pessoa de paz, com a qual se pode conversar animadamente e sempre aprender alguma coisa nova: ela sempre terá uma observação inteligente a fazer sobre qualquer questão da vida humana. Escritores são por natureza pessoas dotadas de vida interior, mesmo que alguns sejam mais introspectivos, ou calados, do que outros.
Não creio, por outro lado, que o escritor desconheça a relevância de seu trabalho e por isso não concordo com o argumento do jornalista: todos os que escrevem, ou quase todos, desejam ser lidos, e apreciados, o que significa, ipso facto, uma atribuição de significância ao seu trabalho de escritor, ou de escrevinhador, como é o meu caso. Todos nós, que escrevemos por prazer, não por obrigação, ainda assim queremos mostrar ao mundo o que produzimos. Seria frustrante escrever e engavetar, ainda que grande parte do que escrevemos, escritores e escrevinhadores, permaneça mesmo no recesso do lar, sem qualquer possibilidade de vir a público. A vida é assim.
Um traço essencial do escritor é que ele está sempre pensando no que vai escrever, planejando seu próximo livro, seu ensaio já concebido mentalmente, um conto que surgiu por inspiração de um lampejo qualquer. Para isso, o verdadeiro escritor sempre carrega consigo algum objeto de escrita, para anotar ideias, curiosidades, por vezes trechos inteiros de textos que ele quer desenvolver uma vez sentado em sua mesa, com a pluma ou o computador. Eu, por exemplo, que como disse não me considero escritor, carrego sempre comigo, invariavelmente, uma caneta e um caderninho, tipo Moleskine, aliás dois, quando estou vestido formalmente, um de bolso de camisa, tamanho reduzido, e um médio, de bolso de paletó. Tenho dezenas desses cadernos, cheios de anotações, por vezes trabalhos inteiros, outras vezes um simples endereço, ou nome de algum livro que pretendo buscar e ler. Todo escritor faz, ou deve fazer algo do gênero, mesmo quando apenas acumula mentalmente os textos que ele ainda vai escrever.

9.   Quais são as suas três maiores influências literárias e de que forma marcaram a sua literatura?

PRA: Antes de tudo e de todos, Monteiro Lobato, que li todo, ou suponho que quase todo, primeiro a obra infantil, depois a obra adulta, com destaque, na primeira fase, para a obra História do mundo para as crianças, que realmente determinou o que sou, o que eu me tornei. Depois, algumas grandes obras da literatura, entre as quais eu destacaria Dom Quixote, de Cervantes. Mas, de resto, basicamente livros de história, de economia, de política sobre o Brasil, o que não é propriamente uma influência literária, mas constitui o lado mais relevante de minha carreira como “escrevinhador” nessas mesmas áreas: todos os grandes nomes das ciências sociais do Brasil, e todos os livros de pesquisa nessas mesmas áreas.
Na verdade, não posso realmente dizer que eu tenha preferências literárias, ou autores aos quais eu seja devotado, pois leio a todos, na maior parte do tempo com objetivos diretamente operacionais – os livros de humanidades e ciências sociais – ou para fins apenas de prazer, e aqui vale tudo, desde que seja de boa qualidade: novelas policiais, romances históricos, livros de viagem, biografias, história virtual.

10.           Lembra-se do primeiro livro que leu? Tornou a lê-lo depois? Costuma ler mais de uma vez o mesmo livro?

PRA: Não me lembro de qual tenha sido: como eu frequentava a biblioteca infantil antes mesmo de aprender a ler, a leitura inicial foi provavelmente feita em algum livro infantil da primeira alfabetização. Depois que aprendi a ler, não mais parei: li, não uma, mas diversas vezes, o História do mundo para as crianças, na versão Monteiro Lobato de um livro americano. Sim, costumo ler mais de uma vez os mesmos livros, inclusive porque faço pesquisas sobre as obras de minha área de estudos, e faço anotações e resumos, ou resenhas e transcrições desses livros. Sempre volto a certos livros para fins de pesquisa ou detalhamento de algum assunto tratado em algum texto meu.

11.           Você tem algum método de trabalho permanente, periódico ou não se preocupa com isso?

PRA: Meu método é muito simples: ler tudo o que é humanamente possível de ler nas minhas áreas de interesse, o que significa pouca literatura e excessivamente ciências sociais em geral. Depois de ler, e simultaneamente, anotar, registrar, transcrever, e fazer a partir daí uma base para os meus próprios escritos, eu construo mentalmente meu próximo projeto, faço um esquema escrito, e depois me coloco ao trabalho. É preciso registrar que, no meu tipo de atividade, que não é puramente literária – ou seja, obras que se sustentam apenas em ideias, ou argumentos virtuais – os textos elaborados com objetivos didáticos são sempre escritos sobre outros escritos, ou ideias sobre ideias de outras pessoas, pesquisadores de algum problema real, mais do que escritores literários.

12.           Dentre os seus autores preferidos, cite três que mais lhe agradam.

PRA: Na literatura, Dom Quixote, mas também gosto de policiais, do tipo Sherlock Holmes, ou mais especificamente apócrifos de Sherlock, ou seja, obras com o famoso detetive que não sejam de Conan Doyle, mas de imitadores, ou “plagiadores”. Há porém esse traço especial que é o fato de buscar apócrifos misturando Sherlock Holmes com personagens reais: já li dois com Karl Marx, um com Freud, outro com Einstein, um outro com Oscar Wilde; eu mesmo tentei escrever um Sherlock Holmes Contra Floriano Peixoto, mas nunca terminei a história, provavelmente por falta de qualidades literárias ou de imaginação. Sou, como disse, um escrevinhador de coisas chatas, economia, política e por aí vai. Dos meus economistas historiadores, que leio intensamente, tenho predileção por Niall Ferguson e David Landes, ou mesmo Charles Kindleberger.

13.           Há muita diferença entre o início de sua carreira como escritor e a sua literatura atual?

PRA: Praticamente nenhuma, pois 95% dos meus escritos são nesses terrenos chatos que eu já mencionei, temas sem grande charme literário, ou quase nenhum. Mas mesmo nessa atividade puramente “realista”, tenho uma inclinação por um tipo de escrita que se aproxima um pouco da literatura, que é a de reler escritores clássicos com os olhos no presente, isto é, “reviver” alguns grandes analistas do passado, para ver como eles, se vivos fossem, refletiriam e escreveriam sobre os problemas de nossa época. Já fiz isso com Marx e Engels, reescrevendo o Manifesto Comunista (adaptado para os tempos de globalização), com Maquiavel, reescrevendo fielmente o Príncipe (mas colocando o indivíduo no lugar do Estado), com Tocqueville, mandando-o visitar recentemente o Brasil e a América do Sul, para refletir nossa a nossa “democracia”, e tenho vários outros no pipeline, sempre com essa intenção de reler grandes obras do passado com os olhos postos no presente. Mas, de resto, meus textos iniciais em minhas áreas de concentração são basicamente similares aos de agora, apenas que, décadas depois, posso fazê-lo com muito mais conhecimento e pesquisa, do que no início, e numa visão certamente bem mais liberal ou libertária do que aquela socialista do começo.

14.           O que mais influenciou a sua obra? Lê mais do que escreve?

PRA: Minhas “preocupações” de escrevinhador sempre foram as mesmas: tentar conhecer as origens e fundamentos dos problemas humanos e sociais, a miséria, a  pobreza, a desigualdade, as dificuldades para se ter um sistema político “ideal”. Para conhecer é preciso ler, de tudo, e sobretudo manter os olhos bem abertos, para observar tudo, sem viseiras mentais ou ideológicas, conhecer o mundo como ele é, não como gostaríamos que fosse (que, aliás, é a concepção de Maquiavel). Por isso mesmo, estou sempre lendo muito mais do que escrevo: em primeiro lugar, informações, de todos os tipos, das mais diversas fontes; depois material de pesquisa, ou seja, obras de outros cientistas sociais ou historiadores e economistas, que são sempre interpretações sobre fatos, sobre a matéria prima dos indicadores objetivos.

15.           Está escrevendo neste momento? Sobre o que está escrevendo?

PRA: Estou terminando o segundo volume de uma trilogia sobre a diplomacia econômica no Brasil – da qual uma primeira já foi publicada, aliás em duas edições, sobre a Formação da Diplomacia Econômica no Brasil: as relações econômicas internacionais no Império (Senac-SP, 2001 e 2005) – e já preparando o terceiro volume, para o qual tenho muita coisa escrita ou pesquisada. Também estou compondo um livro sobre os clássicos revisitados, juntando tudo o que fiz nessa área e acrescentando mais alguns. No mais, tenho vários livros de ensaios já preparados, que preciso revisar e publicar. Minha lista de obras em preparação é muito mais extensa do que os livros publicados, e pretendo continuar nessa atividade até onde a vista alcança, ou até quando minhas forças o permitirem.

16.           De que maneira acha que poderia contribuir para o Encontro Anual de Escritores sugerido nessa monografia da qual esta entrevista faz parte?

PRA: Posso oferecer um depoimento sobre meus métodos de escrevinhador e de pesquisador, e também sobre como é importante que diplomatas aproveitem sua experiência de nômades profissionais, de pessoas dotadas em princípio de uma boa escrita, para publicarem suas observações sobre outros países, para tornar o Brasil um país menos introspectivo, ou voltado para si mesmo.

17.           Durante as suas missões no exterior travou relações ou conhecimentos com escritores locais?

PRA: Não tanto com escritores, no sentido clássico da palavra, quanto com pesquisadores de minhas áreas de trabalho, pois estou sempre em contato com acadêmicos ou pesquisadores independentes. Já dei palestras e aulas em muitas universidades da Europa e das Américas.

18.           A carreira diplomática ou outra qualquer do Serviço Exterior é estimulante para o processo criativo de um escritor?

PRA: Certamente: ela já é feita, mais de 50% do tempo, de escrita, ainda que de aborrecidos papéis burocráticos, mas que serão melhor lidos e apreciados se escritos numa linguagem elegante e bonita, ainda que concisa, objetiva ou            quase telegráfica. Por outro lado, a vivência, a exposição e o contato direto com outros mundos e sociedades nos abre os olhos para a rica diversidade de experiências humanas, o que deveria incitar todos aqueles que vivem com livros, nos livros, para os livros (como eu, por exemplo).

19.           De que maneira, a seu ver, poderia se dar o encontro literário ora em projeto?

PRA: Talvez a Funag, ou mesmo a ADB, pudesse tomar a iniciativa de convocar um pequeno grupo de trabalho para planejar um primeiro encontro exploratório, e depois, se possível, um verdadeiro seminário de escritores e “escrevinhadores” (não aqueles que fizeram trabalhos por obrigação), para a partir daí criar algo como eu sugeri, uma espécie de Pen Club Diplomático, aberto inclusive aos estrangeiros vivendo no Brasil. Se houver intenção nesse sentido, posso colaborar voluntariamente com a iniciativa.

20.           De que necessita um escritor?

PRA: Os puramente literários apenas de imaginação, e também alguma força de vontade, para passar horas e horas, que poderiam ser de um lazer mais agradável, na dura labuta da escrita. Não precisa escrever muito a cada vez, mas deve-se escrever bem. Graciliano Ramos dizia que a arte de escrever é a de cortar palavras, de reescrever, de corrigir e de escrever novamente.
Já aqueles que, como eu, são “escrevinhadores”, precisam de muita pesquisa, muita compilação de dados, muito trabalho acadêmico sério, para poder colocar no papel alguma contribuição significativa em áreas que são imediatamente submetidas à crítica dos pares. Na literatura, a crítica se prende bem mais ao estilo, à narrativa, ao enredo, do que à “verdade” dos fatos, que é essencial no trabalho acadêmico.
Em resumo, um escritor precisa de vocação, seja num terreno ou noutro, e vocação não é apenas algo inato, próprio da personalidade, também pode ser adquirida com a persistência, com a teimosia, com a insistência de escrever, e de escrever bem, de forma clara, numa linguagem formalmente correta, ou mesmo inovadora, mas elegante e atraente. Ele precisa ser honesto, consigo mesmo, no caso dos literários, e com os fatos, no caso dos “escrevinhadores” de temas sociais e políticos.
Um escritor é, antes de tudo, um ser que pensa, e que depois coloca no papel suas ideias de forma mais ou menos organizada.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 24 de abril de 2016.
Revisto em 30/04/2016.

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