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domingo, 22 de outubro de 2017

Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar! (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Mais de um mês antes das eleições de 2002, eu já tinha certeza de quem iria ganhar, mas não tinha muita certeza quanto às políticas a serem aplicadas pelos companheiros. Por isso mesmo tentei orientar os companheiros, sobre as boas políticas a serem implementadas, mas nem eu dispunha de bons canais de comunicação, nem me cabia "dar ordens" aos apparatchiks do PT. Em todo caso tentei. Por não me terem seguido, eles fizeram todas aquelas coisas que redundaram em perdas para eles e sobretudo para o Brasil.
Apresento abaixo meus conselhos pré-eleitorais aos companheiros.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 22/10/2017


Companheiros, muita calma: trata-se agora de não errar!
As conseqüências econômicas da vitória
(ou: manual de economia política para momentos de transição)

Paulo Roberto de Almeida
(Washington, 947: 22 de setembro de 2002)

1. Princípios básicos da economia política dos partidos no sistema brasileiro

No momento em que escrevo estas linhas, 21-22 de setembro de 2002, antes portanto de qualquer definição eleitoral, parece estar ficando muito claro que o Brasil prepara-se para atravessar uma das mais importantes fases de transição política em toda a sua história contemporânea, equivalente, talvez, ao desmantelamento do Estado econômico varguista, supostamente operado durante os oito anos da administração FHC.
De fato, o País passou a viver, a partir do início da campanha eleitoral, em meados de 2002, uma situação de nítida recomposição das forças políticas e da própria estrutura da representação político-eleitoral, resultando no desmantelamento do sistema político varguista instalado a partir de 1945. Com efeito, todos os partidos representados no Congresso, à exceção de um, provinham do ordenamento político tradicional conhecido no Brasil a partir da era Vargas: um grande partido oligárquico de direita, eventualmente dividido em uma corrente atrasada e ruralista e outra de feição mais urbana; um grande centrão, moderadamente reformista; movimentos de centro esquerda, de inspiração trabalhista ou social-democrática; e os mais que tradicionais partidos da esquerda socialista – o velho Partidão, reconvertido em PPS, e o PCdoB, que mesmo sendo anti-sistema, constitui o que mais de oficial pode haver no cenário político.
Apenas um partido, como se disse, escapa a essa regra não escrita da democracia brasileira, que faz com que todos eles acabem sendo dominados por lideranças políticas tradicionais, líderes profissionais que fazem do jogo político-parlamentar o seu modo de vida e o seu negócio público, eventualmente por via das práticas também tradicionais do populismo, do clientelismo, do fisiologismo e de outros “ismos” mais ou menos nefastos do ponto de vista da verdadeira representação do eleitorado. Esse partido nasceu de forma independente e alheia ao jogo habitual das transações políticas e emergiu com uma proposta tendente a transformar o panorama social do Brasil, tendo conhecido, ao longo dos últimos vinte anos, uma trajetória de sucessos contínuos, mesmo tendo sido derrotado três vezes na busca do que se chama, usualmente, “suprema magistratura” do País. Esses sucessos foram dados pelo crescimento constante em termos de presença capilar nos mais diversos recônditos de um país imenso, pelo aumento da representação parlamentar, em todos os níveis, e pela assunção de responsabilidades executivas em unidades importantes da federação. Não se pode, de toda forma, falar em “derrota” quando o líder desse partido aumentou, progressiva e constantemente, sua aceitação junto a faixas cada vez maiores do eleitorado e conduziu o movimento ao centro do sistema político brasileiro.
Cabe enfatizar essa realidade, inédita e surpreendente em toda a história política brasileira: esse partido, seja como referência positiva ou negativa, ocupa uma posição absolutamente central no sistema copernicano da política brasileira, em torno do qual todos os demais atores passam a se posicionar, a favor ou contra (não importa), como se ele fosse o paradigma de fato desse sistema político-partidário. Talvez no cenário pós-eleitoral essa centralidade venha a retroceder, em termos de forças e pesos reais na arena parlamentar, mas do ponto de vista político-ideológico ela parece destinada a perdurar.
Quando se disse que esse partido constitui uma exceção às regras não escritas da democracia brasileira, isto não significa que ele mesmo possa escapar às “leis de bronze” dos sistemas de partidos, algumas delas “codificadas” um século atrás por sociólogos como Robert Michels. Essas “leis” se traduzem na “rotinização do carisma” – seguindo aqui Max Weber –, na burocratização do aparelho partidário, na profissionalização dos quadros, na rigidificação das linhas hierárquicas, na profusão de normas e rituais que retiram algo do espírito espontâneo dos antigos tempos militantes e idealistas e, mesmo, na internalização de alguns hábitos pouco recomendáveis – e anteriormente censurados – dos velhos partidos “burgueses” ou “oligárquicos”. Trata-se de uma evolução normal, na medida em que os velhos quadros se acomodam a estruturas de poder e de participação no jogo parlamentar que acabam se distanciando da vibração e do entusiasmo juvenil dos tempos heróicos de emergência e afirmação de um partido que, primeiro, era “out-system”, depois virou anti-sistema e que, ulteriormente, converteu-se em partido do sistema, ainda que comprometido com a transformação desse mesmo sistema. Tudo isso não impede esse partido de conservar intacta sua mensagem transformadora e de operar segundo regras democráticas pouco vistas nas demais agrupações político-partidárias.
Desenhado o quadro básico da transição política brasileira, caberia agora capturar, de um ponto de vista analítico, a economia política da mutação, de maneira a operar da melhor forma possível o salto para a vitória, e, de outro lado, num plano mais empírico e programático, contribuir para o debate de teses e propostas de políticas públicas que possam vir a ser testadas na realidade em algum momento do futuro próximo, de maneira mais concreta, a partir de janeiro de 2003.
O autor desta análise econômica não-acadêmica não pertence a nenhum partido oficial, mas pode ser considerado como simpático às causas “transformistas” que são defendidas pelo novo movimento “paradigmático” – introduzir mais justiça social no panorama brasileiro, colocar a economia a serviço da maioria, contribuir para a correção das desigualdades sociais e regionas do Brasil, favorecer um sistema político marcado pela ética etc. – ainda que não concorde com alguns dos métodos ou com muitas das políticas setoriais que vêm sendo avançadas e defendidas por dirigentes ou economistas desse partido “central”. Entendo, porém, que o receituário de política econômica proposto pelo partido foi concebido como uma síntese das propostas apresentadas em assembléia democrática, a serem depois afinadas em função dos requerimentos de administração concreta da máquina pública, segundo a mesma perspectiva evolutiva que já determinou a passagem do antigo programa partidário “maximalista” para um programa de campanha eleitoral moderadamente reformista e que aponta, portanto, para uma aplicação ainda mais “realista” dessa plataforma, processo durante o qual deve operar-se a inevitável compatibilização entre o politicamente desejável e o financeiramente possível, ou entre o socialmente necessário e o operacionalmente factível.

2. As leis fundamentais da economia política burguesa: devagar com a louça

O sistema político pode estar sendo transformado de maneira radical pelo novo centro político, mas este ainda não conseguiu abolir, no campo econômico, a lei da oferta e da procura. Caberia, por isso, atentar para o funcionamento dos grandes equilíbrios macroeconômicos ainda em vigor no cenário brasileiro. Segundo um dos preceitos não escritos do método econômico voluntarista, o princípio da escassez tem uma aplicação apenas relativa no receituário prático de política econômica. Ele existe, mas não é um constrangimento absoluto, de onde decorre que as escolhas dos agentes econômicos poderiam ser mais bem delimitadas pelos administradores econômicos do que pelas possibilidades reais do sistema produtivo. Estas possibilidades podem ser estendidas no limite dos recursos disponíveis, daí as propostas de voltar a crescer 4, 5 ou mesmo 6%, regularmente encontradas nos discursos e textos de alguns dirigentes e economistas.
Uma coisa é constatar, no plano da retórica, que o ajuste neoliberal impôs um baixo dinamismo econômico e que portanto seria preciso, no novo governo, mobilizar a capacidade produtiva instalada na indústria, na agricultura e nos serviços. Outra, bem diferente é achar que a proposta de um novo modelo de crescimento – modificando o estilo de desenvolvimento concentrador e excludente – pode ser feita à base de exortações e de boa vontade: constatar a “abundância de terras férteis” – elas serão vertidas para a agricultura capitalista ou para a propriedade familiar? –, indicar a capacidade não utilizada em importantes segmentos produtivos – o empresário estaria trabalhando aquém de suas possibilidades, mas por quê, exatamente? – e lamentar a mão-de-obra qualificada desocupada – formados sem oferta de emprego no setor – não bastam para superar os limites do crescimento no Brasil. O discurso de campanha disse apenas que a utilização dos recursos disponíveis carece de políticas públicas adequadas, sobretudo as fiscais, creditícias e de abastecimento, mas a introdução de medidas práticas de adminstração econômica precisa ir além dessas generalidades.
Considerando-se que a política de abastecimento do futuro governo pode ser a resultante de um casamento feliz entre as leis da oferta e da demanda – se elas não forem maltratadas até lá –, restariam as políticas fiscais e monetárias como cerne das propostas de políticas macroeconômicas. Alguns economistas parecem acreditar que seria possível aproximar o Brasil do PIB potencial desde que as políticas “corretas” sejam efetivamente aplicadas. Nâo há nenhum impedimento teórico a essa crença mas, do ponto de vista prático, será preciso determinar como recuperar, com o orçamento existente, a capacidade de investimento público, tão importante para alavancar o crescimento econômico.
Pergunta-se, aliás, se esse investimento deve mesmo ser público e, se for este o caso, por que exatamente, a equipe econômica identificada com a administração FHC arriscou-se, durante tanto tempo, a sofrer acachapante derrota eleitoral ao manter baixo nível de crescimento e poucas oportunidades de emprego e renda? Supondo-se que os atuais defensores do modelo “neoliberal”, ainda que legítimos representantes da classe dominante e dos interesses do grande capital, não sejam todos um bando de idiotas e alienados, eles também deveriam ter, supostamente, interesse em fazer o País crescer a taxas mais altas, inclusive como forma de perpetuar-se no poder através da criação de empregos e da expansão da renda agregada. Se eles não o fazem, não deveria ser por mera ausência de vontade, mas por constrangimentos reais no investimento global, fatores que por sua vez remetem à baixa taxa de poupança do sistema econômico e à alta propensão à “despoupança” estatal, notoriamente conhecida nos últimos anos (ou décadas) de economia política real no Brasil.
Em outros termos, do ponto de vista fiscal e monetário, aumentar o crédito e os incentivos para o crescimento e baixar os juros para a irrigação adequada do aparelho produtivo capitalista não dependem apenas da vontade do ministro da economia ou do presidente, mas de certos equilíbrios econômicos cujas variáveis não são todas dominadas pelo governo. Ao contrário: o governo pode ele mesmo constituir um fator limitador do crescimento econômico, ao “drenar” uma parte dos recursos necessários para o setor privado investir em novas atividades produtivas. E por que isso acontece? Porque a oferta e a procura de dinheiro são em grande medida determinados, não pelas necessidades da sociedade mas, pelas necessidades do governo, que como sabemos não constitui toda a sociedade (ainda que ele absorva um terço de tudo o que ela produz).
O novo centro da política brasileira pode, assim, até achar que vai imprimir uma nova “dinâmica de crescimento” no sistema produtivo, mas ele não poderá negar que a maximização da capacidade manipuladora do governo – inclusive para aplicar “boas” políticas – resulta numa minimização das possibilidades de investimento do setor privado, o único, finalmente, que produz empregos não inflacionários no País (no sentido em que a oferta atende, supostamente, a uma demanda real, caso contrário o capitalista não arriscaria o seu dinheiro).
Por outro lado, a maximização da “utilidade marginal” do capitalista, por via de políticas públicas de financiamento e de políticas setoriais de indução do investimento e produção, resultam na minimização de recursos públicos para fins de atendimento da população mais carente, que seria supostamente objeto de atenção prioritária no novo governo. Não sendo elásticos esses recursos, a não ser pela via da indução inflacionária (isto é, irresponsabilidade emissionista), corre-se o risco de, por um lado, distribuir dinheiro para quem já é rico e de, por outro lado, deixar ao relento quem realmente precisa, que são justamente aqueles setores não organizados da sociedade que menos chance têm de fazer passar suas reivindicações (por certo difusas e comuns aos milhões de excluídos existentes pelo Brasil afora) à frente das reinvindicações e programas muito precisos apresentados por aqueles grupos de interesse organizados que conseguem provar que tal ou tal atividade setorial será responsável pela criação de tantos empregos diretos e milhares de outros indiretos.
Que tal se, por uma vez, o novo governo deixasse agir sozinha a lei da oferta e da procura? Existe, obviamente, um tremendo preconceito contra a economia política burguesa, mas porque não usar essa lei contra a burguesia, que sempre vem reclamar do governo algum tratamento especial que a dispense, justamente (e sem ironia), de enfrentar essa lei? Registre-se, apenas, que a “lei” antecede e ultrapassa o reino burguês e a dominação capitalista conhecidos nos últimos cinco século, sendo mais propriamente um mecanismo condizente com o funcionamento de mercados livres. Mas, se o novo governo desconfiar dos mercados e pretender fazê-lo “funcionar melhor” – em benefício dos “pobres”, entenda-se – o mais provável que ocorra é que os beneficiários desse tipo de intervenção estejam mais bem situados nos estratos superiores da distribuição de renda do que nas camadas inferiores. Não há uma teoria econômica conhecida que explique esse fenômeno curioso – a despeito do famoso senso comum da “lei das conseqüências involuntárias” – mas a experiência histórica tem indicado que políticas ativas em certos setores de atividades tendem a gerar fluxos de renda que são capturados pelos operadores principais daqueles setores, que raramente comportam excluídos e pobres em geral entre seus clientes imediatos.

3. Princípios de economia política e do imposto: David Ricardo vingativo?

Hoje, como nos tempos de Malthus e David Ricardo, os impostos representam uma parte da produção e do trabalho de um país, colocados à disposição do governo, e que são, em última instância, uma subtração ao capital e à renda nesse país. Naqueles tempos, os principais impostos existentes eram aqueles sobre a renda da terra e as taxas aplicadas a produtos importados (até o início do século 20, a principal fonte das receitas do Estado). A economia moderna inventou uma quantidade incrível de novas fontes de renda para o Estado, a começar pelos impostos indiretos sobre todo tipo de produção (geralmente sobre valor agregado ou venda de produtos ou serviços), o imposto direto sobre a renda pessoal e diferentes taxas sobre transações e transferências de ativos.
David Ricardo era um crítico dos impostos, uma vez que eles tendiam a aumentar o preço dos produtos (penalizando portanto os trabalhadores, ou pelo menos aumentando o seu custo de reprodução, como Marx aprendeu com ele), reduzindo, por outro lado, a renda disponível para investimentos. Em nenhum momento ele concebeu o sistema de impostos como mecanismo redistributivo inter-classes ou como instrumento corretor de desigualdades, muito embora ele não fosse desatento a esse aspecto também. Esse, porém, é o aspecto que mais tende a ser ressaltado nos conceitos elementares da taxação, tal como apresentados nos manuais econômicos do novo centro político brasileiro. Nessa visão, o imposto não é simplesmente um expediente menos que perfeito para atender a algumas das obrigações sociais da administração pública, mas a forma principal pela qual pode ser introduzida a justiça social.
A regra nº 1 parece ser: “eles são ricos, por isso devem pagar”, o que traduz uma percepção vingativa do mundo e das relações sociais. A regra nº 2 parece rezar: “se nós somos pobres, é porque nosso trabalho foi expropriado pelos ricos”, daí a necessidade de não apenas aumentar os impostos sobre o capital, como também elevar salários e os benefícios sociais, na certeza de que isso vai corrigir as distorções acumuladas ao longo de anos e anos (décadas?; séculos de extração de mais valia?) de crescimento econômico segundo um modelo excludente e concentrador.
Uma derivação dessa segunda regra é a que se aplica ao comércio exterior e aos investimentos estrangeiros e está excelentemente bem refletida no comentário do líder do MST ao argumento da Embaixadora dos EUA, quando da entrega dos resultados do plebiscito sobre a Alca, sobre a pobreza persistente na América Latina: “só existem esses 80 milhões de pobres porque as multinacionais norte-americanas vêm aqui nos explorar”, o que justifica plenamente, portanto, a manutenção de altas tarifas na importação e várias normas restrititvas ao investimento direto estrangeiro. Os industriais da FIESP agradecem tão zelosa defesa dos seus interesses e mandam avisar que vão, sim, aproveitar a deixa para defender a manutenção de altas tarifas e algumas outras “reservas de mercado” para os capitalistas nacionais e que, com seus outros colegas do IEDI, vão oferecer estudos e propostas para justificar políticas públicas “ativas” em seus setores de interesse (se possível todos eles, da extração da borracha à indústria eletrônica, do setor bancário aos estaleiros navais).
O novo centro político seria em princípio favorável a essa orientação ativista da política industrial, que promete ser seletiva e vertical, e que pelo visto deve privilegiar o setor microeletrônico, apontado como o grande vilão da balança comercial. Apesar de que se proclame a vontade de não criar novos cartórios, podemos ter certeza de que os candidatos já estão articulando seus novos projetos de investimentos com o cálculo já embutido dos ganhos adicionais a serem obtidos com isenções fiscais e outros incentivos tributários e creditícios. O próprio David Ricardo, se vivo fosse, se surpreenderia com essa contradição econômica que consiste em taxar o conjunto da sociedade para entregar o dinheiro a quem já é rico.
A justificativa para esse tipo de comportamento pouco racional seria a de que, ao estimular atividades produtivas produtoras de emprego e renda, são gerados novos fluxos de renda e, ainda que os ricos fiquem um pouco mais ricos, o Estado pode então taxá-los de maneira adequada para transferir esses recursos aos grupos sociais mais necessitados. O problema, como sempre, será o de escolher os ganhadores desse jogo administrativo – alguém, afinal, precisa dizer, com a sapiência dos números oficiais e uma concepção esclarecida do processo histórico da industrialização, quem tem direito ao maná – e de explicar a todos os demais como e por que apenas alguns são beneficiados. Nada contra esse exercício de imaginação, mas convenhamos que a receita não é nova, tendo o mais recente exemplo de planejamento indicativo ocorrido sob a República dos militares, por acaso o modelo perfeito de concentração de renda e de forte aumento nas desigualdades distributivas.
Trata-se, talvez, de uma nova versão da teoria econômica do “fazer o bolo crescer primeiro, para depois distribuir”, ainda que se possa, obviamente, tentar uma síntese dialética entre os dois métodos, crescer e distribuir ao mesmo tempo, ainda que essa economia política do possível seja extremamente difícil na sua dosagem apropriada. A distribuição, nas atuais condições orçamentárias brasileiras, só pode acontecer com novas fontes de receita ou com arrecadação mais eficiente, o que é uma possibilidade teórica real, mas dependente de certas variáveis que não serão totalmente controladas pelo novo executivo.
Quanto ao aspecto “externo” da economia política do imposto, a intenção iria justamente no sentido inverso ao da desgravação tributária e do incentivo às atividades selecionadas no plano interno: manutenção de alta proteção tarifária e de regras e normas de acesso condizentes com a preservação da soberania nacional, mesmo se em detrimento do bem-estar da maioria da população. Aqui se pensa que o imposto de importação e as barreiras de acesso ao investimento estrangeiro apresentam virtudes “punitivas” contra o capital “espoliativo” vindo de fora, quando as únicas desvantagens ficam com o próprio consumidor brasileiro (eventualmente também o trabalhador, privado de uma nova fonte de emprego, ao dificultar-se o tratamento nacional ao investidor estrangeiro). Como essa visão tende a garantir que não haverá mesmo uma Alca anexacionista (ou pelo menos não com a presença do Brasil), o resultado previsível é a continuidade das linhas tradicionais de industrialização substitutiva, com pleno aproveitamento das possibilidades do mercado interno. De resto, cabe continuar brigando na OMC para a liberalização dos mercados agrícolas, talvez mais bem tratados na relação política mais equilibrada entre o Mercosul e a UE, um bloco comercial dotado do senso prático da correção das desigualdades socio-regionais (pelo menos para os seus próprios membros).

4. A organização social da produção ao estilo do programa de Gotha

As evidências empíricas das aventuras econômicas conduzidas sob o governo de Salvador Allende e na primeira fase de François Mitterrand indicam que o novo centro político tenderá a atuar mais segundo as linhas de Felipe Gonzalez e de Jacques Delors do que em função de um programa maximalista que tenderia a proclamar “de cada um segundo sua capacidade, a cada um segundo suas necessidades”. Ainda asim, parece haver uma tendência a acreditar que a conformação de um modelo “democrático e popular” de gestão econômica poderá superar alguns dos limites materiais colocados à economia real.
Como isso poderia ser feito? Talvez negociando diretamente com a burguesia nacional (o aumento dos investimentos com o máximo possível de oferta de novos empregos), com os banqueiros especuladores (o alongamento da dívida interna, por exemplo) e com os investidores estrangeiros (trabalhando com eles na seleção da melhor alocação de fatores mobilizados no projeto de internalização de capital, maximizando o aproveitamento da dotação interna e das possibilidades de exportação). Tal tipo de solução seria perfeito se a teoria econômica voluntarista não se chocasse de frente com o que se poderia chamar de “equação Mané Garrincha”, aquela que faz depender o resultado esperado da boa vontade do adversário (este representado pelos mesmos personagens acima referidos, que parecem preferir guardar sua própria margem de manobra, sem depender da consciência esclarecida de algum burocrata governamental).
Não que seja terrivelmente difícil induzir capitalistas nacionais e estrangeiros a investir numa pujante economia nacional, com promessas de retornos ampliados, pois que tudo estará sendo feito para ampliar o mercado interno. Mas o problema é que essa indução sempre vem acompanhada de pedidos de favores especiais, os mesmos referidos acima sob a forma de isenções fiscais, de créditos tributários e outros mecanismos de “facilitação de negócios”. A experiência dos anos 1990 conheceu fartos exemplos desse tipo de política industrial, geralmente feita por governadores à cata de alguns empregos a serem criados por multinacionais chantagistas. Caberia agora fazer um balanço honesto dos resultados da “guerra fiscal” desse período, para ver quanto custou cada emprego criado e avaliar se não teria sido melhor fazer esforço similar na direção da formação da mão-de-obra e na capacitação técnica da população, em primeiro lugar mediante programas universais de educação ampliada para os setores mais desfavorecidos.
O ambiente regulatório das relações sociais de produção na fase de transição para uma economia democrática e popular pode vir a chocar-se, igualmente, com demandas conflitantes e contraditórias no plano da legislação trabalhista, na qual o neoliberalismo neodefunto operou, ao longo dos últimos anos, uma não tão grande (mas certamente lenta) transformação, no sentido da flexibilização das relações contratuais como forma de incrementar as chances de empregabilidade (aqui interessando apenas o mercado formal).
Nesse campo, os desafios são gigantescos, sobretudo no terreno do mercado de trabalho informal, ou pouco qualificado, onde a presença sindical é nula ou marginal. Os problemas mais graves de pobreza e de exclusão se encontram aliás nesse setor, onde as regras contratuais sequer encontram aplicação. A menos que o Estado pretenda organizar uma NEP da fase de transição, caracterizada por uma “economia filantrópica” com fortes injeções keynesianas na demanda agregada (o que parece orçamentariamente difícil), a solução desse imenso problema passa justamente por mais flexibilização do que por mais regulação. Tal tipo de proposta pode chocar mais de uma consciência preocupada com o funcionamento do mercado de trabalho, mas não se trata aqui de atender nenhuma teoria econômica ou alguma conveniência ideológica, e sim de resolver uma tragédia nacional, que é a auto-exclusão do mercado de trabalho de imensos contingentes de brasileiros que simplesmente não encontram ocupação por “desqualificação” absoluta. A regulação e os investimentos nacionais ou estrangeiros, para eles, têm influência nula, zero completo.
O problema, para o novo centro político, é que programas ao estilo de Gotha, de tendências lassalianas ou não, se dirigem a trabalhadores organizados e já integrados ao mercado formal, aliás dotados de um mínimo de proteção social e aspirando à conquista do poder político (que está, como se sabe, ao alcance da mão). A realidade da exclusão social do Brasil recomendaria trabalhar com um programa pré-Gotha, condizente com as necessidades mais elementares das grandes massas ditas subalternas: educação, saúde, saneamento básico, acesso à segurança e à justiça, enfim aqueles requisitos mínimos da cidadania que parecem ainda ser uma miragem para grandes contingentes da população.
Por isso, a grande missão histórica do novo paradigma do sistema político no Brasil não precisaria ser – ou pelo menos não deveria ser – ajudar a burguesia nacional e os capitalistas estrangeiros a ficarem mais ricos, mas tão simplesmente implementar políticas universais que seriam suscetíveis de tornar os pobres menos pobres, de fazer com que as crianças das escolas públicas tenham uma educação de qualidade e, de modo geral, diminuir a desigualdade de chances nos mercados laboral e educacional. Se apenas isso fosse feito, já seria uma imensa revolução social no Brasil, totalmente compatível com o espírito e a letra do programa do novo centro político.

Paulo Roberto de Almeida (www.pralmeida.org)
Washington, 947: 22 de setembro de 2002

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