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quinta-feira, 4 de janeiro de 2024

Marcos Troyjo: *Um Brasil mais leve para a concorrência global* - Assis Moreira (Valor)

 Um Brasil mais leve para a concorrência global

O Brasil precisa ficar mais ágil na corrida com os outros países nesse universo da neoindustrialização e incertezas geopolíticas.

Assis Moreira, de Genebra

Valor Econômico04/01/2024  


Após deixar em março a presidência do Novo Banco do Desenvolvimento (NDB), o Banco do Brics, para dar lugar à Dilma Rousseff, Marcos Troyjo passou a lecionar na Universidade de Oxford, na cátedra antes ocupada por Iván Duque, ex-presidente da Colômbia, e também no Insead (França). Nesse período, ele visitou 18 países em contatos com autoridades, investidores e acadêmicos, e os questionamentos sobre o Brasil foram inevitáveis.

Para Troyjo, a convergência de crises atualizou a noção de policrise, com a pandemia mais grave que o mundo experimentou desde a gripe espanhola, depois a situação geopolítica mais delicada na Europa desde a Segunda Guerra Mundial, com a invasão da Ucrânia pela Rússia, e uma economia mundial que ainda não se recuperou na esteira de frouxidão fiscal e monetária que levou o centro macroeconômico mundial a fortes turbulências inflacionárias.

Essa situação acaba sendo muito exacerbada porque vem acompanhada de aumento do protecionismo no mundo, do que ele chama de recessão da globalização. Sua análise é de que a globalização não parou, mas há menos fluxos de mercadorias e capitais do que há 20 anos, e isso acaba por se converter em força de pressão inflacionária.

Olhando pela ótica do Brasil, Troyjo considera que esse é um cenário perigoso, mas que traz também muitas oportunidades para o país. Ele destaca a questão demográfica. Nota que nos próximos 25 anos a população mundial vai saltar de 8 bilhões para 10 bilhões de habitantes. Observa que no ano em que Jesus Cristo nasceu a população mundial era estimada em 150 milhões de habitantes. E calcula que nos próximos 25 anos teremos o mesmo acúmulo de população ocorrido em 1.929 anos. É como se enormes naves descessem na Terra trazendo uma nova Rússia, depois outro EUA, com 350 milhões de pessoas, e uma nave bem maior que deposita uma nova China com 1,5 bilhão de pessoas. É muita gente.

As características de aumento populacional ficam mais positivas para as grandes economias emergentes, com o maior potencial do que no caso do G7 industrializado (EUA, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Itália, Canadá). A expectativa é de a Índia crescer em média 5% ao ano, a Indonésia, 6%, e a China, por volta de 4%, a partir de renda per capita ainda baixas. E quando vão crescer num intervalo tão curto, a tendência é que essas rendas adicionais sejam direcionadas a alimentos, energia e infraestrutura.

Significa que o mundo terá de responder à pergunta de onde virão os alimentos, energia e insumos, também para fortalecer a economia verde. E o que Troyjo repete no exterior é que o Brasil tem resposta para isso: é um dos quatro maiores produtores mundiais de alimentos, é o país que tem o mais facilmente renovável estoque de acesso a recursos hídricos, por exemplo. Em comparação, se o chinês tomar um copo de água a mais por dia, a zona desértica do mundo chega à periferia de Pequim. Na Índia, de 10 litros de água, 8,5 vão para agricultura, o que mostra uma situação de esgotamento. EUA e Europa também têm recursos limitados. Quem tem esses recursos abundantes é o Brasil.

Portanto, esse crescimento populacional brutal é promissor para o Brasil nesse jogo. Haverá inevitavelmente maior participação das exportações brasileiras no PIB. O trem já saiu da estação, e não apenas do ponto de vista comercial, mas também infraestrutural.

Existe o discurso de que no Brasil as empresas do agro e energia são muito boas da porteira para dentro, mas enfrentam dificuldades da porteira para fora. Ocorre que, quando o mundo tem problemas de segurança enérgica e alimentar, as dificuldades brasileiras são problema global. Para Troyjo, daí uma parte da explicação para o nível persistente de Investimento Estrangeiro Direto (IED) para o país.

A doutrina do que ele chama de geoeconosegurança beneficia o Brasil na prática. Mas a concorrência é fortíssima. O capital humano é essencial nesse jogo. Hoje, o México forma mais engenheiros por ano que os EUA, e isso o torna um polo de atração, exemplifica o ex-presidente do Banco do Brics. Ou seja, o Brasil precisa ajustar as prioridades, para extrair o máximo de benefícios como protagonista comercial em alimentos, energia e como destino de investimentos.

Para Troyjo, o Brasil precisa ficar mais leve na corrida com os outros países nesse universo da neoindustrialização e incertezas geopolíticas. Antes, se falava que o mundo era plano, no qual a maioria dos concorrentes, com exceção da mão de obra, teria oportunidades iguais. Agora o mundo, ainda mais com inteligência artificial, está ficando muito mais rápido. Ele pergunta: nesse cenário, quem vai atrair mais IED, país com carga tributária de 20% ou de 35% do Produto Interno Bruto (PIB)? Quem tem Banco Central independente ou vinculado a objetivos políticos? Quem trata as empresas públicas pela lógica da eficiência ou quem vai transformá-las em departamento de fisiologia política? Quem fica mais leve é quem está sempre trabalhando para melhorar o país no ambiente de negócios ou quem acha que isso não é importante?

Assis Moreira é correspondente em Genebra e escreve quinzenalmente

E-mail: assis.moreira@valor.com.br

https://valor.globo.com/google/amp/brasil/coluna/um-brasil-mais-leve-para-a-concorrencia-global.ghtml

quarta-feira, 1 de novembro de 2023

Brasil foi o segundo país que mais atraiu investimento externo - Assis Moreira Valor Econômico

Brasil foi o segundo país que mais atraiu investimento externo

Fluxo global de IED caiu 30% em relação ao primeiro semestre do ano passado

Valor,  31/10/2023 por Assis Moreira


O Brasil foi o segundo país que mais atraiu Investimento Estrangeiro Direto (IED) no primeiro semestre deste ano, só atrás dos Estados Unidos. O resultado é ainda mais significativo considerando o cenário de enormes incertezas globalmente.

Em 2022, o Brasil tinha sido o quinto país a mais acolher IED, com US$ 86 bilhões, só superado pelos EUA, China, Singapura e Hong Kong.

Agora, entre janeiro e junho deste ano, o fluxo de IED para a economia brasileira alcançou US$ 34 bilhões, comparado a US$ 35 bilhões no semestre anterior, mas -32,6% comparado a janeiro-junho de 2022.

O país sobe na classificação em meio à degringolada do fluxo global de IED, que alcançou US$ 727 bilhões entre janeiro e junho, ou 30% abaixo do volume registrado no mesmo período do ano passado. Os dados são da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Economico (OCDE).

Entre o primeiro e o segundo trimestre, o volume de IED para a economia brasileira declinou, na esteira do que vem acontecendo globalmente.

De toda maneira, o Brasil está entre os países que mais receberam anúncios de projetos novos, ao lado dos Estados Unidos, India, Mauritânia e Reino Unido. Uma parte desses projetos é para energia renovável, como aconteceu no caso da Mauritânia.

Ao mesmo tempo, o Brasil aparece entre os emergentes como um dos países que mais ampliou IED no exterior, com US$ 21 bilhões no primeiro semestre comparado a US$ 3 bilhões no segundo semestre do ano passado.

Os Estados Unidos continuaram a ser o país a mais atrair investimento estrangeiro direto, com US$ 190 bilhões no primeiro semestre. O Brasil vem em segundo, e em terceiro ficam o Canadá e o México, e só então vem a China.

É que o fluxo de IED para a China desacelerou em 2023, com queda de 32% comparado ao segundo semestre de 2022, ilustrando o gradual desengajamento de muitas firmas na segunda maior economia do mundo.

Por outro lado, os EUA, a China e o Japão continuam a ser as maiores fontes de investimentos estrangeiros diretos no mundo.

Globalmente, as atividades de fusão e aquisição continuaram a tendência de queda, em meio ao ambiente económico mais frágil, impactado por preços altos, taxas de juros mais elevadas e as incertezas geopolíticas.

Recentemente, a Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe (Cepal), destacou que o aumento de IED em alguns países, especialmente no Brasil, no ano passado, ocorreu pelo crescimento de todos os componentes do IED, especialmente o reinvestimento de lucros; e pelo aumento do fluxo no setor de serviços. Essa dinâmica está em consonância com a recuperação pós-pandemia e não é claro se se manterá em níveis semelhantes em 2023.

Em 2022, o montante de anúncios de projetos de IED na América Latina e o Caribe cresceu 93%, totalizando cerca de US$ 100 bilhões. Pela primeira vez desde 2010, o setor de hidrocarbonetos (carvão, petróleo e gás) liderou os anúncios, com 24% do total, seguido pelo setor automotivo (13%) e energias renováveis (11%).

Para a Cepal, a transição energética é um dos setores impulsionadores do crescimento econômico, que pode se tornar um motor para a transformação produtiva da região. A porcentagem da capacidade instalada de energia renovável na América Latina e no Caribe é superior à média mundial, e a matriz de geração elétrica é uma das mais limpas do mundo, diz a entidade.

Para a Cepal, o desafio de atrair e reter investimento estrangeiro direto que contribua efetivamente para o desenvolvimento produtivo sustentável e inclusivo da região é mais atual do que nunca.

Avalia que existem novas oportunidades em uma era de reconfiguração das cadeias globais de valor e de realocação geográfica da produção diante de uma globalização em mudança. https://valor.globo.com/opiniao/assis-moreira/coluna/brasil-foi-o-segundo-pais-que-mais-atraiu-investimento-externo.ghtml?li_source=LI&li_medium=news-multicontent-widget


segunda-feira, 10 de abril de 2023

Brasil na presidência do G20: quando menos poderá ser mais - Assis Moreira, Valor

Brasil na presidência do G20: quando menos poderá ser mais

A ostentação da Índia na presidência do grupo das maiores economias vai custar R$ 500 milhões neste ano
Por Assis Moreira
Valor — Genebra, 07/04/2023

A Índia tem atualmente a presidência do G20, o grupo das maiores economias e que pretende ser o fórum para solução de grandes problemas. Sua presidência culminará com a cúpula de chefes de Estado e de governo em Nova Déli em 9 e 10 de setembro. No começo de dezembro, os indianos passarão a presidência para o Brasil, no que marcará um importante retorno do país à cena internacional.

Pelo que se viu até agora na Índia, o mínimo que se pode dizer é que o Brasil precisará evitar o show de ostentação dos indianos.

Quem chega na Índia tem a impressão de que a principal preocupação do país atualmente é a presidência do G20, como notou recentemente a revista The Economist. É difícil escapar dos grandes cartazes de propaganda espalhados pelo país com o logo do G20 e a foto do primeiroministro Narendra Modi, que tem tendências crescentemente autoritárias.

Uma observação corrente entre delegados no G20 é sobre os excessos de todo tipo. Por exemplo, na escolha de 56 cidades para acolher reuniões do grupo. Há cidade que terá uma única reunião técnica, mas precisa fazer gastos para se preparar. Somente neste mês de abril, há encontros do grupo em Siliguri/Darjeeling, Gandhinagar, Guwahati, Kumarakom, Goa, Hyderabad, Varanasi e Bhubaneswar.

A programação para cada reunião de três dias é recheada com eventos que vão de apresentação de elefantes, de música e dança, passeio de barco onde isso é possível, jantares demorados. Sobra pouco tempo para fazer reuniões bilaterais e focar mais nos temas em discussão.

Com tudo isso, vem uma fatura pesada. A India vai gastar R$ 500 milhões, pelo menos, com sua presidência do G20 – e, por tabela, com a propaganda favorável a Modi e a seu partido Bharatiya Janata Party.

Para sua presidência do G20, a Índia escolheu como tema ‘Vasudhaiva Kutumbakam’, uma expressão sânscrita encontrada em textos hindus, que significa "o mundo é uma família’.

Sobretudo, o governo de Modi tenta apresentar seu país como voz do ‘Sul Global’, ou dos países em desenvolvimento, em rivalidade com a China. O acúmulo de papelada colocada na mesa por Nova Deli também é grande

E todo esse barulho resultará em nada, ou pouco. A cooperação internacional está em frangalhos, em meio à intensidade das tensões geopolíticas. As reuniões do G20 continuam sendo marcadas pela ausência mesmo de simples declarações comuns, illustrando a dificuldade de o grupo das maiores economias se engajar em discussões construtivas por causa da invasão da Ucrânia pela Rússia.

Nas reuniões do G20, as discussões sobre a guerra na Ucrânia tomam quase toda a agenda. A maioria destaca que o conflito deve ser tratado no Conselho de Segurança das Nações Unidas, mas é inevitável insistir com a preocupação com os efeitos econômicos da invasão russa

O racha é claro no grupo: Rússia e China de um lado e os países do G7 (EUA, Alemanha, Japão, França, Itália, Canadá, Reino Unido) de outro. No meio, estão emergentes como a própria Índia, Brasil, México, Indonésia, Argentina, tentando evitar fragmentação maior. Mas a dinâmica é mesmo de desconfiança. Dificilmente haverá ações concretas, a partir do grupo, agora ou no ano que vem, quando o Brasil assumirá a presidência.

Para o Brasil, estar na presidência do G20 em dezembro, por um ano, dará a oportunidade para o país moldar a agenda, com suas prioridades e aspirações na cena internacional. Mas é preciso focar em alguns temas principais, sem querer tratar de tudo. Para ser eficaz, o governo brasileiro precisará evitar dispersão com uma agenda enorme que não teria continuidade depois.

Além disso, o Brasil não pode gastar tanto dinheiro como os indianos. Ter marca de perdulário, no estado atual das finanças nacionais, não é a melhor política. Como nota um negociador de país do G20, em referência ao que a Índia vem fazendo: 'Vocês não vão fazer assim, não é?'.

O Brasil precisará definir também com cuidado onde vai organizar o número enorme de reuniões. Os problemas de logística são conhecidos. Já será um quebra-cabeça fazer uma reunião de ministros de energia em Foz do Iguaçu. Juntar ministros de meio-ambiente em Rio Branco (Acre), então, seria um desafio adicional. Quanto à cúpula de chefes de Estado e de governo, se depender dos parceiros, seria realizada no Rio de Janeiro.

Depois do show de exageros da Índia, a presidência brasileira do G20 poderia mostrar que ‘menos pode ser mais’ em certas ocasiões. Mas é preciso combinar com o presidente Lula.

sexta-feira, 3 de fevereiro de 2023

Brasil não recebeu convite para a 'Parceria das Américas' - Assis Moreira (Valor)

 Brasil não recebeu convite para a 'Parceria das Américas'


EUA lançaram a aliança inicialmente com outros 11 países para aprofundar a cooperação econômica na região

Valor — Genebra
02/02/2023 07h15  Atualizado há uma hora

O governo de Joe Biden lançou na semana passada sua ‘Parceria das Américas para a Prosperidade Econômica ’ (APEP, na sigla em inglês) iniciando negociação com outros 11 países - mas o Brasil, a maior economia da América Latina, não está na lista.

Essa aliança para uma 'cooperação econômica aprofundada' já tinha sido anunciada em junho de 2022 na Cúpula das Américas em Los Angeles, onde o então presidente Jair Bolsonaro teve seu primeiro encontro com Biden. A ausência brasileira na iniciativa chamou a atenção, mesmo se as expectativas são muito reduzidas sobre esse tipo de iniciativa.

À coluna, uma fonte em Brasília relatou que, na verdade, o Brasil não foi convidado pelos EUA para a Parceria na época da Cúpula em Los Angeles, e nem depois o assunto foi levado ao Brasil pelos americanos. Há uma nova realidade em Brasília, mas tampouco chegou convite agora.

Em Washington, Ryan C. Berg, diretor do programa Américas do Centro de Estudos Estratégicos e Internacionais (CSIS), levanta duas razões para o país não estar na primeira rodada da APEP. Primeiro e mais importante, os países convidados tem algum tipo de negociação comercial engatilhada com os EUA - na verdade, a maioria deles já tem acordos completos com os americanos. O Brasil não entra nessas categorias.

Segundo, Ryan diz existir uma percepção histórica, que vem da experiência americana nas negociações da Alca (Área de Livre Comércio das Américas), de que o PT, agora de volta ao poder, é anti comércio e por uma economia mais fechada.

O fato é que os EUA atraíram o Chile e a Colômbia, com governos de esquerda, além do México, Canadá, Costa Rica, Peru, Uruguai, Panamá, Equador, República Dominicana e Barbados. Após reunião virtual na semana passada com o secretário de Estado, Antony Blinken, e a representante comercial Katherine Tai, os participantes divulgaram declaração comum destacando que a Aliança será aberta e estendida a outros parceiros do continente ‘que compartilham nossa visão, nossos objetivos e nosso engajamento por um programa ambicioso de crescimento econômico sustentável e de resiliência no continente’’.

Se Joe Biden levantar a questão da parceria ao receber o presidente Luiz Inácio Lula da Silva no dia 10 na Casa Branca, o Brasil vai examinar o tema. AArgentina também está fora, por enquanto.

Embora vários governos latino-americanos continuem a ver a APEP como um artificio diplomático da administração Biden para atenuar as críticas de que os EUA não estão totalmente engajados em seu próprio hemisfério, ainda é melhor estar em torno da mesa do que deixado fora no frio, escreveu o professor Richard Feinberg, professor da Universidade de San Diego e ex-negociador na Alca.

Em Los Angeles, na Cúpula das Américas, quando a aliança foi mencionada, alguns países enfatizaram a importância de mais comércio. Seis meses depois, Washington não demonstra realmente apetite para negociar abertura de seu mercado – e menos ainda antes da eleição de 2024.

A Parceria vem com uma lista de boas intenções, vazias de conteúdo. Como nota Feinberg, o foco imaginado pelos EUA é em quatro áreas na APEP: competitividade regional, incluindo procedimentos aduaneiros e questões regulatórias; resiliência das cadeias de valor; padrões trabalhistas, inclusão financeira; e investimentos sustentáveis, o que passa pelo reforço do Banco Interamericano de Desenvolvimento (BID).


quarta-feira, 1 de fevereiro de 2023

Passo cadenciado' do governo Lula na relação com a OCDE - Assis Moreira (Valor)

Passo cadenciado' do governo Lula na relação com a OCDE


Sinalização é de menos ‘agenda Faria Lima’’ e mais ‘agenda face humana’’ de temas sociais
Assis Moreira
Valor — Genebra, 31/01/2023 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva decidirá em algum momento como tratará efetivamente as negociações para o Brasil entrar como sócio da Organização para Cooperação e Desenvolvimento Economico (OCDE). Em entrevista ao lado do chanceler alemão Olaf Scholz, Lula sinalizou que o Brasil se interessa em participar da organização - ou seja, não vai fazer como a Argentina que congelou as discussões sobre a adesão.

De toda maneira, diante do pouco entusiasmo até agora demonstrado por Lula, alguns interlocutores falam de adoção de ‘passo cadenciado’’ e reorientação forte na relação com a OCDE, com menos ênfase na ‘agenda Faria Lima’’, restrita a questões econômicas, e bem mais na ‘agenda face humana’’ ou temas sociais.

Na verdade, nos próximos 18 meses não há grandes decisões políticas sensíveis que o governo precisará tomar nas negociações. O que está previsto é muito trabalho em comitês técnicos, com preparação de relatórios, questionamentos e respostas sobre diferentes aspectos da situação brasileira.

É preciso, porém, calibrar bem mesmo esse dito ‘passo cadenciado’’, porque é melhor estar dentro, e quanto mais cedo melhor, do que fora de uma organização com crescente influência na definição de padrões internacionais e com consequências econômicas concretas.

Há muitas questões a tratar com a OCDE, e a organização também sabe que a presença de um emergente de peso como o Brasil dá uma capacidade de legitimidade que ela ainda não tem. Alguns países membros parecem querer politizar mais a OCDE, como a Austrália, que se diz ‘preocupada’’ com relação à Rússia. Mas não são os australianos que vão definir o futuro da OCDE. Além disso, a avaliação de importantes observadores é de que nada obriga um país sócio a ter postura anti-China, por exemplo. O Brasil não vai ser menos desenvolvido por aderir à organização.

A OCDE de hoje não é controlada por uma agenda puramente neoliberal que alguns setores do governo parecem identificar. Dos 38 países membros, 20 tem governos de centro-direita ou de direita, mas a verdade é que a maioria da população vive sob governos de centro-esquerda.

Uma agenda progressista dentro da entidade avança, com a enfase a temas como educação, busca de uma globalização que possa gerar bons empregos, igualdade de gênero, proteção dos povos indígenas, proteção da floresta.

Uma das batalhas do precedente secretário-geral da OCDE, Angel Gurria, com a então administração de Donald Trump foi que Washington queria priorizar economia, enquanto Gurria insistia na importância de agenda social. Com a saída de Trump, essa tensão deixou de existir.

O que é discutido na OCDE interessa a diferentes setores no Brasil, não apenas ao setor produtivo. A Nova Zelândia e o Canadá estão fortemente interessados em discutir formas de melhorar a situação econômica e social dos povos indígenas, algo que é prioridade também do governo Lula.

A OCDE é cada vez mais um centro da gestão da economia internacional e um definidor de agenda. Com a paralisia da Organização Mundial do Comércio (OMC), a OCDE toma a dianteira sobre definição da precificação do carbono, algo de peso na transição para a economia verde.

A possibilidade de influência brasileira na agenda internacional se ampliaria como membro ao mesmo tempo da OCDE, do Brics (grupo de grandes emergentes) e do G20, uma situação única entre os sócios. Também reforçaria a voz latino-americana, juntando-se a México, Colômbia, Chile, Costa Rica na entidade.

É preciso ver que, na verdade, a intensificação da cooperação entre o Brasil e a OCDE começou no governo Lula, e não antes. Foi em 2007, quando o país se tornou um dos parceiros do ‘engajamento ampliado’, facilitando sua participação nas atividades da organização.

Em 2015, com Dilma Rousseff, o Brasil aprofundou esse relacionamento, por um acordo assinado pelo então ministro de Relações Exteriores, Mauro Vieira. Alguns membros do governo queriam dar mais um passo, quando veio o impeachment de Dilma.

Foi no governo de Michel Temer que o Brasil, em 2017, encaminhou à OCDE a comunicação solicitando o início do processo de acessão à organização.

Quando veio o governo de Jair Bolsonaro, a demanda foi tirada do curso normal pelo Ministério da Economia, que viu uma oportunidade para promover a agenda de reformas estruturais.

Cinco anos depois do pedido brasileiro, em janeiro do ano passado, o conselho de ministros da OCDE aprovou convite ao Brasil para “abertura das discussões de adesão”. Às vésperas do primeiro turno da eleição presidencial, o governo Bolsonaro enviou à OCDE um memorando com cerca de mil páginas para começar efetivamente as negociações de acessão à entidade.

Pelos parâmetros históricos, um processo de acessão na OCDE dura em média cinco anos.

Como a negociação envolvendo o Brasil começou no ano passado, Lula, se quiser, poderá conclui-la no prazo normal até o final de seu mandato de quatro anos e elevar a presença brasileira na governança global.

terça-feira, 3 de janeiro de 2023

Brasil assume presidência do G20 em dezembro e precisa se preparar logo - Assis Moreira (Valor)

 Brasil assume presidência do G20 em dezembro e precisa se preparar logo


A presidência do G20 será uma plataforma gigantesca para o novo governo realmente trazer o Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar

Assis Moreira — Genebra
Valor, 02/01/2023

O Brasil assumirá no dia 1º de dezembro deste ano a presidência rotativa do G20, o principal grupo da governança econômica global reunindo as maiores economias desenvolvidas e emergentes. Esta será a grande oportunidade para o governo de Luiz Inácio Lula da Silva realmente retomar o protagonismo nos mais diversos temas da agenda global.

Como a equipe de transição destacou, a combinação entre o desmonte de políticas públicas, em nível interno, e o predomínio de visão isolacionista do mundo, no nível externo, afetou a imagem do país e prejudicou a capacidade brasileira de influir. A presidência do G20 será assim uma plataforma gigantesca para o novo governo realmente trazer o Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar.

Uma urgência nos 100 primeiros dias do ministro Mauro Vieira no Itamaraty deve ser prioridade na organização do G20 no país. Isso passa por juntar rapidamente os melhores quadros, que conhecem bem os trabalhos do grupo, para projetar a presidência brasileira, que vai até o fim de novembro de 2024.

O que vai ser possível fazer dependerá bastante de como estiver o impasse na cooperação entre as maiores economias do mundo. Em 2022, na presidência da Indonésia, a ausência de comunicados nas reuniões do G20 representou um dos pontos mais baixos da cooperação global, em meio a intensa tensão geopolítica e riscos de recessão global. Até o fim de novembro, a Índia estará na presidência do grupo. O Brasil com Lula assumirá a presidência em dezembro sempre num momento crítico nos assuntos globais.

Um ex-ministro brasileiro chegou a dizer que o G7, grupo das maiores economias desenvolvidas (EUA, Alemanha, Japão, França, Reino Unido, Canadá e Itália) tinha acabado, depois que o G20 foi formado em 1999. Hoje, na verdade, o G7 está muito coeso, até pela saída da Rússia (era então G8), e tem gerado iniciativas que depois vão desembocar justamente no G20 – onde se confrontam com emergentes, por exemplo.

O Brasil na presidência do G20 organizará dezenas de reuniões ministeriais envolvendo os mais diversos temas, desde macro economia, finanças, agricultura, energia, meio ambiente, transformação digital, comércio, investimentos, indústria, saúde etc. A presidência brasileira culminará com a cúpula dos chefes de Estado e de governo em 2024.

Cada presidência do G20 tem poder de criar agendas. Para o governo Lula, é preciso definir logo quais os temas relevantes como eixo central, e se preparar com estudos para ser capaz de liderar as discussões e propor soluções para ação coletiva. A diplomacia brasileira é reconhecida pela competência. Mas é preciso definir o que vai querer, rapidamente, para saber a direção que tomará.

Se o governo Lula, por meio do Itamaraty, não se preparar rapidamente, instituições internacionais vão progressivamente querer impor sua própria visão da agenda internacional na preparação da próxima presidência do G20.

Tipicamente, países que organizam o G20, com custos de milhões de dólares ao longo do ano, tem duas equipes: uma dita 'substantiva', para tratar de temas e calendário, e outra para logístico-administrativa.

Em termos de prioridade, parece evidente que o governo Lula vai dar uma ênfase ao combate à crise alimentar global. A inclusão social deve cobrir tanto combate a fome, como de acesso à saúde, educação, transferência de renda, capacidade e treinamento para as pessoas buscarem empregos. Lula certamente convidará países africanos para participar dos trabalhos do G20 sob a presidência brasileira.

Outra ênfase é nas questões ambientais e de mudança climática, até pelo fato de o país ter se tornando um pária por causa do desmatamento da Amazônia nos quatro anos do governo Bolsonaro. A ideia do governo Lula de apostar na Amazônia em nível internacional é forte e bem apreciada. Não será surpresa se a reunião de ministros de meio ambiente for organizada em Manaus. A agenda de sustentabilidade deve cobrir proteção ambiental, mitigação da mudança do clima, combate a desmatamento, mercado de carbonos, financiamento verde.

Tema forte será também infraestrutura. O G20 pode ter papel mais forte tanto no lado financiamento para melhorar o direcionamento de recursos públicos internacionais, como também sobre melhores modelos de financiamento e execução de projetos, impacto para o desenvolvimento sustentável e outros, envolvendo água, saneamento, energia renovável, conectividade, logística, transformação digital.

O fortalecimento do multilateralismo, em meio a incertezas e sucessivas crises, o reforço de financiamento de bancos de desenvolvimento e vários outros temas podem ser incluídos na agenda.

Quanto à parte logística, a negociação precisará começar rapidamente com cidades para sediar diferentes reuniões ministeriais ou a nível de vice-ministros. Uma questão é como acomodar todo mundo – delegações oficiais, ONGs, imprensa. Em todo o caso, será uma oportunidade de mostrar o Brasil para o mundo. O governo vai precisar levar em conta também os eventos paralelos, com entidades da sociedade civil, por exemplo.

Quanto ao local da cúpula dos chefes de Estado e de governo, é uma decisão política a ser tomada pelo governo Lula. São Paulo e Rio de Janeiro são privilegiados, pela rede hoteleira, para receber delegações de Joe Biden, Xi Jinping, Vladimir Putin e outros. Se dependesse do voto de membros do G20, a cúpula seria no Rio.


Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’ - Assis Moreira (Valor)

Itamaraty, desbolsonarização e criação de um ‘Conselhão’

Assis Moreira

É correspondente do Valor em Genebra desde 2005. Cobriu 20 vezes o Fórum Mundial de Economia, em Davos, e dezenas de conferências ministeriais em vários países.

Valor Econômico, 03.01.23, 18:23

 

Brasil de volta ao mundo – mas não pode improvisar

Novo chanceler prometeu um ‘enorme trabalho de reconstrução’ da política, desbolsonarização e participação social na política externa.

 

O presidente Luiz Inácio Lula da Silva volta ao poder num momento internacional significativamente mais grave do que em 2003, quando assumiu pela primeira vez a presidência. Era um momento de relativo otimismo e moderação, fim da guerra do Iraque, hegemonia americana, China crescendo muito, boom de commodities, Brasil crescendo pela primeira vez em mais ou menos em linha com a média mundial, e a América Latina subindo junto. 

Hoje é o contrário, com efeitos persistentes da covid-19, acirramento da competição estratégica entre China e EUA, guerra na Europa, ameaça de recessão global, e securitização de todos os temas. Se em 2003 se estava negociando Rodada Doha de liberalização comercial, hoje o foco é em segurança energética, segurança alimentar, guerra e controle de exportação de chips, uso do argumento de segurança nacional para fechar as fronteiras, lógica de blocos em vez de multilateralismo. 

Em 2003, o mundo passava por um momento de estabilidade das relações internacionais. Estava tudo mais ou menos funcionando. Agora, há uma tremenda confusão e mais imprevisibilidade. É um cenário tenso, que trouxe a geopolítica para o dia a dia das considerações de cada governo e empresas. 

O Brasil é um país com boa complementaridade com a China, mas habita em outra vizinhança. A pressão vai persistir para nações como o Brasil se reposicionem. O que todo mundo tem feito é procurado evitar decisão, para um ou outro lado, americano ou chinês. Existem limites para a ação diplomática do novo governo Lula, mesmo em movimentos pequenos. 

Além dessa primeira grande condicionante, que é a situação internacional, tem a situação interna, altamente polarizada, com uma política externa que foi muito contestada muito contestada por causa do isolamento especialmente na área ambiental. Isso vai levar ao que parece ser a mais evidente correção de rumos. O risco, para certos analistas, é de um excesso de correção, fazer tudo o que parceiros exigem e passar de mau aluno para aluno modelo num cenário complicado. 

Basta ver que uma legislação da União Europeia para proibir commodities originárias de desmatamento, com alto risco de seletividade que aumentará o custo da produção agrícola. O mesmo ocorrerá na área industrial com a taxa de carbono na fronteira que a UE vai impor sobre siderurgia e outros produtos. Bruxelas usa unilateralmente sua capacidade regulatória como um fator de distorção do comércio. Uma questão é como o novo governo em Brasília vai conciliar os interesses do agronegócio e dos ambientalistas, e responder na prática aos europeus. 

O novo governo prioriza também aumentar a integração com a América do Sul e a retomada da cooperação com a África. Mas a capacidade brasileira de fazer coisas concretas é menor, hoje. O Brasil diminuiu de perfil mundial nos quatro anos de Bolsonaro. Agora, o governo Lula tem uma série de aspirações políticas, mas se defronta com restrições do mundo real. 

É preciso ver como o Itamaraty se encontra hoje. É uma instituição inchada no topo ao longo dos anos. Aumentou a idade da aposentadoria para 75 anos, colocou mais gente nos seus quadros e a soma das ambições individuais é muito maior do que o Itamaraty. Com isso, surgem brigas entre diferentes gerações de diplomatas, diferentes grupos de diplomatas, entre homens e mulheres diplomatas, e entre identidade de diplomatas (étnica, sexual etc). 

Uma frase repetida em Brasília é a de que a melhor tradição do Itamaraty é saber renovar-se. Mauro Vieira é considerado como tendo a experiência e sensibilidade para modernizar a instituição nesses tempos conturbados. Mas um artigo de um jovem diplomata em licença remunerada, e atualmente professor da Queen University of London, Felipe Antunes de Oliveira, mostra que a tarefa não será fácil. 

Para ele, mesmo se a desastrosa política internacional do governo Bolsonaro está prestes a acabar, o bolsonarismo continua vivo dentro do Itamaraty. ‘Há um bolsonarismo arraigado no Itamaraty. Enquanto não houver uma profunda reforma da política externa brasileira e da instituição responsável por sua implementação, qualquer combinação entre más ideias e péssima implementação continua possível’, escreveu Antunes. 

A base material do bolsonarismo latente no Itamaraty, segundo Antunes, se assemelha a uma grande linha de produção com quatro engrenagens articuladas entre si: elitismo sistêmico, formação continuada de baixíssimo nível, infantilização funcional permanente e falta de transparência e previsibilidade nas práticas de promoção e remoção, gerando uma série de incentivos negativos ao longo da carreira de todos os diplomatas – e tudo isso tem efeito sobre políticas públicas. 

A possibilidade de Ernesto Araújo ter chegado ao posto de chanceler e durar mais de dois anos, implementando a política externa que implementou, mostra que a sociedade não pode deixar o Itamaraty dirigindo a política externa em piloto automático, diz essencialmente Antunes. 

O reconhecimento da política externa como política pública, e inseparável da política interna, deveria levar ao estabelecimento de um mecanismo permanente de diálogo com a sociedade civil. A necessidade de institucionalização da abertura do Itamaraty à sociedade, com as devidas atenções à especificidade da diplomacia, já foi tema de tese no Itamaraty, como o da diplomata Vanessa Dolce de Faria. 

A ideia de um grande ‘Conselho’ para debater linhas gerais da política externa, com participação de diferentes setores da sociedade, chegou a ser explorada nas gestões dos ministros Antonio Patriota e Luiz Alberto Figueiredo. Proposta de criação de um Conselho Nacional de Política Externa também foi encaminhada a Mauro Vieira quando chanceler de Dilma Rousseff. Ele tem nova oportunidade de tratar do tema, agora, num novo governo que fala muito de transparência e participação social. 

 

 

quinta-feira, 24 de novembro de 2022

OMC: Trade Policy Review do Brasil - Assis Moreira (Valor)

 Países pedem ao Brasil na OMC combate ao desmatamento e reforma tributária


Olhando para o futuro, a União Europeia disse encorajar o Brasil em objetivos de coesão social, estabilidade fiscal e uma maior abertura da economia

Por Assis Moreira, Valor — Genebra
24/11/2022 10h09  Atualizado há 3 horas

Parceiros sinalizaram na Organização Mundial do Comércio (OMC) pelo menos dois temas que vão pesar na atração de mais investimentos e no reforço das relações econômicas também durante o próximo governo em Brasília: combate ao desmatamento e reforma tributária.

Durante exame da política comercial brasileira, iniciada na quarta-feira, 48 delegações se manifestaram, e outras vão fazer o mesmo nesta sexta-feira, em meio a expectativas sobre o que fará o governo de Luiz Inácio Lula da Silva a partir de janeiro.

A União Europeia (EU) lembrou que o país está em transição para um novo governo, e destacou que o governo atual em Brasília “tomou medidas tomadas para facilitar o comércio e os investimentos, melhorar o clima empresarial, colocar em prática novas regras de compras públicas e para abrir ainda mais a economia brasileira para o mundo”.

Olhando para o futuro, a UE disse encorajar o Brasil em objetivos de coesão social, estabilidade fiscal e uma maior abertura da economia. “A UE também encorajará o Brasil a enfrentar uma série de desafios ambientais, notadamente para reverter a tendência atual de aumento do desmatamento, e para assegurar que o comércio não sirva como um motor para tal desmatamento”, afirmou o representante europeu.

A UE disse ter acolhido com satisfação o discurso feito em Sharm el-Sheikh pelo presidente eleito Lula. “O comércio e os investimentos têm um papel importante a desempenhar.

Incentivamos o Brasil a continuar a criar um clima de investimento favorável às energias renováveis e a tomar medidas para dissociar a produção agrícola e o comércio do desmatamento. Estamos prontos para cooperar com você enquanto tentarem enfrentar este desafio”, afirmou.

Os europeus disseram esperar mais informações sobre o atual plano de reforma tributária do Brasil, incluindo seu cronograma. “Em particular, estaríamos interessados em saber como o governo irá lidar com as distorções fiscais existentes entre produtos importados e nacionais que acreditamos não terem justificativa”, disse seu representante.

A Suíça, que participa da Efta, um grupo de pequenos países fora da UE e que tem praticamente fechado um acordo com o Mercosul, destacou que “a abertura comercial deve ir de mãos dadas com considerações para o desenvolvimento sustentável” e conclamou o Brasil “a considerar também a preservação do meio ambiente, a proteção dos povos indígenas e a redução das desigualdades sociais ao definir suas políticas econômicas e comerciais para o futuro”.

O Reino Unido, que também vai procurar acordo com o Mercosul em algum momento, observou que existem oportunidades para o Brasil e o Reino Unido construírem em terreno comum na área ambiental. Exemplificou com a Tarifa Global do Reino Unido, que removeu unilateralmente as barreiras ao comércio verde.

Os Estados Unidos, de seu lado, mencionaram o relatório da OMC sobre o Brasil, notando que nos últimos cinco anos o país “vem implementando ambiciosas reformas estruturais de longo prazo, projetadas para tornar sua economia mais competitiva e resistente” e que, “com o início da pandemia, o crescimento projetado do Brasil parou, e o governo redirecionou recursos para atender às necessidades urgentes dos brasileiros”.

Agora, na medida em que os dois países emergem da pandemia, os EUA acreditam em oportunidades de expandir os laços comerciais com o Brasil “de uma maneira que reflita valores compartilhados”.

O Japão elogiou o que chamou de esforços do Brasil para melhorar seu ambiente de
investimento e negócios, mas cobrou novas iniciativas para resolver o chamado custo-Brasil,
como o complexo sistema tributário e os gargalos de infraestrutura, como apontado no relatório
da OMC.

“Esperamos também que o governo continue a considerar e ouvir as necessidades do setor privado nestes esforços”, acrescentou o Japão. Destacou que o baixo crescimento continua a ser um desafio perene no Brasil. “Acreditamos que novos esforços para melhorar o sistema tributário e os gastos fiscais, fortalecer a governança e aumentar a produtividade do trabalho são importantes para superar o baixo crescimento da economia brasileira no futuro, uma vez que o espaço para as políticas fiscal e monetária está se estreitando no contexto de um endividamento elevado e preços crescentes”, disse.

Também para o Canadá “o Brasil ainda apresenta desafios significativos para as empresas que desejam fazer negócios no país”. Disse que a necessidade de implementação efetiva e oportuna de uma reforma tributária significativa no Brasil e de uma maior redução da carga regulatória sobre as empresas continuam sendo as principais preocupações do Canadá, assim como a redução das lacunas de infraestrutura.

Para a Coreia do Sul, que desde 2018 negocia um acordo comercial com o Mercosul, é do interesse das empresas estrangeiras receber mais informações e clareza sobre o sistema de tributação - incluindo tributação interna, ajuste de fronteiras de exportação e incentivos fiscais.

Igualmente, um ponto de preocupação para o México “é o complexo regime tributário interno do Brasil, que o próprio relatório da OMC reconhece que afeta particularmente o tratamento de bens e serviços importados”. Para o México, o fato de as transações domésticas e transfronteiriças estarem sujeitas a vários impostos federais e subfederais não só cria custos mais altos para os exportadores para o Brasil e a possibilidade de acumulação cruzada desses impostos, mas também gera ineficiências no sistema.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/24/pases-pedem-ao-brasil-na-omc-combate-ao-desmatamento-e-reforma-tributria.ghtml


Brasil recebe mais de 800 questões sobre política comercial na OMC

Delegação brasileira afirmou que o atual governo fez liberalização unilateral, enquanto outros países se fechavam, e que a agricultura brasileira é sustentável do ponto de vista ambiental

Por Assis Moreira, Valor — Genebra
24/11/2022 13h28  Atualizado há 11 minutos

O Brasil recebeu mais de 800 questões para responder no exame de sua política comercial, na Organização Mundial do Comércio (OMC). E uma de suas mensagens é que o governo atual fez liberalização unilateral, enquanto outros países se fechavam, e que a agricultura brasileira é sustentável do ponto de vista ambiental.

A delegação brasileira observou que o país tem uma agenda comercial baseada em três pilares: intensificação da rede de acordos comerciais e das negociações comerciais, inclusive na OMC; modernização da estrutura tarifária do Mercosul; e facilitação do comércio.

“Embora ainda haja muito trabalho a ser feito, o Brasil foi capaz de produzir resultados significativos em cada um desses pilares”, defendeu.

Exemplificou que todos os parceiros comerciais do Brasil se beneficiariam pelo menos da tarifa média de 9,4%, a partir de julho deste ano, o que representaria um declínio de 18% (ou 2,2 pontos percentuais) relativamente a 2017.

“O Brasil conseguiu liberalizar ainda mais o comércio durante tempos desafiadores para a economia mundial, quando muitas outras partes do mundo seguiram numa direção diferente”, afirmou.

Em resposta à pandemia da covid-19, o Brasil diz que reduziu a zero as taxas de importação sobre uma lista de 548 equipamentos médicos e de proteção. E que eliminou mais de 700 mil exigências de licenças de importação automáticas e não-automáticas.

Segundo a delegação brasileira, o governo reduziu também de 13 para 5 dias o tempo médio de exportação, o que teria gerado uma economia anual estimada em US$ 14 bilhões para o setor privado, graças ao programa de janela única.

Quanto à sustentabilidade ambiental, tema do qual o país é cobrado, na agricultura o Brasil diz que tem buscado a adoção de tecnologias de economia de terra, medidas de conservação e políticas para fomentar a produtividade e a sustentabilidade do setor.

“A sustentabilidade agrícola como conceito significa a possibilidade dos sistemas agrícolas manterem a produção a longo prazo, sem o esgotamento sensível dos recursos que lhes dão origem, tais como a biodiversidade, a fertilidade do solo e os recursos hídricos”, argumentou a delegação brasileira.

Na visão do Brasil, “o mundo não terá as ferramentas para enfrentar os desafios de mitigação e adaptação às mudanças climáticas, a menos que promovamos mais crescimento e desenvolvimento mais sustentável”.

Para o governo, os membros da OMC “não podem enfrentar a questão ambiental de forma eficaz se perdermos de vista o quadro geral”.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/11/24/brasil-recebe-mais-de-800-questes-sobre-poltica-comercial-na-omc.ghtml

quarta-feira, 12 de janeiro de 2022

Um precedente relevante no Direito Internacional Comercial: a aplicação unilateral de retaliações - Assis Moreira (Valor)

 Brasil adotará retaliação unilateral tendo Índia e Indonésia como primeiros alvos


Por Assis Moreira, Valor — Genebra
Valor Econômico, 12/01/2022 13h37  Atualizado há 45 minutos

O governo brasileiro vai se dotar de arsenal para aplicar retaliação unilateral contra países que foram condenados por medidas ilegais sobre exportações brasileiras, mas usam artimanhas para manter as restrições, conforme o Valor apurou.

Uma medida provisória (MP), já aprovada em reuniões ministeriais, e atualmente na Casa Civil, autoriza o Poder Executivo a retaliar proporcionalmente e de forma unilateral, em casos de ganhos de contenciosos na OMC, quando o país perdedor fizer a chamada “apelação no vazio”.

Foi o que aconteceu nesta semana com a Índia, na disputa do açúcar, e com a Indonésia, no fim de 2020, num contencioso envolvendo barreiras à entrada de carne de frango. Os dois países recorreram ao Órgão de Apelação sabendo que o mecanismo está inoperante e não pode decidir; daí o termo “apelação no vazio”. Com isso, na prática, travam a vitória brasileira e mantêm as medidas julgadas ilegais pelo painel (comitê de investigação) que custam milhões de dólares de prejuízos a produtores brasileiros.

Índia e Indonésia são assim potencialmente os primeiros ameaçados quando a MP entrar em vigor. Uma retaliação ocorre na forma de sobretaxa sobre bens e serviços provenientes dos países alvejados ou também suspensão de direitos de propriedade intelectual.

O secretário de Comércio Exterior e de Assuntos Econômicos do Itamaraty, Sarquis J. B. Sarquis, enfatizou que “a atual paralisia do Órgão de Apelação da OMC está na origem da iniciativa concebida pelo Itamaraty, que visa tanto proteger os interesses comerciais legítimos do País no marco do sistema multilateral do comércio, como promover o próprio funcionamento pleno do sistema baseado em regras e nos princípios fundamentais da OMC”.

Uma vez que o Órgão de Apelação da OMC volte a funcionar a contento, a iniciativa terá cumprido seu propósito”, completou.

Na mesma linha, o secretário de Comércio Exterior do Ministério da Economia, Lucas Ferraz, afirmou: “Entendemos que é um mecanismo muito importante para enfrentarmos a situação atual de apelações no vazio. O governo brasileiro está empenhado no processo de reformas da OMC, assim como no restabelecimento tempestivo do seu Órgão de Apelação. Não podemos compactuar com o uso oportunístico da situação atual, em claro prejuízo ao nosso setor produtivo.”

As regras atuais da OMC permitem que um país aplique retaliação comercial se o condenado não implementar as recomendações do Órgão de Apelação, espécie de corte suprema do comércio internacional.

Ocorre que o Órgão de Apelação está paralisado, sem nenhum dos sete juízes permanentes, porque Washington bloqueia a nomeação de novos árbitros. Enquanto perdurar esse fato jurídico, que ninguém tinha previsto, os membros da OMC têm a possibilidade de contornar as condenações estabelecidas por painel e evitar alterar as medidas consideradas ilegais.

O Brasil seguirá agora o exemplo da União Europeia, com o mecanismo de retaliação unilateral. Enquanto o Órgão de Apelação não funcionar, e o país condenado não participar de um mecanismo paralelo de arbitragem, Brasília vai impor o que negociadores chamam de princípio de precaução para proteger interesses dos produtores nacionais.

Um grupo de 25 membros da OMC, incluindo a União Europeia (27 países), tentou atenuar o problema do bloqueio do Órgão de Apelação criando um sistema de arbitragem paralelo plurilateral. Os contenciosos entre seus participantes têm assim decisão final. Por exemplo, a mais recente disputa aberta pelo Brasil, que é contra a UE envolvendo barreiras a carne de frango no mercado europeu, está assegurado que terá decisão implementada, porque ambos participam desse mecanismo plurilateral

Já a Índia e a Indonésia não participam desse mecanismo plurilateral. Em 2019, quando o Brasil denunciou a Índia por políticas ilegais de apoio ao setor açucareiro, que afetam os preços internacionais, o Itamaraty mencionou que estimativas de especialistas apontavam prejuízos de até US$ 1,3 bilhão para os exportadores brasileiros por ano.

No caso da Indonésia, os cálculos são de que o Brasil poderia vender até 3 mil toneladas de carne de frango por ano na fase inicial, se restrições condenadas fossem levantadas. Mas o governo indonésio resiste há anos.

O Brasil ganhou, sem realmente levar, uma disputa contra o país asiático em 2017. Um painel (comitê de investigação da OMC) deu razão ao Brasil naquele ano. A Indonésia teve prazo até julho de 2018 para implementar as recomendações dos juízes. Fez algumas modificações que o Brasil considerou insuficiente.

Um outro painel foi então aberto para examinar a implementação das recomendações dos juízes, e o Brasil ganhou de novo, ao comprovar que os indonésios mantiveram restrições às exportações brasileiras. A Indonésia então apelou ao vazio em dezembro de 2020, sabendo que o Órgão de Apelação da OMC não funciona.

Índia e Indonésia estão hoje entre os países que mais subsidiam a agricultura no mundo. E a paralisia do órgão de apelação da OMC acaba na prática por beneficiá-los. “O Brasil continua trabalhando ativamente para o restabelecimento do Órgão de Apelação e para o pleno desenvolvimento das regras e da reforma da OMC, inclusive em agricultura e disciplinas para subsídios, conforme termos e mandatos estabelecidos desde a Rodada Uruguai”, disse Sarquis.

A paralisia do Órgão de Apelação provocada pelos norte-americanos “é muito grave, dá a impressão de que os EUA não querem mais a OMC, no sentido de um sistema de regras e de disciplinas multilaterais, consentidas, aplicadas, com um processo de contencioso que obriga a parte perdedora a obedecer” a decisão, nota Pascal Lamy, ex-diretor-geral da OMC

Ele lembra que essa obrigação de respeitar as decisões, sob pena de retaliação, é que distinguia a OMC de outras organizações cujas regras são mais ou menos aplicadas e onde os Estados, quando eles perdem um caso diante da Corte de Justiça de Haia, por exemplo, guardam a soberania de aplicar ou não o resultado.

Lamy avalia que os EUA são obcecados pela China, querem poder bater unilateralmente sem estar ligados ao respeito de regras da OMC e a decisões de seu Órgão de Apelação. Essa ausência americana provoca uma degradação do sistema multilateral, e mais países buscam arsenais unilaterais.

https://valor.globo.com/brasil/noticia/2022/01/12/brasil-adota-retaliacao-unilateral-na-omc-tendo-india-e-indonesia-como-primeiros-alvos.ghtml

sexta-feira, 1 de outubro de 2021

Ditadura em transformação na China e a verdadeira ameaça ao Ocidente: Jean-Marie Guéhenno, entrevista a Assis Moreira (Valor)

 Ditadura em transformação na China e a verdadeira ameaça ao Ocidente

Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008 lança o livro “O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo”

Por Assis Moreira — De Genebra

Valor Econômico, 01/10/2021 07h55 


Para Jean-Marie Guéhenno, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades ocidentais, na fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar 


Ex-secretário-geral adjunto da Organização das Nações Unidas (ONU) e chefe das operações de manutenção da paz entre 2000 e 2008, o diplomata francês Jean-

Marie Guéhenno publica um novo livro, intitulado Le premier XXIe siècle, de la globalisation à l’émiettement du monde (O primeiro século XXI, da globalização à pulverização do mundo, Flammarion), no qual avalia que o Ocidente democrático atravessa sua crise mais grave desde o fim da Guerra Fria.

Especialista de relações internacionais e questões de defesa e hoje professor na Universidade Columbia, de Nova York, Guéhenno observa que o período atual tem, em todo o caso, pouco a ver com a precedente Guerra Fria, e o sucesso chinês coloca o Ocidente capitalista numa situação bem diferente em comparação à confrontação com a União Soviética.E TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE

TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE TRÈS POPULAIRE

Para ele, o medo cresce em sociedades desorientadas e extremamente polarizadas, e isso pode alimentar a chamada “tentação chinesa”, a atração pelo modelo chinês. Guéhenno avalia que a ditadura chinesa parece tentar indivíduos em vários países, com seu sucesso material que fascina e sua capacidade de manter uma certa harmonia da sociedade.

Usando o poder das novas tecnologias, a China procura passar da ditadura repressiva - descrita por George Orwell, baseada no terror - à ditadura preventiva descrita por Aldous Huxley, baseada num controle dos espíritos em que a pessoa não se sente em prisão. Mas, para o autor, a verdadeira ameaça está no interior das sociedades

ocidentais, na sua fragmentação crescente, que não se sabe ainda como superar.

Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder”


Guéhenno aborda o que chama de ilusão da nova ordem mundial, o indivíduo perante a sociedade, a crise da política tradicional, a nova política e novos nacionalismos, o poder das grandes companhias digitais, o futuro da guerra em sociedades pulverizadas.

No capítulo sobre a nova política, Guéhenno destaca como certos líderes não procuram mais o terreno comum na política, para superar diferenças e agregar pelo compromisso eleitores diversos. Ao contrário, procuram aprofundar as clivagens. Pela brutalidade da linguagem e dos atos, o partido acentua o que o diferencia de seu adversário. Não ofender é visto como começar a mentir. Não tenta sequer se fazer

“respeitável”, seguindo a lógica de partidos fascistas.

Guéhenno nota que nesse cenário a diferença entre o fato e a ficção, entre o verdadeiro e o falso, não existe mais. Destaca o cinismo de líderes que fazem as pessoas acreditarem nas declarações mais absurdas um dia, certos de que podem dizer todo o contrário no dia seguinte como uma espécie de habilidade tática superior na política.

Assim, o espaço compartilhado da razão, que desde a antiguidade foi a base do debate democrático, se fragmenta numa multitude de ilhas de certezas incompatíveis e irreconciliáveis, observa Guéhenno.


Trechos da entrevista:

Valor: O sr. diz que o Ocidente democrático passa pela mais grave crise

desde o fim da Guerra Fria. O que deu errado?

Jean-Marie Guéhenno: Durante toda a Guerra Fria não pensamos sobre

quem éramos, porque tínhamos como adversário o bloco comunista, a

União Soviética, e víamos que nossa sociedade, com todas suas

deficiências e fraquezas, era ainda assim bem superior à deles. Em 1989

(queda do Muro de Berlim), ficamos sem inimigo. Naquele momento, em

vez de nos indagarmos sobre o que faz uma sociedade, o que nos une,

quais os valores em que acreditamos, qual é nossa vontade coletiva para

o futuro, o que fizemos foi simplesmente celebrar o fato de termos

ganhado e fomos triunfalistas.

Esse foi o pecado original. Confundimos o colapso de um sistema

soviético em fim de linha com o triunfo da democracia. Mas democracia

é muito mais que eleições, é um conjunto social de valores

compartilhados que permite eleições. Eleições são evidentemente muito

importantes, mas sem debate público, sem um alicerce compartilhado

entre os cidadãos, tornam-se o que Fareed Zakaria (analista de política

internacional) chama de democracia iliberal, que pode conduzir na

verdade ao contrário da democracia.


Valor: E resulta no triunfo do indivíduo?

Guéhenno: Sim. Essa ideologia do indivíduo vem de longe, da ruptura na

relação direta do indivíduo ao divino. Foi uma ruptura da religião que

colocava antes de tudo a família, a tribo, como base da sociedade. Essa

ideia do indivíduo foi fundamental para o desenvolvimento do mundo,

com sua liberdade de espírito e de empreender. Mas, com o colapso do

comunismo, o que vimos como triunfo do indivíduo foi ao mesmo tempo

o apogeu e a descoberta de seus limites. Porque o indivíduo de algum

modo isolado, cortado do coletivo, é algo muito angustiado.

O indivíduo precisa de fronteiras, de uma comunidade, de um

engajamento coletivo. O que temos hoje são indivíduos que se afogam

num mundo que eles não controlam. Daí esse sentimento de angústia e

reação de xenofobia, nacionalismo, tudo isso que vemos e que é

desastroso. É uma reação a essa imensa discrepância entre o indivíduo, a

quem prometemos todos os poderes, e um mundo que o esmaga mais

que o libera.

Para os europeus, para os brasileiros, sempre

haverá maior proximidade com parceiros com

tradição democrática”


Valor: Isso explica a crise da política tradicional e o aparecimento de

forças como Trump e suas cópias em outros países?

Guéhenno: Sim, acho que explica amplamente. Quando o comunismo

desmoronou, inicialmente a social-democracia achou que sua hora tinha

chegado. Mas, no rastro disso, houve uma perda de confiança no Estado,

na capacidade do poder público de mudar a sociedade. Rapidamente a

social-democracia foi identificada a uma forma de suavizar o capitalismo

puro e duro, mais que de transformar realmente a sociedade. E partidos

conservadores, que também podiam pensar que era sua hora, ao

celebrar o mercado sem nuance, como vimos com Margaret Thatcher,

que foi um grande sucesso político, igualmente atingiu o movimento

conservador clássico.

Apareceram esses novos movimentos políticos que não são baseados

em programas - e muito mais em identidade. Essa é uma mudança

profunda. Frequentemente se vincula o populismo a razões puramente

socioeconômicas, como erosão da classe média e aumento das

desigualdades. Sim, é uma parte da explicação, mas só uma parte.

Quando vemos a ascensão do que chamamos preguiçosamente de

populismo no mundo, vemos que isso acontece em países

extraordinariamente diferentes. O Brasil é diferente dos EUA, que é

diferente do Reino Unido, que é diferente da Índia, que é diferente da

Itália, e as situações socioeconômicas são diferentes. Há outras razões

que são mais políticas.


Valor: Por exemplo?

Guéhenno: Por exemplo, o sentimento de que em todos os países há

uma perda de controle, de que somos dependentes de ações que estão

bem além de seu país e fora de seu alcance. Outro elemento são as

novas tecnologias, com influência sem precedentes, e que facilitam a

emergência de novos partidos num mundo inicialmente virtual, onde

competem e desestabilizam estruturas políticas tradicionais. Antes a

política evoluía lentamente, marcada pela proximidade. Agora, as

pessoas se encontram na internet. E o mundo virtual encoraja a

brutalidade. Estudos mostram que se pode ter muito mais sucesso na

política evitando nuances. Na “nova política”, que agrupa pela identidade,

mais que em torno de projetos, um discurso equilibrado, que mostra o

pró e o contra, não interessa. O que interessa é o julgamento pleno de

certeza, determinado. A lógica das comunidades virtuais é da violência.

Primeiro, é uma violência virtual, e depois, quando se é suficientemente

numeroso, o que chamo no meu livro de rio subterrâneo que incha fora

da vista, pode fazer irrupção no mundo territorial. E nesse momento

pode ter um impacto devastador, surpreende, sacode ou pode quebrar

os partidos tradicionais, como a vitória de Donald Trump à Presidência

dos EUA (em 2016), em que ninguém ou poucos acreditavam antes.

Valor: O sr. fala de declínio da democracia...

Guéhenno: Há um declínio porque justamente a democracia é reduzida

à pura mecânica eleitoral, onde é transposta a ideologia do mercado pela

qual o melhor produto é aquele que se vende melhor. Ora, o centro da

democracia é a deliberação, a troca de ideias, a negociação de interesses.

E quando se reduz a democracia à pura mecânica para determinar um

vencedor, perdemos o que faz seu valor.


Valor: A truculência do discurso político é a tendência para atrair os

eleitores?

Guéhenno: Sim, na política tradicional os partidos tentavam ganhar

eleitores do centro, mostrar algo para eles se identificarem ao partido.

Os partidos convergiam para o centro, em algum momento, e contendo

extremos. Hoje, novos movimentos procuram sobretudo mobilizar sua

base, marcar sua diferença. E assim acentuam o que os separam do

adversário, endurecem o discurso, ofendem, buscam ser o mais violento

possível, porque é isso que vai energizar a base. A linguagem política

encolerizada se tornou a linguagem em várias democracias ocidentais.


Valor: O sr. menciona uma escolha entre GAFA, os gigantes do digital, e a

China. Como explicar isso?

Guéhenno: O fenômeno que sacode tudo é a nova economia dos dados,

que é tão importante quanto a Revolução Industrial. A revolução de

dados muda a maneira como o poder e o saber vão ser distribuídos. O

poder e a riqueza estão hoje na coleta e na gestão de dados. Há

inquietações sobre efeitos mais visíveis desse poder, como a capacidade

de espionagem que ameaça o espaço privado, a capacidade de

manipulação que pode ameaçar as campanhas eleitorais. Mas os efeitos

são muito mais profundos, porque é a estrutura mesmo das sociedades,

nas suas dimensões políticas e econômicas, que estão sendo redefinidas

pelos novos controladores de dados. Por isso que essas grandes

empresas, todas americanas, passaram a ter uma importância

gigantesca no mundo ocidental. A China também tem grandes empresas

de dados e tem o Partido Comunista (PC). É interessante como o

presidente Xi Jinping procura aumentar seu controle sobre as grandes

empresas de dados porque ele percebe a dimensão desse poder. E ele

provavelmente não quer um centro de poder independente do PC que

se desenvolva na China e que um dia se torne mais importante que o

partido. Isso coloca a China diante de escolhas difíceis e não sabemos

como vai acabar. Se Xi e o partido querem controlar o poder dos dados

com uma ditadura tradicional, colocando censores, vigilantes em todo

lugar, não vão conseguir, ou o que vão é causar uma ossificação da

sociedade, pois não se controla um país com 1,4 bilhão de habitantes

dessa maneira. Outra solução é dar o poder aos algoritmos. É o que se

passa no Ocidente, com Facebook, Twitter etc. Aceita deixar os

algoritmos livres, mas não para polarizar, pelo contrário, para

harmonizar, e isso causa muito medo. No Ocidente, vemos os algoritmos

do lado comercial e vemos uma exaustão, um esgotamento dessa

sociedade disfuncional onde todo mundo disputa com todo mundo.


Valor: O sr. aponta riscos de “tentação chinesa”. E pergunta se a China é

o nosso futuro. Qual é a resposta?

Guéhenno: A grande diferença entre a China e a URSS é que a URSS era

um fiasco econômico e a China é um sucesso econômico. Vemos em

pesquisas que, no fundo, a ideia de país onde se fabrica uma espécie de

bolha de felicidade é uma tentação forte. Alguns aspectos do dito

modelo chinês, comparado a nossas sociedades democráticas em

decomposição, ameaçam se tornar mais atrativos. A China tem tanto a

repressão horrível aos uigures como tem a ditadura amena, quase

invisível. O sistema chinês de crédito social, que Pequim tenta

implementar, procura criar uma espécie de harmonia social que pode

alimentar desejos de indivíduos desorientados em outras sociedades.

Quando se combina isso com medo, porque em nossas sociedades hoje

a única coisa que as mobilizam é o medo, isso pode resultar numa

demanda de autoridade e de controle. É um verdadeiro risco em

sociedades desorientadas, confusas, ao mesmo tempo hiperconectadas

e hiperfragmentadas. Isso provoca a demanda de um poder que o

protege como uma bolha e que gera suas emoções.


Valor: Os EUA com essa confrontação com a China colocam freios à

“tentação chinesa”?

Guéhenno: Os americanos justamente estão numa situação difícil para

contrapor-se ao modelo chinês porque o que vemos dos EUA hoje não é

muito encorajador. É um país extraordinariamente polarizado, suas

instituições políticas funcionam mais e mais dificilmente, as relações são

ainda mais judicializadas e colocam um peso ainda maior nas costas dos

juízes. Uma questão é se a Suprema Corte, com maioria de juízes

nomeados por presidentes republicanos, e que sempre foi considerada

acima da política, se ela manterá sua legitimidade numa sociedade mais

e mais polarizada. Vemos uma fragmentação da sociedade americana

que não é invejável. Há também as grandes desigualdades na sociedade

americana, que o presidente Joe Biden tenta corrigir um pouco. Ele tem

limites, com um Partido Democrata também rachado sobre a questão.

Assim, o modelo americano como alternativa à China tem muito menos

atrativo que tinha face à URSS. Ao mesmo tempo, é verdade que o

mundo da internet é dominado por empresas americanas, e essa

influência americana continuará muito potente no mundo. Mas no

momento ela consegue mais fragmentar o mundo do que uni-lo, de

forma que o triunfo americano é de uma certa maneira também o que

fragiliza um pouco o mundo hoje. Os EUA vão colocar em ordem de

batalha essas empresas digitais para fazer contrapeso à influência

chinesa. Da mesma maneira que Xi Jinping tenta reforçar o controle

sobre empresas de dados, nos EUA não é evidentemente o mesmo

sistema, mas a lógica da confrontação com a China produzirá

provavelmente uma aproximação mais e mais importante entre o Estado

e essas empresas.


Valor: Entramos numa segunda Guerra Fria?

Guéhenno: A história aqui não se repete realmente. As economias

ocidental e soviética eram dois mundos separados. Hoje, a China é o

maior detentor de títulos do Tesouro americano, é um parceiro

comercial fundamental para a Alemanha e mesmo para os EUA, é o

primeiro cliente da Austrália. Não vejo muito uma dissociação aí. Os

chineses construíram uma espécie de muralha da China virtual para a

internet. Mas, ao mesmo tempo, sabem que para gerir suas empresas

de maneira eficaz é preciso uma circulação de dados global. Distinguir

entre dados a bloquear ou não é muito complicado. Assim, os dois

mundos estão muito mais interligados do que ocorreu na Guerra Fria.

Também a distinção hoje entre política externa e política interna é

menos e menos pertinente. Os dois mundos são muito porosos. E cada

um procurará influenciar, fazer mover do interior o outro país, e cada um

vai procurar manipular a interdependência para seu proveito. Em vez de

guerra fria no sentido clássico que conhecemos, hoje temos é uma

competição muito mais difusa.


Valor: O recente acordo militar para transferência de tecnologia

americana de submarinos para a Austrália amplia até que ponto a

tensão entre americanos e chineses?

Guéhenno: O aspecto mais importante é que os EUA romperam uma

espécie de acordo tácito, de consenso ocidental, de não transferir essa

tecnologia muito proliferadora de submarino nuclear. Mudar sua posição

é um fato importante e militariza ainda mais a rivalidade com a China. E

isso significa que o prognóstico de 15 anos, 20 anos, é o de uma

confrontação militar. O lado chinês vai acelerar o reforço da capacidade

marítima chinesa, acelerar uma corrida aos armamentos na região do

Pacífico, mas ao mesmo tempo essa rivalidade tomará vários outros

caminhos. E os chineses esperam contornar a rivalidade militar por todo

o tipo de meios que não são militares.


Valor: Uma confrontação militar é inevitável?

Guéhenno: Acho que nada é inevitável. É preciso confiar na capacidade

humana de não fazer sempre besteiras. Mas vejo riscos reais de erro de

cálculo. A China foi uma potência dominante do mundo por séculos.

Quando ela renunciou à potência naval, na época do Renascimento, se

isolou e perdeu o movimento de modernização que começou no século

XVI e se acelerou no fim do século XVIII. Ela foi humilhada e tem uma

revanche a tomar. Mas, nesse mundo complicado, fragmentado, um

elemento de esperança é justamente que há uma multitude de vínculos

que conectam o mundo. É um fator de inquietação, mas que pode

também se tornar um fator de estabilização. Os Estados podem fazer

erros catastróficos, que nos levariam a confrontação. Mas podemos

esperar que todos esses vínculos paralelos aos Estados possam nos

ajudar a não chegar a esses confrontos.


Valor: Os parceiros serão obrigados a escolher claramente entre EUA e

China em certo momento?

Guéhenno: Espero que não. Acho que para os europeus, para os

brasileiros, sempre haverá maior proximidade com parceiros com

tradição democrática. Ao mesmo tempo, creio que há um desejo que

cresce de um país não estar em situação de “conosco ou contra nós”. Um

mundo onde há diferentes maneiras de pensar a relação do indivíduo ao

coletivo é a melhor garantia de pluralismo e de paz. Países que não estão

na linha de confrontação direta, como o Brasil e como os europeus, têm

todo interesse de conversarem, não para formar blocos, mas para

mostrar que pode haver respostas diferentes.


Valor: Crise do Ocidente, tentação chinesa, potência de dados. Quais

alternativas a tudo isso?

Guéhenno: Tento desenhar algumas respostas no livro. Acho que

devemos refletir sobre uma nova governança de dados, pela qual o

poder dos dados não fique nas mãos de empresas nem nas mãos de um

Estado. Creio que essa é uma das questões que pessoas que prezam o

pluralismo devem se colocar. Quanto à questão de legitimidade da

autoridade, acho que toda tentativa de democracia direta, e até sorteio,

por exemplo, é uma resposta superficial, porque não é reproduzindo

uma sociedade disfuncional que vamos torná-la funcional e isso

tampouco resolve a falta do debate. Também num mundo em que o

conhecimento supera mais e mais a capacidade de cada indivíduo, a

relação entre saber e poder está mal resolvida hoje. Vimos na pandemia

de covid-19 de um lado governos que procuram ignorar o saber, o que é

catastrófico, e de outro governos que se escondem atrás do saber. Ora,

há espaço para o saber e para reconhecer sua utilização e há questões

que são de natureza política. A medida do risco é uma questão científica.

O grau de risco a que estamos dispostos é do campo da política.