O impedimento é remédio constitucional amargo para a proteção do Estado Democrático de Direito. Ele nasce da convicção de que um governo representativo existe sob a égide da lei. Na feliz expressão de Norberto Bobbio, o Estado Democrático de Direito é sempre uma ordem “per lege" e “sub lege".

A atual mandatária violou essa ordem duplamente. Em 1º lugar, em sua fonte, pois as eleições que a levaram ao poder, hoje sabemos, foram fraudadas com dinheiro ilícito. A 2ª violação ocorre no âmbito do seu exercício, ou seja, de seu modus operandi, pois mesmo um governo eleito de forma legítima (com maioria dos votos) não recebe o direito de delinquir. É justamente por esses motivos que existe o instituto constitucional do impedimento. Ele só revoga o sagrado mandato popular quando e porque o governante se colocou ao arrepio da lei que jurou manter e proteger.

A bem da verdade, o processo de impedimento em curso na Câmara julgará apenas uma parcela ínfima de uma montanha de crimes. É o que dizem palavras que se tornaram, tristemente, senso comum, como “mensalão” e “petrolão". Neste sentido, a acusação em curso incide apenas no aspecto do exercício do governo e no que diz respeito a uma conduta bastante específica. A condenação por crime de responsabilidade, em atenção aos artigos 85 e 167 da Constituição, é exigência que decorre em virtude da violação da Lei de Responsabilidade Fiscal, e conforme previsão do artigo 5 da Lei 1.079 de 1950. Se lembrarmos que Collor foi deposto por causa de um Fiat Elba, esse crime está longe de ser menor. Primeiro, porque qualquer violação da lei nunca é fato banal. Segundo, porque a proporção em que a prática foi utilizada no governo Dilma Rousseff supera tudo que já foi realizado anteriormente em volume e extensão. Por fim, tal prática foi utilizada para enganar o povo brasileiro e assim vencer as eleições. Ela foi um instrumento de fraude premeditada. Portanto, mesmo que fiquemos restritos ao âmbito jurídico das pedaladas fiscais, ainda assim podemos corroborar as palavras de Janaina Paschoal quando diz que “sobram motivos”, pois é do império da lei que se trata. Em outros termos, é do coração da democracia que estamos falando. Isso tudo já basta.

No entanto, o processo constitucional e, por isso, legítimo, de afastamento não é somente jurídico, mas também político. Sem jamais prescindir da fonte material do direito, sabem os parlamentares que os demais crimes praticados, que envolvem, inclusive, obstrução da justiça, também devem e podem ser ponderados formalmente no âmbito de uma consciência moralmente responsável, motivando sua decisão e instruindo seu julgamento íntimo. A não ser, é claro, que o STF também queira caçar nossa consciência moral. Pois golpe é irrigar sua campanha com dinheiro ilícito. Golpe é macular o Congresso com compra de votos. Golpe é cobrar propina em licitações corrompidas. Golpe é dilapidar a Petrobras com esse fim. Golpe é tentar proteger um acusado pela justiça com status de ministro. Golpe é constituir um governo paralelo em um quarto de hotel de luxo. É verdade que o impedimento não é recall e falta de governabilidade não o fundamenta. Mas também é verdadeiro que a falta de legitimidade que nasce da violação sistemática e contumaz da lei, sim. É nesse contexto que as pedaladas fiscais se inserem. É por isso que o senso de justiça dos cidadãos, manifesto em massivas manifestações populares, clama por providências e a ordem constitucional grita pela aplicação do corretivo necessário.

Caso aprovado, o afastamento da presidente não significa a redenção da política ou a instauração do paraíso da moralidade na terra. Mas quem disse que se trata disso? Por que eles ainda ofendem a sabedoria popular? Trata-se apenas de afastar do caminho aqueles que, além da República, roubaram nossa esperança e querem que nos convençamos que são um mal menor. Infelizmente, eles não são. Não tenhamos medo. Afastá-los é só o primeiro passo de uma luta que está apenas começando.


Diário Catarinense