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domingo, 10 de dezembro de 2023

Austeridade fiscal? No Brasil?? Contenção de gastos??? - Alexandre Schwartsman (Veja)

 Acredite quem quiser

Nosso passado recente não bate com promessas de austeridade

Por Alexandre Schwartsman

Veja, 9/12/2023

Na semana passada, o STF, provocado pelo Ministério da Fazenda, decidiu que a emenda constitucional aprovada no fim de 2021, conhecida como “PEC dos precatórios”, estabelecendo, entre outras coisas, um limite para o pagamento de precatórios, é inconstitucional.

Por mais que me cause estranheza uma emenda constitucional ser inconstitucional (não sou jurista, embora saiba da existência das chamadas “cláusulas pétreas”), meu dever como economista é analisar o impacto dessa decisão não só sobre as contas públicas, mas principalmente sobre a forma como este país se organiza, ou melhor, como não se organiza.

Recapitulando, precatórios “são requisições de pagamentos expedidas pelo Judiciário para cobrar” de entes governamentais “valores devidos após condenação judicial definitiva”. Ao final de 2021, o então governo apresentou a proposta como maneira de “driblar” o teto de gastos e abrir espaço para elevar outras despesas, aumentando, assim acreditou, suas chances na eleição presidencial, movimento depois reforçado pela chamada “PEC Kamikaze” em 2022.

Os valores não pagos em 2022 e 2023 não desapareceram, é claro. Apenas foram varridos para debaixo do tapete e, como consequência, houve um forte acúmulo de pagamentos para os anos seguintes, no melhor estilo bola de neve.

A decisão do STF permite que a atual administração pague os valores atrasados, montante que se estima ao redor de 90-95 bilhões de reais (0,9% do PIB). Nesse sentido, nada a corrigir: o “pecado original” consistia no calote contra os credores do governo; saná-lo foi uma decisão correta.

Ao mesmo tempo o STF definiu que tais pagamentos (até 2026) não devem ser computados para fins da adequação do total de despesas ao limite criado pelo “novo arcabouço fiscal”. Da mesma forma, também não serão considerados para fins de aferição da meta de resultado primário. Isso, até onde entendo, não significa que precatórios quitados deixarão de ser contabilizados como despesas, nem que desapareçam das estatísticas de dívida pública. Parece ser adequado. Evita-se que o erro do passado contamine o desempenho, para fins legais, dos gastos federais.

Ainda assim, um pouco de reflexão nos leva a uma conclusão no mínimo esquisita. Havia uma regra para o gasto em 2021, “driblada” pela PEC original. Há uma regra para as despesas hoje, agora “driblada” pela decisão do STF. Muito embora ambas as intervenções possam ser consideradas legais, na prática diferentes governos conseguiram, por manobras distintas, gastar mais do que o originalmente permitido, seja pela legislação do teto de gastos, seja pelo “novo arcabouço fiscal”.

Isso, leitores, é puro “suco de Brasil”. Muito embora ambas as restrições tenham sido criadas por nós mesmos, conseguimos, com jeito e malemolência, gastar além dos limites.

É possível dar qualquer verniz legal para isso. Não impede, porém, que despesas em excesso da receita resultem em elevação do endividamento, assim como taxas de juros mais altas do que as que prevaleceriam com gastos controlados.

Acredite quem quiser nas promessas de austeridade. Nosso desempenho em passado nada remoto conta uma história muito diferente.

quarta-feira, 23 de fevereiro de 2022

Lula teve, em 2003, uma “herança bendita”; agora terá uma verdadeira “herança maldita” - Alexandre Schwartsman (InfoMoney)

 Alexandre Schwartsman

Acredite se quiser

Há quem creia que, caso eleito, Lula repetirá 2003 e escanteará seus economistas, adotando uma política ortodoxa. As condições objetivas para isto, porém, são muito diferentes das observadas há 20 anos, sugerindo que isto seja muito pouco provável


Importante: os comentários e opiniões contidos neste texto são responsabilidade do autor e não necessariamente refletem a opinião do InfoMoney ou de seus controladores

matéria recente da Folha de S. Paulo sobre a escalação do time de economistas assessorando a campanha do ex-presidente Lula talvez ficasse melhor localizada numa possível seção de (reprises de) filmes de terror, mas traz uma questão importante: até que ponto Lula leva a sério as propostas (na falta de melhor termo) de seus (também na falta de melhor termo) economistas?

A experiência de 2003 sugere que muito pouco. Para quem se lembra, o projeto econômico do PT em 2001 propunha uma completa reviravolta da política econômica de então, acabando com o compromisso fiscal e metas para a inflação, para não falar de uma atitude no mínimo ambivalente quanto às dívidas externa e doméstica (afora apoiar o plebiscito sobre o pagamento das dívidas externa e interna, sugeria “um limite de comprometimento das receitas com o pagamento de juros da dívida pública”).

Como se sabe, todavia, ao assumir Lula não apenas manteve o chamado “tripé macroeconômico” (câmbio flutuante, superávits primários e metas para a inflação), como se engajou em reformas na linha de seu antecessor, incluindo a previdência do funcionalismo e aprimoramentos dos mecanismos de crédito (como o consignado e a criação da alienação fiduciária para imóveis).

Mesmo no campo social as transferências focalizadas de renda aos mais pobres, muito criticadas por economistas do partido, foram reunidas no Bolsa-Família, carro-chefe da política social do ex-presidente.

Em outras palavras, quando precisou governar, Lula não hesitou em escantear os economistas de seu partido e trazer quem entendia do riscado, seguindo uma política econômica absolutamente alinhada à de Fernando Henrique, enquanto denunciava, é óbvio, a tal “herança maldita”.

Não é por outro motivo que muita gente (e gente boa, diga-se) acredita que, se eleito em 2022, Lula não teria maiores problemas para executar um novo duplo twist mortal carpado e tomar medidas que recoloquem as contas públicas em ordem, sempre em nome da governabilidade.

Eu, obviamente, não tenho condições de saber o que se passa na cabeça de Lula, apesar de suas declarações recentes a respeito, em particular a afirmação sobre o país não precisar de reformas. Nem isto me interessa; o que pretendo olhar com mais cuidado é a alteração das condições objetivas para a prática do duplo twist mortal carpado.

No caso, a má notícia para quem aposta na capacidade acrobática do ex-presidente é que, ao contrário do legado de 2002, quem tomar posse em 2023 terá que lidar com a verdadeira herança maldita.

Um gráfico simples ajuda a ilustrar a questão. No segundo mandato de Fernando Henrique, o país passou por um ajuste fiscal considerável: embora ancorado mais pelo aumento da tributação do que pela redução de despesas, o superávit primário do setor público (governo federal, estados, municípios e empresas estatais), virtualmente inexistente em 1998, atingiu média de pouco mais de 3% do PIB naquele período, principalmente por força do desempenho do governo federal, cujo resultado saltou de 0,5% para perto de 2% do PIB.

Fonte: BCB

Em contraste, o setor público registrou modesto superávit no ano passado, 0,7% do PIB, enquanto o governo federal apresentou déficit (0,4% do PIB). Para este ano, as perspectivas são de retorno ao déficit, na casa de 0,8% do PIB.

Já a dívida bruta em 2002 equivalia a 65% do PIB (notando que nos referimos aqui à definição usada então, visto que a atual só começou a ser empregada em dezembro de 2006).

No final do ano passado, pelo mesmo conceito de 2002, a dívida superava 92% do PIB; pela definição mais usada hoje, atingiu 80% do PIB e deve encerrar 2022 um pouco acima disto, 84% do PIB, segundo o Prisma Fiscal mais recente.

Nesse contexto, considerando que a taxa real de juros se situa em torno de 5% ao ano para o horizonte de 12 a 24 meses (passado o presente aperto monetário), enquanto as perspectivas para crescimento sustentado (não falamos aqui do crescimento pífio de 2022) do país se encontram na casa de 2% ao ano (segundo o relatório Focus), conclui-se que, para estabilizar a dívida seria necessário produzir um superávit primário de 2,5% do PIB [=84% x (5%-2%)].

Embora seja até inferior ao registrado no primeiro governo Lula, 3,5% do PIB, requereria um aperto fiscal muito maior: precisaríamos sair de -0,8% para +2,5% do PIB, ou seja, mais de 3 pontos percentuais do PIB, algo em torno de R$ 350 bilhões.

Dito de outra forma, independentemente dos possíveis desejos acrobáticos de Lula, as condições meteorológicas para piruetas não são as de 2003.

Não basta mais deixar o carro rodar nas mesmas condições que vinha rodando (e se aproveitar, como ocorreu, do aumento de PIS-Cofins em 2003 e 2004) para manter a estabilidade.

Quem quiser produzir o ajuste fiscal requerido para recolocar a sustentabilidade da dívida pública nos eixos vai ter que gramar um bocado, enfrentando, de quebra, um Congresso Nacional muito mais fragmentado do que há 20 anos e uma população muito mais impaciente do que naquele momento.

Isto dito, apesar de o gasto federal (já deduzido o impacto da Covid no ano passado) ser bem mais alto do que o vigente em 2002 (18,5-19,0% do PIB contra 16% do PIB), a margem de manobra em termos de redução de gastos é muito menor.

Não há dados para 2002, mas os gastos obrigatórios – que representavam algo como 87% da despesa federal em 2007-2011 – hoje chegam a 92% do total.

Sem reformas, que de resto só produzirão efeitos em prazos mais longos, o caminho que sobra é o da elevação da carga tributária, cujas resistências são mais do que conhecidas.

Não por acaso, aliás, o ex-presidente faz uma exceção à sua ojeriza por reformas, defendendo mudanças tributárias, cujo sentido deixa claro: “está faltando que os ricos paguem sobre lucro e sobre dividendo. Aí quem sabe a gente vai arrecadar o suficiente para pagar as políticas públicas que o Brasil tanto precisa”.

Acredite se quiser.

sábado, 15 de janeiro de 2022

As pílulas de amnésia do dr. Guido [Mantega] - Alexandre Schwartsman

As pílulas de amnésia do dr. Guido 

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA INFOMONEY, 
EDIÇÃO DE 12 DE JANEIRO DE 2022

https://www.chumbogordo.com.br/400093-as-pilulas-de-amnesia-do-dr-guido-por-alexandre-schwartsman/?utm_source=mailpoet&utm_medium=email&utm_campaign=Coluna+Carlos+Brickmann 

Na semana passada, a Folha de S. Paulo publicou artigos de economistas expondo as ideias dos principais candidatos à presidência na área. Chamou a atenção de muitos, inclusive a minha, a peça cometida pelo ex-ministro da Fazenda, Guido Mantega, dentre outros motivos porque trata-se, é bom deixar claro, de um dos principais responsáveis pela extraordinária deterioração tanto econômica como institucional que levou à recessão de 2014-16.

Por mais que haja algum esforço no sentido de, curiosamente, dissociar o artigo da candidatura (afirma que é apenas “resultado das discussões de um grupo de economistas que assessoram o ex-presidente Lula”), não deixa de ser simbólico que o ministro mais associado à chamada Nova Matriz Econômica, hoje uma pobre órfã intelectual e política, seja seu autor.

Ademais, de alguma forma antecipando o que será provavelmente a retórica envolvida na campanha, o ex-ministro fez uma série de afirmações no seu texto que, ou não se enquadram na realidade, ou omitem fenômenos similares que se observaram nos governos petistas, conforme listado logo abaixo, merecendo comentários, no caso dados que confrontam a “narrativa” do ex-ministro.

A inflação estará recuando dos 10% de 2021, para algo em torno de 6%, às custas de uma feroz política monetária contracionista, que vai paralisar a economia brasileira.

O que o ex-ministro omite é que entre 2014 e 2015 a inflação subiu de 6,4% para 10,7% e só caiu (apenas em 2016!) às custas de uma política monetária ainda mais contracionista que a atual, que levou a Selic para 14,25%% ao ano. O juro real (já descontada a inflação esperada) para um ano, quer era de 4,5% ao final de 2014, atingiu 7,5% já em maio de 2015.

No final de 2014 o Brasil era um país pouco endividado, com uma dívida pública líquida igual a 32,5% do PIB.”

A dívida bruta, que é o que interessa, já havia pulado de 51,5% do PIB em 2013 para 56,3% do PIB em 2014, marcando a reversão da tendência de queda. Em 2015 ainda atingiria 65,5% do PIB, avançando ainda para 69,8% em 2016 (67,5% em maio de 2016, quando Dilma foi afastada). Os interessados podem visualizar a evolução da dívida, em particular seu forte salto em 2014, no gráfico abaixo.

Fonte: BCB

As gestões fiscais dos governos Temer e Bolsonaro foram um desastre que, desde 2016, só acumulou déficits primários.”

No caso, o ex-ministro esquece que o superávit primário que existia até 2013, se tornou déficit já em 2014, subindo ainda mais em 2015 e 2016, conforme exposto a seguir. Temer também entregou déficits primários, mas menores do que havia herdado.

Fontes: BCB e estimativas do autor

Convém, aliás, não deixar de lado que as contas públicas foram maquiadas sob a regência de Guido Mantega para esconder sua deterioração, episódio hoje conhecido como “pedaladas fiscais”, muito bem descritas pelos trabalhos de João Villaverde e Leandra Peres. A estimativa do resultado primário livre de pedaladas se encontra no gráfico acima, revelando a extensão do estrago fiscal ainda no governo Dilma.

Não à toa, a partir de 2008 o Brasil passou a receber avaliações positivas de grau de investimento, pelas principais empresas de classificação de risco.”

O Brasil perdeu o grau de investimento em 2015, antes de Temer e Bolsonaro.

Pela primeira vez, em 500 anos, a renda dos mais pobres cresceu mais do que a dos mais ricos e a desigualdade diminuiu no país.”

A razão entre a renda dos 10% mais ricos e 40% mais pobres (não achei dos 50% mais pobres) vinha em queda desde 1993. Caiu 2,2 pontos percentuais no governo FHC, 6,6 pontos percentuais no governo Lula e 1,2 ponto percentual no governo Dilma (dados só cobrem o período até 2014). A afirmação é, portanto, falsa.

Fonte: Ipea

O desemprego caiu para abaixo de 6% da população economicamente ativa.”

Também não é verdade: no ano de 2014, em que se registrou o menor nível da série da PNAD, o desemprego atingiu 6,9%. Em termos mensais, o nível mais baixo foi 6,7% no final de 2013 e início de 2014. Isto dito, o desemprego foi a 13% ao final de 2016, quase o dobro do registrado imediatamente antes da recessão, exatamente no segundo governo Dilma. Vale dizer, não apenas o dado é falso, como o ministro omite a forte elevação do desemprego ainda no governo do seu partido.

Fonte: IBGE (dessazonalizado pelo autor)

É uma herança maldita que fará com que o PIB de 2022 retroceda para os valores de 2013.”

Omite que em 2015 o PIB já era inferior ao observado em 2012. Nos 12 meses encerrados em junho de 2016, ainda sob o governo Dilma, o PIB era menor que o observado em 2011! Por mais que o atual governo insista em políticas equivocadas, nesta base de comparação a “herança maldita” da Nova Matriz consegue ser ainda pior.

Fonte: IBGE

No conjunto da obra, é difícil deixar de notar o esforço extraordinário para fingir que a recessão de 2014-2016 não existiu (outra vertente tenta atribuir a culpa até a fenômenos paranormais, mas não tratarei deste assunto hoje).

A crise de 2014-16, uma das piores recessões (se não a pior) da história recente do Brasil ocorreu sob o governo petista e como resultado das políticas adotadas principalmente após 2008.

Não falamos aqui apenas da supra referida piora das contas públicas, que acabou levando à depreciação do real, aumento da inflação e das taxas de juros, mas também de bilhões de reais enterrados em “campeões nacionais” e investimentos duvidosos (dentre eles estádios de futebol), que fizeram a fortuna de alguns poucos, deixando para a sociedade os custos do seu fracasso. Corrupção e baixa produtividade são fenômenos intimamente interligados, cuja consequência mais imediata é o crescimento econômico medíocre.

Se alguém ainda nutre a ilusão que um possível retorno deste grupo ao comando do país irá marcar a retomada da política econômica do primeiro mandato de Lula, sugiro que reflita a respeito. Neste sentido, o artigo do ex-ministro, ainda que de forma provavelmente involuntária, é bastante revelador acerca do que nos espera caso este cenário se materialize.



sábado, 24 de outubro de 2020

Alexandre Schwartsman e a curva da taxa de juros no Brasil: expectativas ainda negativas (InfoMoney)

 

AQUI SE PAGA

ALEXANDRE SCHWARTSMAN

 Riscos crescentes de problemas quanto à capacidade de pagamento da dívida levaram ao aumento das taxas de juros mais longas na comparação com as mais curtas. Ao contrário dos países ricos, o Brasil ainda paga juros reais positivos para se endividar, ou seja, terá que voltar a produzir superávits primários.

PUBLICADO ORIGINALMENTE NA INFOMONEY, EDIÇÃO DE 21 DE OUTUBRO DE 2020

Há algumas semanas, ao escrever sobre as mudanças no regime monetário norte-americano, analisei os fatores que influenciam a chamada “curva de rendimento”, isto é, a linha que mapeia para cada prazo (um mês, três meses, seis meses, 2 anos, etc.) a taxa de juros correspondente. Notei então que as taxas de juros mais longas refletem (em algum grau) as expectativas sobre a sequência de taxas mais curtas.

Se, por exemplo, sabemos que o juro para 1 ano é de 5% e para o ano seguinte 10%, a taxa de juros para uma aplicação por dois anos tem que ser (aproximadamente) 7,5% ao ano, pois ao final de dois anos renderá 15,5%, o mesmo que uma aplicação de 5% no primeiro ano seguida de uma de 10% no segundo ano. Se a taxa de 2 anos for inferior a 7,5% ao ano, ninguém comprará o papel, preferindo fazer a aplicação em dois momentos distintos; se for superior a 7,5% ao ano, ninguém fará a aplicação em dois passos, preferindo a taxa mais alta.

Todavia, se complicarmos um tanto o exemplo, os resultados podem se tornar ainda mais interessantes, em particular para entender o que vem ocorrendo por aqui.

Considere a possibilidade de não receber de volta o dinheiro aplicado a partir do segundo ano. Digamos que a chance de levar um calote seja 25% Assim, com 75% de chance você recebe um determinado retorno; com 25% você perde tudo (estou forçando a mão, mas, acredite, fica bem mais fácil para ilustrar o problema).

Pergunta: qual seria a taxa de juros no segundo período necessária para manter o retorno de 10% (o mesmo do exemplo acima), imaginando que a investidora só se guie pelo valor esperado da aplicação (em economês castiço, seja “neutra com relação a risco”)?

Quem fizer as contas há de concluir que a taxa de juros nesse caso teria que ser 46,67% ao ano. Com 75% de chance os R$ 105 aplicados no segundo ano se transformariam em R$ 154; com 25% de chance, virariam pó, ou seja, o valor esperado seria 0,75×154 + 0,25×0 = 115,50.

Agora a taxa de juros para dois anos não seria mais 7,5% ao ano; seria aproximadamente 24% ao ano (a média geométrica entre 5% e 46,67%). Também nesse caso com 75% de chance o investidor receberia R$ 154 ao final do segundo ano e com 25% de chance voltaria para casa com as mãos abanando.

Obviamente, para deixar a conclusão mais clara carreguei a mão tanto na chance de calote, como na recuperação de zero do valor investido. Em condições normais a chance de calote costuma ser mais baixa e o investidor em geral recupera um valor ainda positivo de sua aplicação. Se aquela for 10% e o investidor conseguir recuperar, digamos, 90 centavos para cada real investido, a taxa de juros no segundo período seria 12,7% e a taxa para aplicação por dois anos 8,8% ao ano.

A moral da história diz menos dos números em si e mais do reflexo dos riscos de não receber o dinheiro de volta sobre as taxas de juros, em particular sobre taxas de diferentes prazos, dado que a chance de calote costuma ser maior para períodos mais longos. Posto de outra forma, a existência de um risco de não receber (integralmente) a aplicação faz com que a curva de rendimentos se torne mais inclinada, isto é, que as taxas para prazos mais longos subam relativamente àquelas para aplicações mais curtas.

É evidente que algo semelhante se passa no país. O gráfico abaixo mostra a curva de rendimentos no último dia de 2019 (a linha preta) em comparação ao observado na sexta passada (a linha vermelha). Apesar da queda das taxas mais curtas (até 3 anos), influenciada pela redução expressiva da Selic, além desse horizonte houve aumento considerável da taxa de juros, culminando em diferença de 1,20 ponto percentual no juro de 10 anos hoje relativamente ao observado no final do ano passado.

Fonte: Autor com dados da ANBIMA

É bem verdade que a escolha de 31 de dezembro de 2019 como base de comparação é arbitrária. Para observar, porém, o mesmo fenômeno por outra ótica, o gráfico abaixo apresenta a diferença entre o juro de 10 anos e o juro de 3 anos ao longo do tempo desde a adoção do atual regime fiscal, qual seja, o teto para o gasto federal instituído ao final de 2016.

Fonte: Autor com dados da ANBIMA

Nota-se que a inclinação da curva de juros, medida desta forma, aumentou significativamente no período mais recente na comparação com 2019. Em parte, diga-se, por força dos impactos da epidemia nos mercados financeiros, mas o movimento mais recente não pode ser atribuído a tal fenômeno.

Também não pode ser atribuído à expectativa de política monetária mais apertada, dado o anúncio do BC no começo de agosto acerca da adoção da “prescrição futura”, isto é, sua promessa quanto a manter a Selic estável até a inflação projetada se aproximar da meta.

Pelo contrário, resulta essencialmente do risco fiscal crescente, expresso, entre outras formas, pelas disputas sobre o orçamento de 2021, em particular as tentativas de contornar o teto de gastos para viabilizar o Renda Cidadã.

Assim, em meados do ano o Tesouro podia se financiar por 10 anos a taxas próximas a 7% ao ano; nas duas últimas semanas a taxa para 10 anos tem ficado teimosamente ao redor de 8,3% ao ano, o que corresponde a uma taxa real de juros na casa de 3,75% ao ano aproximadamente.

Não é por outro motivo que o Tesouro tem reduzido o prazo de suas emissões, quando não usando os recursos da Conta Única, deixando para o BC a tarefa de controlar a liquidez por meio de operações compromissadas.

De qualquer forma, tais desenvolvimentos deixam claras as implicações do risco da perda de controle das contas públicas: juros mais altos e dificuldades na rolagem da dívida.

Tornam também nítidos os limites que nossos keynesianos de quermesse ainda se recusam a enxergar: ao contrário das economias desenvolvidas, o juro real brasileiro ainda é elevado (para prazos mais longos), ou seja, cedo ou tarde teremos que voltar a produzir superávits primários para reverter a tendência de expansão da dívida com relação ao PIB, sob pena de perdermos de vez seu controle e, com ele, qualquer vestígio de estabilidade macroeconômica.

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ALEXANDRE SCHWARTSMAN – DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

@alexschwartsman
aschwartsman@gmail.com

 

domingo, 27 de janeiro de 2019

A seita neodesenvolvimentista e a taxa ideal de câmbio - Alexandre Schwartsman

FÉ DEMAIS
Alexandre Schwartsman
Em países de poupança elevada (portanto baixo consumo), a produção tipicamente supera por larga margem o volume destinado ao mercado doméstico, o que gera excedentes exportáveis e, como consequência, taxas de câmbio mais desvalorizadas do que em países de consumo elevado, bem como crescimento mais vigoroso…

Publicado originalmente na Folha de S.Paulo,   Coluna do autor,  edição de 23 de janeiro de 2019

O conveniente silêncio da turma nos últimos tempos poderia fazer alguns se esquecerem da seita autodenominada “neodesenvolvimentista”, que jurava resolver os problemas do Brasil com o alinhamento de “dois dos preços fundamentais” da economia: a taxa de juros e a taxa de câmbio. Em particular, no final de 2017 garantiam que, com uma taxa de câmbio entre R$ 3,80-4,00 a indústria se recuperaria e, com ela, o país.
Desde então o dólar subiu de R$ 3,30 para acima de R$ 4,00 e flutuou durante todo o segundo semestre do ano ao redor de R$ 3,80, enquanto a taxa básica de juros foi reduzida ao menor valor da história. Ajustado à diferença entre a inflação nacional e a americana, o dólar se valorizou cerca de 15% na segunda metade do ano passado em relação à primeira e 20% na comparação com o mesmo período de 2017.
Apesar disto, a indústria, que vinha em firme trajetória de recuperação do final de 2016 ao começo de 2018, passou a andar de lado, senão para baixo, e deve ter crescido no ano passado menos do que em 2017. Não por acaso, acredito, cessaram as juras sobre a “taxa de câmbio de equilíbrio industrial”, que nos levaria ao Nirvana, talvez na expectativa que a combinação de silêncio e falta de memória pudesse lavar as reputações dos sectários. A má notícia, para eles, é que há alguns de nós prestando atenção.
Em parte o erro grotesco decorre da falta de cuidado com as estimativas da suposta “taxa de câmbio de equilíbrio industrial”, cujas bases precárias tratei neste espaço há alguns meses. Em bom português, trata-se de um número chutado, que, aliás, sobe cada vez que a taxa observada de câmbio se aproxima do suposto ideal.
O erro mais grave, porém, decorre da visão que o governo conseguiria controlar a taxa real de câmbio, isto é, o valor ajustado à inflação sem alterar condições econômicas concretas, em particular a taxa de poupança da sociedade.
Em países de poupança elevada (portanto baixo consumo), a produção tipicamente supera por larga margem o volume destinado ao mercado doméstico, o que gera excedentes exportáveis e, como consequência, taxas de câmbio mais desvalorizadas do que em países de consumo elevado, bem como crescimento mais vigoroso. Em outras palavras, é a poupança mais elevada que leva, ao mesmo tempo, a mais crescimento e câmbio mais fraco.
Quem ignora este fenômeno cai no conto do dólar mais forte e crescimento mais rápido como os adeptos da seita “neodesenvolvimentista”.
Há ampla literatura sobre as causas do crescimento sustentado apontando para fatores como a qualidade das instituições, o papel da educação na formação do capital humano e a abertura comercial como fator de difusão de novas tecnologias. Nada sugere que crescimento é resultado do ato do príncipe sobre as taxas de câmbio.
Como todo problema complexo, há uma solução simples e errada, em que apenas os picaretas acreditam.
* * *
Oded Grajew volta a insistir na idade média ao morrer como critério para determinar a idade de aposentadoria, ao invés da expectativa de vida. Desenhando: num berçário a idade média ao morrer mede-se em dias, mas a expectativa de vida é superior a 75 anos; a idade média de morte na corte dos 20 aos 30 anos deve ficar ao redor de 25 anos, mas a expectativa de vida atinge 77 anos. Os bons creem que suas puras intenções os eximem de rigor na análise. E assim pavimentam os caminhos do inferno…
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ALEXANDRE SCHWARTSMAN – DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS

domingo, 16 de dezembro de 2018

Alexandre Schwartsman e a Lei de Irresponsabilidade Fiscal do Congresso

Mundo velho sem porteira

Por Alexandre Schwartsman

…revela-se o que já sabíamos: boa parte, senão a maioria dos municípios do país, é financeiramente inviável sem as transferências federais, o que deveria nos levar a questionar sua existência autônoma, não o perdão ao comportamento irresponsável.

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Já não tinha qualquer dúvida acerca do completo divórcio entre a classe política e a realidade das contas públicas no país, mas, se tivesse, bastaria a alteração da Lei de Responsabilidade Fiscal (LRF) perpetrada recentemente pela Câmara para ter certeza absoluta a este respeito.

A LRF estabeleceu que estados e municípios não podem gastar mais do 60% de sua receita corrente líquida com pessoal, condição infringida mais vezes do que seria saudável, levando ao uso de critérios nebulosos de contabilidade para disfarçar a real extensão do problema. Já a mudança da LRF permite a municípios a violação deste limite, caso sua receita tenha caído mais do que 10% por força da redução das transferências federais (devido a isenções tributárias concedidas pela União), ou queda nos royalties.

À primeira vista parece uma mudança bastante razoável. Afinal de contas, o governante não poderia ser punido por fatores fora de seu controle como os acima descritos. Um olhar mais aprofundado, porém, revela consequências potencialmente destrutivas da decisão.

A começar porque, como sabe qualquer família, não é prudente fixar suas despesas em níveis elevados quando suas receitas podem variar. As receitas relativas a royalties flutuam, por exemplo, com os preços de commodities, como ilustrado pela crise do Rio de Janeiro. Caso as despesas, com pessoal inclusive, sejam definidas com bases em receitas originadas em um momento favorável do ciclo econômico, torna-se bastante provável seu “estouro” quando vier a reversão cíclica.

Neste sentido, a Câmara deu permissão a este tipo de comportamento, ao sinalizar que administradores não sofrerão sanções por conta de um evento que, num período razoavelmente longo, é praticamente uma certeza.

Afora isto, revela-se o que já sabíamos: boa parte, senão a maioria dos municípios do país, é financeiramente inviável sem as transferências federais, o que deveria nos levar a questionar sua existência autônoma, não o perdão ao comportamento irresponsável.

Abre-se, por fim, um precedente perigoso. Nada impede, mais à frente, que novas alterações ampliem o leque de alternativas para aumento de gastos, em particular relativos a pessoal.

Tudo isto ocorre num contexto em que, sob a LRF, municípios vêm gastando como nunca. As despesas municipais, medidas a preços constantes, atingiram R$ 606 bilhões (8,9% do PIB) nos 12 meses terminados em junho de 2018 contra R$ 490 bilhões (7,6% do PIB) em 2010. No mesmo período, as despesas com pessoal saltaram de R$ 223 bilhões (3,5% do PIB) para R$ 298 bilhões (4,4% do PIB), ou seja, de 46% para 49% da despesa corrente.

A contrapartida foi a queda da participação da provisão de serviços à população (de 35% para 30% da despesa). É bastante claro que o aumento do gasto beneficiou mais aos servidores municipais do que os munícipes, replicando um padrão infelizmente comum no setor público brasileiro.

Este episódio apenas reforça a percepção muito clara sobre a apropriação do orçamento público por grupos corporativos, alegremente sustentados por políticos cuja conexão com o interesse da população é mínima.

Num país em que estados importantes se encontram à beira da falência e mesmo o governo federal enfrenta sérias dificuldades, a última coisa que precisamos é abrir as porteiras para o gasto desenfreado. No entanto, é exatamente isto com que o Congresso nos brindou.

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* ALEXANDRE SCHWARTSMAN – DOUTOR EM ECONOMIA PELA UNIVERSIDADE DA CALIFÓRNIA, BERKELEY, E EX-DIRETOR DE ASSUNTOS INTERNACIONAIS DO BANCO CENTRAL DO BRASIL É PROFESSOR DO INSPER E SÓCIO-DIRETOR DA SCHWARTSMAN & ASSOCIADOS