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terça-feira, 2 de outubro de 2018

Rubens Ricupero: Premio da ABL pelo seu livro A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016

Discurso do embaixador Rubens Ricupero por ocasião da concessão do prêmio Senador José Ermírio de Morais, na Academia Brasileira de Letras, em 2 de outubro de 2018


Cerimônia de entrega do Prêmio Senador José Ermírio de Moraes concedido pela Academia Brasileira de Letras ao livro A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016.
Rio de Janeiro, 2 de outubro de 2018
Senhor Presidente da Academia Brasileira de Letras Marco Lucchesi,
Senhor Representante do Instituto Votorantim José Pastore,
Senhoras e Senhores Acadêmicos,
Senhoras e Senhores,

Sou profundamente grato a todos os membros da Academia Brasileira de Letras que, de forma generosa, escolheram A diplomacia na construção do Brasil 1750-2016 para receber o Prêmio Senador José Ermírio de Moraes deste ano. A escolha honra não somente a mim, mas aos inúmeros estimuladores do projeto e coprodutores editoriais da obra, aos quais renovo os agradecimentos que inseri no posfácio do livro.
Uma razão adicional de alegria é o prêmio levar o nome do Senador José Ermírio de Moraes, que conheci no começo de minha carreira e a cujos filhos, José e Antônio, dediquei amizade e admiração. O Senador José Ermírio e seus filhos devem ser lembrados sempre e em particular numa hora como esta, em que tantos brasileiros duvidam do Brasil e de si mesmos. 
José Ermírio encarnou o modelo ideal dos industriais nacionalistas e socialmente progressistas que, na era heroica da industrialização brasileira, lançaram os fundamentos da indústria pesada. Ele, seus filhos, netos e colaboradores superaram todas as crises ao longo do século 20 para consolidar, no árduo domínio da indústria de base, uma multinacional autenticamente brasileira, a Votorantim, hoje rara empresa de êxito com mais de cem anos de vida.  
Ao receber na Academia prêmio que evoca essa notável prova de nossa capacidade de realização, peço licença para contar pequena história sobre as variadas origens deste livro. O que me move não é o sentimento de descabida importância do que escrevi. Simplesmente espero que a narrativa explique algo que nos vai na alma a todos que amamos este país e nos angustiamos com suas dores e descaminhos. 
Há muito tempo que eu vinha pensando em escrever um livro que servisse de compêndio aos estudantes e preenchesse um vazio: o de contar a história das relações internacionais do Brasil como parte integral da evolução do povo brasileiro, não como apêndice ou nota de pé de página. Seria, no fundo, uma história do Brasil a partir de perspectiva diferente, a das relações de influência recíproca entre o país e o mundo.
O desafio era gigantesco, eu estava envelhecendo, não tinha tempo ou me dispersava em seminários e artigos para não ter tempo de enfrentar a tarefa. É possível que o projeto nunca saísse do papel, como não haviam saído os desígnios do barão do Rio Branco de escrever a História Militar, a História Naval, a História Diplomática do Brasil, a História do nosso envolvimento na Bacia do Prata. O que pôs fim à indecisão e me motivou a escrever foi episódio ocorrido em 2010.
No início daquele ano, Otávio Frias Filho me convidou, como seu pai fazia de tempos em tempos, a almoçar com os principais membros da Redação da Folha de São Paulo. Passamos quase o tempo todo a discutir a política externa brasileira. Estava-se no último ano de Lula no governo, ponto alto de seu prestígio internacional. Defendi a ideia de que o Brasil se destinava a ser uma potência paradoxalmente sem poder, ao menos o poder duro das bombas atômicas, das armas de destruição de massa, dos assassinatos por drones, das sanções econômicas.
Nossa vocação consistia em projetar influência externa por meio do poder brando ou suave da negociação, da conciliação, da transação, do exemplo. Deveríamos desempenhar, como vínhamos fazendo, um papel construtivo de moderação e equilíbrio no sistema internacional, sem veleidades de hegemonias ou dominação. Comparado a quase todos os países continentais membros dos BRICS, somente o Brasil não era potência nuclear, nem potência militar convencional. Por escolha, não por incapacidade tecnológica.
Além da proibição expressa da Constituição, não precisávamos de armas nucleares. Em paz com nossos dez vizinhos há quase 150 anos, não existia ameaça externa que justificasse desviar recursos da óbvia prioridade nacional de superar o subdesenvolvimento, eliminar a miséria, reduzir a desigualdade, dar vida digna a todos os brasileiros. 
Otávio possuía mente inquisitiva e exigente, explorava os assuntos com tenacidade, esmiuçava cada um de meus argumentos. Saí com a impressão de que não tinha convencido ninguém, que me julgavam um sonhador, idealista ingênuo. Tempos depois, recebi um cartão de advogado que não conhecia. Dizia: “Extraio de artigo de Otávio Frias Filho: “Continuaremos a ser o único a prescindir de armas nucleares como recurso dissuasivo? O ex-ministro Rubens Ricupero tem uma bela argumentação em defesa dessa originalidade, talvez até como contribuição da cultura brasileira ao futuro dos povos”. E o cartão concluía: “Rogo de Vossa Senhoria indicar-me como posso conhecer esta sua importantíssima opinião”. 
Meu primeiro impulso foi responder com uma explicação detalhada ao missivista e a Otávio, a quem prometera continuar por escrito nossa conversa. Logo percebi que a complexidade da questão exigia antecedentes históricos, análises, comparações, que excediam os limites de uma carta ou ensaio. Só um livro permitiria talvez dar conta da provocação. Fiz alguns esboços da introdução, de alguns capítulos, molemente, sem pressa, com longos intervalos. Passaram quatro anos quando o susto de uma operação de coração aberto me alertou que o tempo estava chegando ao fim. Parei os artigos, deixei de ir a seminários, finalmente escrevi e publiquei o livro.  
Pensei em levar a Otávio um exemplar para mostrar o que resultara de nosso encontro e até lhe mandei recado a respeito. Mas, vieram os lançamentos, as noites de autógrafos, as entrevistas, as viagens, a inércia e adiei o cumprimento da promessa. Uma tarde trabalhava em casa com o rádio ligado, ouço que Otávio tinha morrido naquela manhã. Levei um choque, pois nem sabia que ele estava gravemente doente. O projeto ficava inacabado, o leitor secreto para quem eu havia escrito jamais leria meus argumentos. Não aprendi a lição e, relapso, até agora não procurei o advogado que me interpelou.  
Tudo isso para dizer que Otávio, o advogado e eu mesmo pressentíamos que estava em jogo naquela discussão a ideia que fazíamos do Brasil como um país com ambição de ser potência de maneira diferente da tradicional. Longe de original, a ideia vinha de Rio Branco e Nabuco, modificada por Oswaldo Aranha, Afonso Arinos, San Tiago Dantas. Meu colega mais jovem, José Humberto de Brito Cruz, deu-lhe expressão feliz: outro estilo, outra forma de ser grande potência é possível. Ajudar a construir essa nova noção poderia ser uma das melhores contribuições do Brasil ao sistema internacional. 
A busca dessa forma diferente de ser potência constitui a ideia não do país que somos e sim do que gostaríamos de vir a ser. Contudo, o país ideal de fidelidade aos valores de paz, justiça, direitos humanos, proteção ambiental, eliminação da miséria, paixão pelo máximo possível de igualdade, esse país ideal se choca com o país real, muito afastado disso tudo. 
A construção do Brasil do título do livro consiste justamente no esforço de aproximar as duas versões de país, de transformar o país real no país que queremos ser. A destruição do Museu Nacional, o atentado contra um candidato, a divisão do povo em grupos violentamente antagônicos, são golpes que tornam a meta ideal mais longínqua. Pode ser que o futuro próximo nos reserve maiores sofrimentos, quem sabe até retrocessos na construção da sociedade que sonhamos. 
Nestas horas sombrias, volta com força a tentação de pôr a culpa em nossa herança cultural e histórica, nas mazelas e fantasmas que herdamos do passado. Lembramos com William Faulkner de que o passado não morre, nem mesmo é passado, pois não acabou de passar. Ou rimos amargamente com a frase de Millôr Fernandes, “o Brasil tem um enorme passado pela frente”. 
Ambas afirmações dizem a verdade. É certo que a superação do que o passado legou ao presente em injustiça e desigualdade condiciona o avanço rumo ao país ideal. No entanto, as duas frases podem ser igualmente lidas em sentido oposto. O passado não é apenas danação e fatalidade. Machado de Assis é o passado que não passou, que nos guia e inspira até hoje no anseio de querer ter uma literatura, uma cultura original. 
Da mesma forma nunca haverão de passar Guimarães Rosa, Clarice Lispector, Castro Alves, Drummond, Bandeira, Mario de Andrade, Villa Lobos e Tom Jobim, Vinícius e Rui Barbosa, Gilberto Freire e Sérgio Buarque, nossos poetas, músicos, artistas populares e anônimos, Rio Branco, Nabuco, tantos nomes, tanta coisa a mais. Em outras palavras, o passado se confunde com a cultura na qual existimos, que nos dá a identidade de brasileiros, dentro da qual nos movemos. Oxalá tivesse o Brasil mais e mais desse tipo de passado pela frente!
Imagino que o prêmio concedido a este livro se deva, acima de tudo, a isso, à percepção de que ele buscou imperfeitamente mostrar em suas páginas que não precisamos envergonhar-nos de um passado diplomático que nos ajudou a ser aquilo que somos no que temos de melhor. E também por haver sugerido que o melhor desse passado não morrerá nunca, nem é mesmo passado, pois vive em nosso sonho de fazer do Brasil uma potência de reconciliação e paz, de justiça e igualdade, de entendimento e fraternidade entre os povos.  

quinta-feira, 28 de dezembro de 2017

Ricupero lanca o seu livro na Bahia: longa entrevista ao jornal A Tarde

Rubens Ricupero: "Diplomacia é a arma de quem não tem exército"

Luís Fernando Lisboa

Em novo livro, o ex-ministro Rubens Ricupero analisa a situação do Brasil no cenário internacional - Foto: Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE
Em novo livro, o ex-ministro Rubens Ricupero analisa a situação do Brasil no cenário internacional
Adilton Venegeroles / Ag. A TARDE
Foram muitos os episódios da política brasileira em que o diplomata, jurista e historiador Rubens Ricupero, 80, foi testemunha e ator participativo. Desde a implantação do Plano Real, como substituto de Fernando Henrique Cardoso no Ministério da Fazenda, do governo Itamar Franco (1992-1994), até a negativa repercussão no “escândalo da parabólica”, no ano de 1994, resultado de uma transmissão televisiva vazada. O episódio foi lembrado recentemente numa nota emitida pelo Planalto Nacional, em reação a uma aspa de Ricupero: “Ninguém quer sair na foto com o Brasil”. A frase vem no contexto de lançamento do seu novo livro A Diplomacia na Construção do Brasil: 1750-2016, recém-lançado pela Versal Editores. Com mais de 55 anos de carreira dedicados à trajetória diplomática, além de atuação como embaixador do Brasil nas Nações Unidas e como ministro do Meio Ambiente e Amazônia Legal, Ricupero apresenta uma pesquisa que lhe demandou imersão de cinco anos em arquivos brasileiros e internacionais que ainda não tinham vindo a público. Traz detalhes, por exemplo, sobre os avisos dados pelo governo norte-americano ao presidente João Goulart a respeito de “posições antiamericanas”, oferecendo suporte favorável aos militares para a execução do golpe em 1964. Na passagem por Salvador, onde palestrou no Programa de Pós-Graduação em Relações Internacionais da Ufba, na Associação Comercial, Ricupero conversou com Muito sobre a história do Brasil e sua articulação com a diplomacia internacional.

O senhor  diria que o seu novo  livro – A Diplomacia na Construção do Brasil: 1750-2016  – é, de algum modo, inaugural?
Eu acho que essa é uma palavra correta, que não tinha me ocorrido, sabe? É um livro realmente  inaugural porque ele preenche um vazio. Não havia até hoje uma abordagem sobre a história do Brasil que mostrasse a relação do país com o mundo, e o impacto dos acontecimentos internacionais na nossa sociedade. No livro, isso é pensado de uma maneira integrada com a vida interna, com a política e a economia. No passado, havia uma ou outra pequena história diplomática, mas todos eram livros muito antigos, de 80, 90 anos atrás. Muito breves, quase todos concentrados na época colonial e abstraíam por completo da vida política e econômica interna. É como se tudo acontecesse num abstrato, num vácuo. Um país qualquer. Aliás, de um modo geral eram livros muito enfadonhos. Eles se restringiam a falar apenas  de limites geográficos, montanhas, rios. Era uma relação de nomes, datas, tratados. Não havia palpitação de vida. As histórias gerais do Brasil dão pouca atenção e espaço aos acontecimentos internacionais. No máximo, um parágrafo, uma nota ao pé da página. É sempre alguma coisa menor. Procurei fundir as duas coisas: apresentar a história do Brasil e a história internacional integradas.

Quais acontecimentos históricos, na opinião do senhor,  deixam clara a implicação de fatos históricos no Brasil com o ambiente internacional?
A independência e a abertura dos portos, que inclusive ocorreu aqui em Salvador, são episódios que reverberam o que estava acontecendo na Europa: a Revolução Francesa, o fim do Antigo Regime, as Guerras Napoleônicas, a Invasão de Portugal pelas tropas francesas. Então, não se pode separar uma coisa da outra. No Brasil, já havia descontentamento com o sistema colonial, e que vinha de longe com a Inconfidência Mineira e a Revolta dos Alfaiates. Mas nada disso prosperou porque não havia condições internacionais.

Quando o cenário internacional começou a influenciar a história do Brasil?
Esse cenário começa a mudar quando acontece a convulsão que resulta no encerramento do Antigo Regime Europeu, na Revolução Americana, na Revolução Industrial Inglesa. No livro, procuro mostrar que muitos episódios históricos brasileiros, supostamente apenas internos, na verdade são internacionais. Eles são a repercussão, no Brasil, do que acontecia do lado de fora do nosso país.

Esses embates interferem na ideia que outros países fazem hoje do Brasil?
As relações internacionais, a política externa, contribuíram muito para criar a imagem que o brasileiro faz de si próprio, e também na imagem de Brasil, nos valores do país. O general Charles de Gaulle costumava dizer que a França não seria a França sem uma certa ideia de grandeza. Mas era a ligação com a glória militar. Lá fora, representamos a imagem de um país pacífico, que não está em guerra com os vizinhos. Estamos prestes a completar 150 anos ininterruptos de paz com os dez países que temos fronteiras, tão distintos como Argentina e Suriname, Guiana e Uruguai. A última guerra bilateral em que o Brasil esteve foi a Guerra do Paraguai, que acabou em 1870. Isso é muito raro. Os países que se comparam a nós, como Rússia, China e Índia, viveram sempre em conflito.

O senhor considera esse fato – de não entrarmos em conflito com nossos  vizinhos, ao contrário de outros países –  como um traço marcante da nossa trajetória política internacional?
É um traço, mas não porque somos melhores do que os outros. Não quero dizer isso. Apenas tivemos a sorte de construir um país numa área de, relativamente, pequena incidência de conflitos. Além do mais, um aspecto muito importante a realçar é que o Brasil, desde cedo, foi herdeiro da tradição portuguesa. Portugal sempre foi um país fraco, diminuto, dependente da diplomacia para evitar ser engolido pela Espanha, que de 1500 até 1640 era a nação mais poderosa do mundo. Quando Portugal se torna independente dos 60 anos de dominação espanhola, se defendeu como? Não pela força própria, já que não tinha. Mas, sim, pela aliança com a Inglaterra, isto é, pela diplomacia. Essa é a aliança mais antiga do mundo e nunca foi interrompida: desde 1280, atravessando a Segunda Guerra Mundial. Isso é interessante para mostrar que a diplomacia, a política externa, é a arma daqueles que não têm armas, exército.

De que modo o Brasil incorporou essa postura portuguesa nas estratégias diplomáticas?
O país segue com essa particularidade: se não fosse a diplomacia, teríamos menos de um terço do território atual, não seríamos membro dos Brics [grupo político de cooperação formado por Brasil, Rússia, Índia, China e África do Sul]  nem teríamos a pujança do agronegócio. Dos dez municípios de maior produção de soja, carnes e milho no Brasil, os que fazem a exportação do agronegócio, oito estão localizados  no Mato Grosso. Eles, hoje, poderiam ser território do Peru, Colômbia ou Bolívia. Não ganhamos isso pelo exército, porque sempre fomos um país militarmente fraco. Nunca houve um exército poderoso. O Brasil ganhou isso através da arma da diplomacia, negociação, perseverança, aquilo que eu chamo no meu livro de “diplomacia do conhecimento”, aquela que se baseia no estudo, nos argumentos cartográficos, nos mapas, nos documentos que, hoje, as pessoas esqueceram.

Historicamente, nas tomadas de posição internacional do Brasil, as ideologias partidárias chegaram a influenciar rumos da política externa?
De maneira geral, a nossa política externa tomou bastante cuidado com ideologias e modismos passageiros. Houve um momento ou outro de influência, mas a nossa tradição histórica nunca foi de paixão ideológica. Veja a Proclamação da República no Brasil: o movimento não teve, nem de longe, a violência da França, por exemplo. A família imperial foi tratada corretamente, não eram muitos monarquistas. A ideia-base que sempre tivemos no Brasil é que o diplomata, assim como um militar, serve a um Estado, quer dizer, a encarnação do país, e não serve a um governo. Não há nada condenável em servir a um governo ou a um partido, mas isso é uma maioria eventual, que pode mudar. O diplomata ou militar tem que ter em mente a permanência do país. Em momentos mais recentes, por exemplo, houve um certo afastamento disso, sobretudo durante a época da diplomacia do governo Lula em relação à América Latina. Mas isso não é uma tradição nossa. Em geral, nós procuramos promover  as melhores relações com os nossos  vizinhos, mas sem misturar-se à política interna dos outros. Lula tinha um entendimento diferente, inclusive participando de comícios do Evo Morales [presidente da Bolívia]. A visão dele é de um homem de partido, por conta da questão de fraternidade. Mas é perigoso porque o país acaba se amarrando.

O apoio dado pelo governo americano ao golpe militar de 1964, por exemplo, que é mencionado pelo senhor no livro, deixa claro como a história interna depende dos interesses externos.
Nessa época, eu era diplomata em início de carreira em Brasília, havia muito poucos na cidade porque o Itamaraty ficou no Rio de Janeiro. Por acaso, recebi a comitiva americana que chegou na véspera do Natal de 1962, quando o presidente John Kennedy mandou o irmão dele, Robert Kennedy, vir ao Brasil para dar um ultimato a João Goulart: os americanos queriam que o Brasil escolhesse entre Cuba e Estados Unidos. Ou fazíamos isso ou então eles iam negar a ajuda econômica que o Brasil estava pleiteando. Quando Hermes Lima, então primeiro-ministro e chanceler, me telefonou já eram altas horas da noite. Ele me incumbiu de recebê-los na base área militar em nome do governo brasileiro. Na manhã, por volta das 11h, Robert Kennedy foi recebido por João Goulart no Palácio da Alvorada. Eu não entrei naquela reunião, fiquei do lado de fora. Aliás, os únicos a participar foram Goulart, Kennedy, o embaixador americano Lincoln Gordon e um intérprete americano. Foi uma conversa duríssima, complicada, com ameaças e momentos de quase ruptura, mas ninguém tinha uma ideia clara do que tinha acontecido. Nos levantamentos para o livro, descobri que, 50 anos depois, os americanos haviam finalmente liberado um documento que era um relato de 17 páginas, quase palavra por palavra, feito pelo embaixador americano. Já era o “beijo da morte”. A partir desse encontro, os americanos encorajaram cada vez mais a conspiração militar. Inclusive prometendo aos militares que, se o golpe não desse certo, eles receberiam apoio dos Estados Unidos.

Mas houve realmente uma interferência dos Estados Unidos em relação aos movimentos das   Forças Armadas brasileiras?
No final, não foi necessário. O governo caiu como um castelo de cartas. Mas os Estados Unidos já tinham montado uma operação, numa força-tarefa marítima, planejando a chegada de navios pela Baía de Guanabara, trazendo armas, munições e abastecimento de combustível para apoiar na repressão dos rebeldes, caso houvesse uma guerra civil. No dia do golpe militar, há um telegrama do embaixador americano que dizia: “Está 95% terminado, Castelo [Branco] me disse que já tomou o Rio de Janeiro e não precisa da nossa ajuda”. É assim, literal. Você vê que, com todas as letras, se precisasse, eles iriam ajudar.

O presidente John Kennedy acompanhava de perto os rumos do golpe?
Durante a minha pesquisa, eu descobri algo que divulgo pela primeira vez num livro nacional: a primeira conversa gravada do presidente John Kennedy, no famoso Salão Oval da Casa Branca, é sobre o Brasil. Ele e o embaixador americano decidem mandar o coronel Vernon Walters para cá. Esse homem era um americano que, durante a Segunda Guerra Mundial, atuou como oficial de ligação com Castelo Branco, então integrante do Estado-Maior e o primeiro presidente do governo militar. Walters é enviado para retomar o contato e preparar a conspiração. Essa conversa, que ninguém sequer sabia que existia, aconteceu no dia 30 de julho de 1962.

Recentemente, manchetes de jornais e capas de revistas trazem notícias sobre escândalos de corrupção, crise econômica e política, numa abordagem diferente da famosa capa na revista The Economist, em 2009, onde o Cristo Redentor aparecia decolando como um foguete. Qual imagem o Brasil tem, hoje em dia, no âmbito internacional?
Isso me permite retomar aquilo que considero como  a mensagem principal deste novo  livro. Não se pode separar a diplomacia da política interna e da  economia. Um país, para conseguir  ganhar projeção no mundo, precisa  estar bem: ter uma situação política democrática, respeitar os direitos humanos, ter prosperidade econômica, combater a desigualdade e a pobreza. Quando um país não tem nada disso, quando a imagem que se tem é negativa, falta aquele elemento fundamental da diplomacia: o prestígio, que é  chamado de o poder suave. O poder duro é o das armas, da coação econômica, aquele que o Brasil não tem. O poder brando, do exemplo, é aquele  que vem do prestígio, do fato  de que as coisas dão certo. Por exemplo, o Brasil no fim do governo Lula, por volta de 2009, 2010, possuía um grande prestígio. Era o país dessas capas de revista. Aquilo era falso? Não, já que na época o país ia bem. Aquilo, na verdade, não era sustentável, porque, a partir de um certo momento, passou-se a gastar muito mais do que o país podia. Quando a arrecadação caiu, a crise começou a morder. Mas, ao invés de o governo reduzir, ele continuou gastando. Aquilo não era uma mentira. Seria um erro dizer que a percepção que o mundo tinha era falsa. Só não trabalhamos o bastante para torná-la sustentável ao longo do tempo. É esse o desafio agora.

Qual lição fica, sobre relações diplomáticas e conflitos internacionais, no caso do  reconhecimento de Jerusalém como capital de Israel pelo governo de Donald Trump?
Isso expressa o erro colossal de um país que, agora, insiste em tomar medidas unilaterais. É o contrário do que deve ser a diplomacia. A base da paz no mundo é uma evolução por meio de acordos. O Estatuto de Jerusalém, por exemplo, deve ser proposto na base da negociação entre os palestinos e os  israelenses. Os Estados Unidos não têm nenhuma atribuição para posicionamento em relação a isso, isso cabe à Organização das Nações Unidas (ONU). Diplomacia é ouvir os outros, é respeitar os outros na base do consenso, da convergência. Nunca da força. Quando as armas começam a falar, esse é o fracasso da diplomacia.