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sexta-feira, 10 de novembro de 2023

POR QUE CERTAS IDEIAS IMPORTANTÍSSIMAS MORREM NA INUTILIDADE? -Bolivar Lamounier (apresentação Paulo Roberto de Almeida)

 Artigo importante do Bolívar Lamounier, pessimista porque realista sobre a situação calamitosa do Brasil, muito pior do que sequer imaginamos que possa ser, e que resumo na seguinte observação que ele faz: temos o crime organizado crescendo três vezes mais rápido do que o PIB e elites medíocres, ineptas e incapazes de pensar um futuro para o país, que navega sem cartas náuticas e sem direção por um mar encapelado sem sequer ter consciência de para onde vai e sem ideia de para onde quer ou pretenderia ir. Estamos perdidos no nevoeiro, e tudo o que o atual governo tem a oferecer é mais do mesmo, ou seja, a continuida da extorsão praticada pelo estamento político predatório sobre os poucos recursos duramente amealhados pelos empresários que ainda tentam se manter ante as barreiras colocadas ao empreendedorismo privado pelas fortalezas estatais construidas para escapelá-los e despojá-los do que conseguem produzir como valor agregado. Somos uma Argentina em marcha lenta, volto a dizer.

Paulo Roberto de Almeida

POR QUE CERTAS IDEIAS IMPORTANTÍSSIMAS MORREM NA INUTILIDADE?

Bolívar Lamounier 

Sim, estou seguro de que meu título expressa uma verdade profunda. Se um indivíduo martelar 10 vezes uma ideia que mereceria ser repetida 10 mil vezes, ele granjeará uma sólida fama de chato e a ideia nunca voltará a ser lida. Será abandonada como inútil. Trata-se do que os cientistas denominam “efeito perverso”. 

Tonto como sou, volta e meia me atrevo a ultrapassar o limite de dez vezes e repito alguma ideia que me pareça relevante. E vou mais longe: às vezes repito todo um argumento, presumindo que as ideias que o compõem são igualmente relevantes. 

Por exemplo: a ideia de progresso como um destino único e necessário para a humanidade. Trata-se de uma tolice. Assim como há progresso, há retrocesso. Há retrocesso manso, quase horizontal, como acontece no Brasil, e há retrocesso abrupto, quase catastrófico, como o da Argentina. Nossos “hermanos” do Sul chegaram a constituir uma das nações mais ricas do mundo, mas regrediram. Chegaram a ter uma renda anual por habitante superior à da metade da Europa, um sistema de ensino exemplar já na segunda metade do século XIX e um metrô em Buenos Aires em 1910. Mas caíram, despencaram ladeira abaixo e esborracharam lá embaixo, onde hoje se encontram. Nós, brasileiros, nã o acreditamos nisto. Somos panglossianos: acreditamos piamente que nossa história será uma sequência irreversível de felicidades. Tampouco acreditamos em temores. Um de nós jamais escreveria, como Camões, “que nos perigos grandes, vinte vezes maior é o temor que o perigo”.

Para abreviar, e apesar de tudo o que acima vai dito, relembro aqui alguns pensamentos que tenho incessantemente martelado. Primeiro, o Brasil não está estagnado, está em retrocesso. Debater todo ano se o déficit fiscal do ano seguinte será inferior a 1% do PIB é pior que irresponsabilidade, é um ridículo atroz. Imaginar que nossa economia um dia crescerá vigorosamente apenas com recursos estatais (dada a nossa relação carnal com o Estado, nossa hostilidade à empresa privada e nossa absoluta recusa a uma economia mais aberta ao exterior), beira a idiotia.  Desse conjunto, a única inferência possível é que somos mesmo um país de lorpas e pascácios.  < /span>

Acrescentemos, para não deixar barato, que temos uma Constituição irreformável. Quando lhe encheram os intestinos com uma infinidade de freios e estipularam que a elaboração de outra mais sensata requer a convocação do “poder constituinte originário”, os constituintes de 1988 encestaram a bola sete. Na prática, acabaram com o jogo. Queira Deus que nossos atuais congressistas não metam na cabeça a ideia de se arvorar em “poder constituinte originário”, porque a segunda da lavra deles sairá pior, com certeza. A emenda sairá pior que o soneto.

Noves fora, há como desarmar essa armadilha em que nos meteram? Ou nossa única alternativa é nos pormos a cogitar que país teremos daqui a 10 ou 20 anos, com o crime organizado crescendo a uma taxa anual muito mais elevada que o PIB?

Os três países que se industrializaram tardiamente – quero dizer, nas últimas três décadas do século XIX: Alemanha, Estados Unidos e Japão – o fizeram quando venceram guerras sangrentíssimas. 

Nós não temos nem queremos tal alternativa. E da elite estatal – quero dizer, das cúpulas dos três Poderes, salvo melhor juízo, há o que esperar? Nada o indica. Como, então, escapar da armadilha?

O palpite que lhes posso oferecer, é anêmico, débil, e minúsculo como um grão de areia. É o caminho das ideias. É formar, fora do Estado, de fora para dentro, uma elite pensante e atuante, que sirva como um muro de arrimo, balizando seriamente as ações públicas e impedindo que o país despenque para valer.   

Dizendo-o de forma abreviada, preocupa-me o fato de a situação econômica e social brasileira ser muito mais grave do que em geral se tem presumido, a julgar pelo que nos é dado avaliar pela mídia e pelo debate público em geral. Mesmo que nossa renda per capita crescesse continuamente (hipótese inverossímil)   3% ao ano, levaríamos praticamente uma geração para dobrá-la, atingindo uma cifra ainda aquém da que os países desenvolvidos atingiram décadas atrás. Não se requer muito esforço para visualizar o sombrio o horizonte que emergirá de tais condições. 

Para pior, como antecipei, não dispomos, fora da máquina do Estado – ou seja, fora do sistema institucional constituído pelos três Poderes-, de uma elite competente, culta e suficientemente devotada ao bem do país.

O grão de areia que estou começando a montar é um programa interdisciplinar de economia, política e história (nada a ver com os ralos currículos atualmente oferecidos na maioria das universidades), a fim de trocar ideias em reuniões presenciais, on line e em vídeo com profissionais e universitários de alta qualificação a respeito da situação brasileira no curto e no médio prazo, e uma cogitação de cenários para o médio prazo.”


quinta-feira, 13 de janeiro de 2022

Simon Schwartzmann sobre Edmar Bacha e Bolivar Lamounier

Sobre: Edmar Bacha, No país dos contrastes, Selo Real, 2021; 

Bolívar Lamounier, De onde, para onde, Global, 2018; Antes que me esqueça, Desconcertos, 2021 

Mineiros autênticos

Simon Schwartzmann

 O Estado de São Paulo, 10 de dezembro de 2021

Diferentes de mim, Bolívar Lamounier e Edmar Bacha, que acabam de publicar suas histórias[1], são mineiros de verdade.  Bolívar nasceu em Dores do Indaiá, e lembra com afeto as casas coloniais, as pescarias no rio e o isolamento que fazia da cidade parte do sertão mineiro. Edmar lembra da pequena Lambari do Sul de Minas, do sobrado em que morava, do sanduíche que comia no Bar do Juca e do apito do trem que chegava à cidade ao anoitecer.  

Foi em Dores, nos anos 20, que Francisco Campos fundou uma Escola Normal, uma das primeiras do país, onde a mãe se formou como professora rural e na qual matriculou o filho para estudar nas “classes anexas” em que a melhor pedagogia da época era adotada. O pai era um pequeno fazendeiro e comerciante, da família Lamounier de Itapecerica que incluía médicos, políticos e músicos. 

Lambari, em comparação, era uma cidade mais moderna, parte do “circuito das águas” que recebia os turistas das cidades grandes em seus hotéis e cassinos. Do lado da mãe, que era diretora da escola local, Edmar vem de uma família de origem portuguesa, os Lisboa, na qual o culto da literatura era personificado na tia Henriqueta. Os Bacha são de origem libanesa, que começaram a chegar ao Brasil no final do século 19 em busca de novas oportunidades. Ambas as famílias se mudaram para Belo Horizonte e, no início dos anos 60, Bolívar e Edmar se encontraram na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, um no curso de sociologia e política, outro em economia.

Nenhum fazia parte da “tradicional família mineira” que controlava a política, as terras e os recursos do Estado. Nem da grande massa, incluindo antigos escravizados que, terminado o ciclo do ouro do século 18, ficou isolada nas pequenas aldeias e roças do interior, em uma economia que mal garantia a sobrevivência. Mas faziam parte de um grupo significativo de pessoas que, pelo empreendedorismo e sobretudo pela educação, buscavam participar do progresso que emanava do Rio de Janeiro e São Paulo e aos poucos, pelo rádio pelas estradas, ia chegando ao interior, atraindo os mais inquietos, ou mais necessitados, para as capitais. Eram, pode-se dizer com algum exagero, sucessores dos aventureiros que vieram para Minas em busca do ouro, participaram da Inconfidência, escreviam poesia e liam às escondidas os livros proibidos da imensa biblioteca do cônego de Mariana.

Estudar sociologia, política e economia era também sair da rota tradicional dos cursos de direito, medicina e engenharia, preferidos pelos filhos das famílias tradicionais. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, com seu programa de bolsas de estudo, criou entre os estudantes um ambiente efervescente em que novas ideias e estilos de vida eram experimentados, a militância política atraia a quase todos, e de onde tantos saíram para voos mais altos. Bolívar e Edmar, nos anos 60, foram entre os primeiros cientistas sociais brasileiros a partir para os modernos cursos de doutorado nos Estados Unidos – Universidade da Califórnia e Yale – rompendo com a tradição francesa que predominava na geração mais velha. 

De volta ao Brasil, nos anos 70, ajudaram a organizar novos cursos de pós-graduação que iriam formar as futuras gerações – o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, por Bolívar, e o departamento de economia da Universidade de Brasília, por Edmar. Mais tarde Bolívar ajudou a organizar o CEBRAP, dirigido por Fernando Henrique Cardoso, e depois fundou o IDESP, outro instituto independente de pesquisas sociais em São Paulo. Edmar, depois de Brasília, foi um dos fundadores do curso de pós-graduação em economia da PUC do Rio de Janeiro.

Mas foi na produção intelectual e na vida pública que ambos deram continuidade à inquietação mineira que traziam das origens. Bolívar, ainda estudante, participou dos movimentos estudantis, chegou a ser preso pela ditatura militar, e escreveu sua tese de doutorado criticando a tradição autoritária dos intelectuais brasileiros, à direita e à esquerda. Fez parte da Comissão Afonso Arinos, que na década de 80 procurou produzir, para o Brasil, uma Constituição moderna e fundada em princípios de justiça social e liberdade econômica, e em seus inúmeros livros e artigos, foi sempre um defensor da democracia parlamentarista. Edmar, que no início se aproximou dos economistas desenvolvimentistas como Celso Furtado, passou depois a dar prioridade aos temas da liberdade e abertura da economia e do Estado eficiente, como os melhores caminhos para sair do círculo vicioso do atraso, da desigualdade e da pobreza. Foi presidente do IBGE, de onde, nos anos 80, participou do frustrado Pano Cruzado, e finalmente, nos anos 90, foi um dos principais organizadores e mentores intelectuais do Plano Real. 

É um conforto ver que ambos continuam remando contra a corrente, escrevendo e falando na busca dos melhores caminhos para o Brasil moderno, que ainda acham viável, se livre das tentações populistas e reacionárias que mobilizam a tantos. Autênticos mineiros.


[1] Edmar Bacha, No país dos contrastes, Selo Real, 2021; Bolívar Lamounier, De onde, para onde, Global, 2018; Antes que me esqueça, Desconcertos, 2021

sábado, 11 de dezembro de 2021

Simon Schwartzman homenageia dois mineiros autênticos: Edmar Lisboa Bacha e Bolivar Lamounier

De onde, para onde: memórias 

Mineiros autênticos

By Simon on Dec 10, 2021 06:58 am

NO PAIS DOS CONTRASTES: MEMORIAS DA INFANCIA AO PLANO REAL - 1aED.(2021)

(Publicado no O Estado de São Paulo, 10 de dezembro, 2021)

Diferentes de mim, Bolívar Lamounier e Edmar Bacha, que acabam de publicar suas histórias[1], são mineiros de verdade.  Bolívar nasceu em Dores do Indaiá, e lembra com afeto as casas coloniais, as pescarias no rio e o isolamento que fazia da cidade parte do sertão mineiro. Edmar lembra da pequena Lambari do Sul de Minas, do sobrado em que morava, do sanduíche que comia no Bar do Juca e do apito do trem que chegava à cidade ao anoitecer.  

Foi em Dores, nos anos 20, que Francisco Campos fundou uma Escola Normal, uma das primeiras do país, onde a mãe se formou como professora rural e na qual matriculou o filho para estudar nas “classes anexas” em que a melhor pedagogia da época era adotada. O pai era um pequeno fazendeiro e comerciante, da família Lamounier de Itapecerica que incluía médicos, políticos e músicos. 

Lambari, em comparação, era uma cidade mais moderna, parte do “circuito das águas” que recebia os turistas das cidades grandes em seus hotéis e cassinos. Do lado da mãe, que era diretora da escola local, Edmar vem de uma família de origem portuguesa, os Lisboa, na qual o culto da literatura era personificado na tia Henriqueta. Os Bacha são de origem libanesa, que começaram a chegar ao Brasil no final do século 19 em busca de novas oportunidades. Ambas as famílias se mudaram para Belo Horizonte e, no início dos anos 60, Bolívar e Edmar se encontraram na Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, um no curso de sociologia e política, outro em economia.

Nenhum fazia parte da “tradicional família mineira” que controlava a política, as terras e os recursos do Estado. Nem da grande massa, incluindo antigos escravizados que, terminado o ciclo do ouro do século 18, ficou isolada nas pequenas aldeias e roças do interior, em uma economia que mal garantia a sobrevivência. Mas faziam parte de um grupo significativo de pessoas que, pelo empreendedorismo e sobretudo pela educação, buscavam participar do progresso que emanava do Rio de Janeiro e São Paulo e aos poucos, pelo rádio pelas estradas, ia chegando ao interior, atraindo os mais inquietos, ou mais necessitados, para as capitais. Eram, pode-se dizer com algum exagero, sucessores dos aventureiros que vieram para Minas em busca do ouro, participaram da Inconfidência, escreviam poesia e liam às escondidas os livros proibidos da imensa biblioteca do cônego de Mariana.

Estudar sociologia, política e economia era também sair da rota tradicional dos cursos de direito, medicina e engenharia, preferidos pelos filhos das famílias tradicionais. A Faculdade de Ciências Econômicas da UFMG, com seu programa de bolsas de estudo, criou entre os estudantes um ambiente efervescente em que novas ideias e estilos de vida eram experimentados, a militância política atraia a quase todos, e de onde tantos saíram para voos mais altos. Bolívar e Edmar, nos anos 60, foram entre os primeiros cientistas sociais brasileiros a partir para os modernos cursos de doutorado nos Estados Unidos – Universidade da Califórnia e Yale – rompendo com a tradição francesa que predominava na geração mais velha. 

De volta ao Brasil, nos anos 70, ajudaram a organizar novos cursos de pós-graduação que iriam formar as futuras gerações – o Instituto Universitário de Pesquisas do Rio de Janeiro, por Bolívar, e o departamento de economia da Universidade de Brasília, por Edmar. Mais tarde Bolívar ajudou a organizar o CEBRAP, dirigido por Fernando Henrique Cardoso, e depois fundou o IDESP, outro instituto independente de pesquisas sociais em São Paulo. Edmar, depois de Brasília, foi um dos fundadores do curso de pós-graduação em economia da PUC do Rio de Janeiro.

Mas foi na produção intelectual e na vida pública que ambos deram continuidade à inquietação mineira que traziam das origens. Bolívar, ainda estudante, participou dos movimentos estudantis, chegou a ser preso pela ditatura militar, e escreveu sua tese de doutorado criticando a tradição autoritária dos intelectuais brasileiros, à direita e à esquerda. Fez parte da Comissão Afonso Arinos, que na década de 80 procurou produzir, para o Brasil, uma Constituição moderna e fundada em princípios de justiça social e liberdade econômica, e em seus inúmeros livros e artigos, foi sempre um defensor da democracia parlamentarista. Edmar, que no início se aproximou dos economistas desenvolvimentistas como Celso Furtado, passou depois a dar prioridade aos temas da liberdade e abertura da economia e do Estado eficiente, como os melhores caminhos para sair do círculo vicioso do atraso, da desigualdade e da pobreza. Foi presidente do IBGE, de onde, nos anos 80, participou do frustrado Pano Cruzado, e finalmente, nos anos 90, foi um dos principais organizadores e mentores intelectuais do Plano Real. 

É um conforto ver que ambos continuam remando contra a corrente, escrevendo e falando na busca dos melhores caminhos para o Brasil moderno, que ainda acham viável, se livre das tentações populistas e reacionárias que mobilizam a tantos. Autênticos mineiros.


[1] Edmar Bacha, No país dos contrastes, Selo Real, 2021; Bolívar Lamounier, De onde, para onde, Global, 2018; Antes que me esqueça, Desconcertos, 2021.

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Um dilema brasileiro (a questão racial) - Bolivar Lamounier

UM DILEMA BRASILEIRO

Bolívar Lamounier – 10.11.2021


Desde a antiguidade, sempre fomos aconselhados a nos conhecermos – nosce te ipsum, conhece-te a ti mesmo. Mas esse conselho foi sempre dirigido muito mais a indivíduos que à sociedade como um todo. A rigor, a ideia de uma sociedade, de um “todo” que deveria conhecer melhor seus problemas, a fim de facilitar a solução deles, é muito pálida ao longo de toda a história da filosofia política. 

No mundo atual – e no Brasil isso raia à beira do escândalo-, o trabalho de conhecer à sociedade no sentido totalizante a que me referi no parágrafo anterior foi deixado a cargo das área das ciências humanas das universidades, cuja qualidade, como todos sabemos, é patética. As fortunas empresariais destinam-se basicamente a duas finalidades: projetos de pequeno alcance, destinados a proteger a reputação e aliviar a consciência de alguns, que buscam esse alívio mesmo sabendo que atuam numa escala liliputiana, e encomendar publicações caríssimas, em papel de primeira e ilustrações caríssimas, que dão uma notável fosforescência às marcas da empresa e superam qualquer alternativa como presentes de Natal. Atenção: sei que muitas dessas publicações são de grande valor para a conservação de nossa memória história. Mas adoraria saber quanto, anualmente, o empresariado gasta com esse tipo de publicação, em comparação com projetos que possam ter um verdadeiro alcance social. 

Nos próximos dias, vou contar aqui algumas historinhas sobre fundações e indivíduos que fizeram um uso portentosamente relevante de seus recursos. Começo hoje com a questão racial nos Estados Unidos durante a Segunda Guerra. 

Reproduzo abaixo um trecho (pág. 117) de meu livro Tribunos, profetas e sacerdotes (Companhia das Letras, 2016) 

“A coincidência temporal entre a fundação do Estado e a implantação do regime representativo foi uma circunstância benfazeja na origem dos Estados Unidos, mas é necessário apreciá-la na devida perspectiva histórica. Estamos falando de uma época em que o poder era praticamente monopolizado por uma estreita camada aristocrática e mercantil, que não necessitava legitimação por parte da sociedade inclusiva, até porque uma grande parte desta era constituída por escravos. Transcorridos dois séculos, no segundo pós-guerra, a realidade do país era outra: uma sociedade complexa e conflituosa, na qual numerosos grupos demandavam uma participação mais efetiva no sistema político e todo um rol de questões novas pressionava a agenda pública. 


A questão racial 

O que colocou a questão racial no topo da agenda intelectual americana ainda durante a Segunda Guerra foi o convite feito pela Fundação Carnegie ao economista sueco Gunnar Myrdal para elaborar um amplo estudo sobre o assunto. O resultado foi a publicação, em 1944, de An American Dilemma, um volume de quase 1500 páginas contendo uma cerrada análise das condições de vida dos negros e dos obstáculos à sua integração na vida social e política americana. A influência desse livro se fez sentir não apenas no plano das percepções dos americanos sobre os negros, mas em numerosas conexões específicas, sendo citado pela Suprema Corte no histórico caso Brown contra Conselho de Educação e permanecendo por muito tempo como uma referência obrigatória em programas de integração racial e ação afirmativa. 

Esquematicamente, podemos dizer que Um Dilema Americano tem como base uma tensão conceitual básica. De um lado, o que Myrdal denominou causação múltipla e cumulativa: o emaranhado de círculos viciosos que perpetuava a condição de pobreza e marginalidade das comunidades negras. O fato que primordialmente caracterizava tais comunidades era, com efeito, o reforço mútuo de vários handicaps: a raça, a classe, as deficiências de escolarização e saúde, a desorganização familiar e a vitimização pela violência , entre outros. A condição social e cultural produzida por esse conjunto de fatores superpostos “ratificava” por assim dizer os estereótipos que alimentavam os preconceitos e “absolvia” os brancos dos infortúnios que eles mesmos causavam. Um diagnóstico sombrio, sem a menor dúvida. Mas a análise de Myrdal não desembocava num pessimismo paralisante graças ao outro polo da tensão conceitual a que me referi: a cultura política liberal e o regime democrático americanos. Um ponto fundamental da cultura político é, com efeito, a crença amplamente compartilhada em que todos os indivíduos são portadores de certos direitos básicos em virtude tão somente de sua condição humana. O regime democrático, por mais afetado que estivesse em seu funcionamento por preconcepções e interesses racistas, não era imune a questionamentos de legitimidade fundados na invocação dos valores de justiça, igualdade e liberdade que presidiram à própria fundação do país. A viabilidade e a pujança da nação dependiam em alguma medida desse parâmetro; pretender substituí-lo ou permitir que ele se mantivesse indefinidamente contaminado por uma concepção racialista da sociedade equivalia a comprometer seriamente seus fundamentos. Tendo identificado essa fenda simbólica, a estratégia sugerida por Myrdal era obter a maior publicidade para a causa negra. Nos anos 1950, o acerto de tais seria evidenciado pelo avanço do movimento dos direitos civis, a liderança de Martin Luther King e a clara tomada de posição da Suprema Corte contra a segregação. Longe de mim pretender que tudo isso tenha acontecido apenas em decorrência do American Dilemma. O trabalho de Myrdal levou em conta uma agenda política em certa medida já articulada por líderes negros, mas reagiu sobre ela, reforçando-a e multiplicando sua ressonância na opinião pública e na esfera política nacional.

sábado, 6 de novembro de 2021

O que fazem as elites brasileiras? Nada?!?! - Bolivar Lamounier e Paulo Roberto de Almeida

 Transcrevo, em primeiro lugar, postagem de Bolivar Lamounier, que trata de questões sobre as quais também venho me ocupando há um bocado de tempo. Depois, coloco minha reação a seus argumentos, tambem objeto de um longo comentário meu em sua postagem original.

Com a palavra, Bolivar Lamounier:

A INSUFICIÊNCIA DAS ELITES

Bolívar Lamounier -  06.11.2021

Faz tempo que venho martelando a tecla dos riscos a que o Brasil está exposto enquanto não conseguir pelo menos dobrar sua renda média anual por habitante, que é atualmente cerca de 12 mil dólares. Não conseguir pelo menos dobrá-la é o que se chama estar aprisionado na “armadilha do baixo crescimento”. 

Ontem fiz referência a um excelente livro publicado em 1994 pela Harvard Business School Press, intitulado THE WORLD IN 2020 – POWER, CULTURE AND PROSPERITY. Nas trezentas páginas do livro, há uma única referência ao Brasil e à Argentina. Transcrevo-a: “It is quite possible that a country  like  Argentina   will recover some of the ground that it has lost this century. It will not  regain the living standards which, in relative terms,  it had a hundred years ago – it is not going to be as rich as Northern Europe or the US – but it could enjoy a period of considerable prosperity, if only it can sustain a modicum of political stability. From a brutal economic point of view, it does not need to  achieve a full-western style democracy, but what it does need is competente and corruption-free administration. Brazil, with its even greater resources , could have an  extraordinary impact on the continent, given a decade of such government”.  

Observem que o livro aponta para um futuro que NÃO aconteceu, nem na Argentina nem no Brasil, no referido período de 26 anos. Tem tudo a ver com a tese que tenho aqui martelado: a de que, nos próximos 20 anos, não temos condições de superar o  ritmo medíocre de crescimento econômico e pior ainda de redistribuição da renda e de avanço educacional, científico e tecnológico  em que afundamos (a “armadilha do baixo crescimento”). Com o sistema político disfuncional, instável e corrupto de que dispomos, vamos seguir patinando no mesmo lugar, só que pior, com mais violência e araçatubas muito mais numerosas.  

Onde devemos buscar as causas dessa tragédia? O subtítulo do livro dá uma boa indicação: “power, culture and prosperity”, ou seja, a prosperity depende de dois grandes grupos de fatores, o poder e a cultura. 

Acontece que “poder” não é uma categoria que se reduza só à máquina de Estado, a forças militares e policiais e a boçais de todo tipo controlando as instituições legislativas, judiciais e administrativas. Ter eleições e através delas escolher os titulares de tais instituições é fundamental, mas não suficiente, diria mesmo totalmente insuficiente, se, subjacente às instituições, não tivermos  elites (no sentido neutro do termo, obviamente) que as ancorem, balizem e inspirem. No Brasil, o termo elite designa alguns milhares de indivíduos que se deram bem na vida particular, mas que não sentem responsabilidade alguma em relação ao país, que não interagem entre si em busca de soluções e, principalmente, que não falam. Um país no qual as elites não falam, não se manifestam, não expressam seus pontos de vista e preferências, é uma anedota de mau gosto.   

Em qualquer país, é possível distinguir três camadas sociais bem nítidas. A mais alta em renda e escolaridade (cerca de 20%) é aquela que, se quiser, compreenderá os problemas e poderá ajudar a resolvê-los. Poderá ajudar a melhorar a qualidade da vida pública. Fincará o pé no combate á corrupção. Na camada intermediária (digamos, 40%), não temos propriamente ricos, mas temos resource owners, quero dizer, pessoas que  percebem para que lado o vento está soprando, e podem recorrer a seus recursos (capacidade de ler um jornal, tempo disponível para conversar sobre questões públicas, reunir-se com amigos e vizinhos etc; tudo isso é “recurso” que pode ser utilizado para aumentar o alcance dos posicionamentos tomados pela camada superior. Os 40% mais baixos em renda e escolaridade são pobres demais para ajudar. Pedir a um pobre-diabo que sai de casa às 5:30 para o trabalho e chega de volta às 20:00, exausto, que contribua significativamente para melhorar o país, é pura demagogia.

O problema é que, para transformar os percentuais da população e os respectivos  recursos em poder político, é preciso ter cultura. Como já falei em escolaridade, é óbvio que não estou sendo redundante, dizendo a mesma coisa pela segunda vez. Não, cultura é um termo mais amplo, que emprego para designar as áreas de convergência e divergência existentes na sociedade, áreas que precisam ser conhecidas para que as elites falem realmente como elites. Faz trinta anos, mais ou menos, que tento abordar essa questão em meus trabalhos de pesquisa, mas esbarro num obstáculo invencível: a ignorância dos que poderiam patrociná-los. Ignorância sem fim. São indivíduos e entidades que não conseguem compreender estas duas afirmações elementares: 1) as instituições formais de governo não pairam no ar, acima de nossas cabeças, e nem conseguem agir como deveriam, sem a “cultura”, vale dizer, um balizamento mais amplo que as oriente; 2) para conhecer o substrato das instituições, ou seja, o que de fato as sustenta e baliza, é preciso estudar o assunto em profundidade, com  metodologias apropriadas. Bate-boca é muito bom para botequim, mas, para ajudar o país a se livrar da “armadilha do baixo crescimento”, não serve.”

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Agora, este escrevinhador:

Bolívar Lamounier trata aqui de um tema com o qual há muito tempo também estou muito preocupado e que ele resume, provavelmente de forma intencional, numa frase: “as elites não falam”. 

Eureka! 

Tenho falado muito dessas elites medíocres, que geralmente exibem suas posses (alguns de seus membros são mais discretos), mas o que choca, realmente, é o fato que elas raramente falam sobre o Brasil, sobre o futuro do país que também é delas (e como), ou pelo menos deveriam se ocupar dessa nação que tem, sim, muitas elites, mas que não parecem ter nenhuma preocupação com o estado presente e a evolução futura de uma nação que parece perdida no tempo e no espaço (e isso precede o desgoverno do capitão). 

Não tem nenhum líder das elites que se aventuraria a fazer um chamamento aos seus colegas para debater sobre os impasses atuais e os desafios futuros do Brasil? 

À diferença da Revolução francesa, que em 1789 começou com a convocação dos États Généraux — entre eles o Tiers État, aquele que não era “nada”, segundo o Abade Sieyès, mas que queria ser tudo — e a apresentação dos Cahiers de Doléances (cadernos de reclamações, de pedidos e de demandas). No nosso caso, o Tiers État está mais próximo da segunda categoria identificada por Bolivar Lamounier, e o que se busca é realmente la crème de la crème de la société, nossos grandes burgueses, capitalistas e banqueiros, para que eles possam, por uma vez, se ocupar do futuro do país no qual obtêm fabulosos lucros e subsídios estatais, proteção e apoio dos bancos públicos. 

Já nem me refiro ao alto mandarinato do serviço público, à aristocracia da magistratura, que possuem mais privilégios do que os nobres do Ancien Régime, pois estes não estão interessados em nada, a não ser em preservar e se possível aumentar suas mordomias e prebendas.  

Creio que o que falta ao Brasil é um partido das elites, ou pelo menos um clube de reflexões, onde elas possam, entre charutos e champagne, discutir um pouco sobre o destino das elites. Eu e Bolivar também pertencemos às elites, mas se trata apenas de uma elite intelectual, pois não teriamos dinheiro para frequentar esses lugares exclusivos das verdadeiras elites.

Seria pedir muito que elas pensassem um pouco no país e falassem entre si sobre o que fazer com esse Prometeu acorrentado, esse Gulliver amarrado pelo liliputianos do estamento parlamentar?

Pela sugestão:

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 6/11/2021


sábado, 12 de junho de 2021

Cartas aos altos comandantes das FFAA - Paulo Roberto de Almeida, Bolivar Lamounier

 Bolivar Lamounier manda um RECADO CLARO, abaixo, aos oficiais de alta patente das FFAA: contenham o capitão Desvairado, o incompetente chefe de estado, o inepto comandante das FFAA antes que seja TARDE DEMAIS: vcs sabem exatamente o que podem esperar, e que eu, PRA, vou dizer com todas as letras.

O capitão se prepara para criar confusão, na perspectiva de uma derrota eleitoral por voto eletrônico, e se aproveitará disso para lançar suas tropas nas ruas, não só seus milicianos armados (que serão poucos, mas muito agressivos), mas sobretudo corpos esparsos de PMs, que são em número muito maior do que os seus recrutas mal treinados e incapazes de confrontar uma mini-guerra civil.

É isso que o capitão programa, planeja, aspira, e até agora preparou com a conivência e a indiferença de vcs, militares amestrados e beneficiados por inúmeras benesses corporativas (algumas até indecorosas no quadro de recessão que vive o país).

A responsabilidade de deter o alucinado é de vcs, pois foram vcs que ajudaram, impeliram, quiseram esse louco corrupto no poder. Vcs foram os aprendizes de feiticeiro que jogaram o Brasil num turbilhão divisionista e de enfrentamentos que podem se tornar violentos. Vcs detêm a responsabilidade sobre a estabilidade e a manutenção da democracia no país, a garantia das liberdades, como o próprio genocida declarou várias vezes (equivocadamente). 

Sejam responsáveis, ou se tornarão CÚMPLICES de um DESASTRE (aliás, já são, com prováveis 600 MIL MORTOS!

Paulo Roberto de Almeida

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MENSAGEM ABERTA ÀS  FORÇAS ARMADAS DO BRASIL

Excelentíssimos Senhores Oficiais-Generais da Marinha, do Exército e da Aeronáutica

Dirijo-me respeitosamente a Vossas Excelências para expressar as preocupações de um cidadão com o quadro político que, dia após dia, se vem delineando  em nosso país.

Indo direto ao ponto, hoje, 12 de junho de 2021, em São Paulo, assistimos perplexos a mais uma arruaça encenada pelo Exmo. Sr. Presidente da República, Jair Messias Bolsonaro.

Não me parece necessário, mas permito-me ressaltar que  tais manifestações vão do grotesco ao extremamente arriscado, violando de maneira flagrante as disposições constitucionais e as expectativas que balizam o processo sucessório e o exercício do poder presidencial. 

O que, inicialmente, podia ser denominado um “estelionato eleitoral” vem  rapidamente se convertendo em algo muito mais grave.  Os brasileiros não podem se enganar ou ser enganados.  O plano posto em prática pelo Sr. Bolsonaro  não permite outra interpretação. Começou pela desestabilização das instituições, pouco lhe importando, ao que tudo indica, o fato de estarmos atravessando uma pandemia que já ceifou a vida de quase quinhentos mil brasileiros. Prosseguiu pelas já mencionadas arruaças, cujo objetivo é, evidentemente, formar aglomerações e suscitar oportunidades de convulsão social. Da convulsão, como sabemos, passa-se facilmente a conflitos de envergadura crescente, ao recurso a armas por parte tanto de militares como de civis. No limite – e queira Deus que não esteja ainda à vista – o espectro da guerra civil e de abalos na integridade federativa e territorial de nossa Pátria. 

Senhores Oficiais:

O Brasil é um país cheio de problemas, mas não é uma república bananeira. Nunca fomos e jamais seremos uma republiqueta. Somos um país orgulhoso de  sua História e uma Nação orgulhosa de sua identidade.

Vossas Excelências, o Legislativo, o Judiciário e todos nós, cidadãos, precisamos estar atentos aos desmandos que se sucedem, mantendo-nos preparados para detê-los antes que seja tarde demais. 

Cada nova arruaça que o Sr. Bolsonaro e seus fanáticos perpetrarem precisa receber a única resposta cabível: Parem. O padrão de conduta que os senhores tentam difundir nada tem a ver com os anseios e ideais dos brasileiros.  

Polarização política estúpida e desordens induzidas de cima para baixo: não é disso que precisamos. Isso não é o Brasil. Precisamos, isto sim, de superar a estagnação econômica para a qual fomos arrastados há cerca de vinte anos.  De educar os milhões de analfabetos funcionais que compõem a maioria de nossa população. De recuperar a seriedade e a legitimidade das instituições políticas. De deter a marcha ascendente do crime organizado. De estimular na juventude o gosto pelo estudo, a motivação para o trabalho e uma repulsa  contínua e enérgica ao populismo. De recuperar o respeito internacional por nosso país.

São Paulo, 12.06.21

Bolívar Lamounier

Cidadão


sábado, 18 de maio de 2019

O patrimonialismo, antigo e moderno - Paulo R. Almeida, Bolivar Lamounier

Bolivar Lamounier retraça a trajetória prática do patrimonialismo brasileiro, cuja primeira reconstrução teórica-histórica foi feita por Raymundo Faoro, por ironia da História um dos fundadores do PT, justamente o partido que transformou o patrimonialismo parcialmente modernizado na era Vargas em um patrimonialismo gangsterista. Estou seguro que se vivo fosse ele teria se alinhado com Hélio Bicudo, outro fundador do PT, na apresentação do pedido de impeachment contra a organização criminosa em se transformou o PT.
Paulo Roberto de Almeida 

A política brasileira entre dois passados

Somos um país sem elites autônomas, sem classe média e sem partidos políticos

BOLÍVAR LAMOUNIER*, O Estado de S.Paulo
18 de maio de 2019 | 05h00

Em 1958, quando publicou Os Donos do Poder (Editora Globo), mestre Raymundo Faoro introduziu o conceito de patrimonialismo, estabelecendo por meio dele a mais clássica das clássicas interpretações da História brasileira.
Mas, parafraseando Ortega y Gasset, podemos dizer que toda grande obra é ela mesma e sua circunstância. Nós, leitores preguiçosos, lemos o título e deixamos de lado o subtítulo do livro. Neste – Formação do Patronato Político Brasileiro – Faoro esclareceu melhor o sentido de seu trabalho. O Estado patrimonialista deitava raízes na era medieval portuguesa, mas Faoro quis manter a dignidade do substantivo formação. Nós, imbuídos da ideologia desenvolvimentista que à época emergia com todo o vigor, não quisemos perceber o paradoxo que o grande historiador gaúcho ali deixara, de caso pensado. Otimistas, só queríamos pensar no futuro e acreditávamos piamente que a industrialização liquidaria todos os resquícios do passado colonial. Portanto, o próprio patrimonialismo haveria de fenecer naturalmente. Morreria de morte morrida logo que as chaminés das fábricas de São Paulo enchessem o céu com sua espessa fumaça. Não nos passou pela cabeça que o Estado patrimonialista era uma estrutura poderosa, capaz de resistir a pressões contrárias à sua índole.
De nossa incapacidade de perceber a resiliência do patrimonialismo decorreram vários equívocos, o mais óbvio dos quais é que ele simplesmente se recusou a morrer. Está aí, perceptível a olho nu, agigantado e cada vez mais forte. Seu hábitat natural é, obviamente, Brasília, onde, sem dificuldade alguma, seus tentáculos sufocam e interligam os três Poderes. Estado patrimonialista, uma estrutura que vive em função de si mesma, que persegue os objetivos que ela mesmo escolhe, e o faz distribuindo o grosso da riqueza e as melhores oportunidades de ganho entre os “amigos do rei”. É certo que admite novatos, mas por cooptação, não como protagonistas autônomos, como bem explicou Simon Schwartzman no também clássico Bases do Autoritarismo Brasileiro(Editora da Unicamp).
Do equívoco que acima enunciei no atacado, penso que três outros merecem ser abordados no varejo: somos um país sem elites autônomas, sem classe média e sem partidos políticos.
Teríamos elites autônomas se as tivéssemos fora do Estado, capazes de balizar as ações do núcleo estatal, impelindo-o a levar mais em conta o que, para abreviar, chamarei de bem comum. Os poderosos “de dentro do Estado” obviamente não são elites no sentido que acabo de definir; são o próprio Estado, os amigos do rei, vale dizer, de si mesmos. Os que não se deixam balizar por nenhum poder externo, pois detêm em caráter privativo a função de balizar a sociedade, de fixar e aplicar as normas, com a parcialidade que lhes parece adequada em relação a qualquer assunto e a cada conjuntura.
Do ponto de vista histórico, como aconteceu isso? Ora, sabemos todos que a grande atividade econômica do Brasil colonial era a lavoura canavieira. O consórcio colonial luso-brasileiro deteve o monopólio mundial do produto até meados do século 17. Começou a perdê-lo com a invasão holandesa, iniciada em 1624. Expulsos, entre 1654 e 1661, os holandeses pegaram seus volumosos capitais, a técnica dos engenhos e o respaldo da Holanda, então a rainha dos mares, e foram para a América Central, de onde, num abrir e fechar de olhos, destruíram a hegemonia luso-brasileira. Rápida no gatilho, a camada dominante da lavoura açucareira percebeu que dali em diante sua sobrevivência dependeria mais da política que da economia. E pulou para dentro do Estado, onde até hoje se encontra.
Algo semelhante, mas em menor escala, ocorreu com a extração do ouro e dos diamantes em Minas Gerais, mas o caso verdadeiramente instrutivo é o da cafeicultura paulista. Tendo viabilizado a passagem do trabalho escravo ao assalariado, ela também deteve por algum tempo um quase monopólio do mercado mundial do produto. Não menos importante, como esclareceu Celso Furtado, ela permitiu o surgimento de uma elite muito mais qualificada, capaz de pensar grande e de operar com tirocínio no mercado internacional. Mas a História se repetiu, embora por outros caminhos. A superprodução e a competição internacional não tardaram a aparecer e a brilhante elite cafeicultora o que fez? Reuniu-se em Taubaté, em 1906, e pleiteou também seu lugarzinho no colo do Estado. Nos primórdios da industrialização, a elite nem precisou pleitear nada, pois já nasceu aconchegada na estrutura corporativista montada por Getúlio Vargas, encaixando-se no sindicalismo de empregadores.
Demonstrar que tampouco dispomos de uma classe média capaz de sobreviver com os rendimentos da pequena empresa ou de empregos de boa qualidade é uma tarefa bem mais simples. Poucos anos atrás trombeteamos muito o surgimento de uma “nova classe média”, não nos dando conta de que toda série numérica pode ser subdividida em quantas subséries quisermos, e uma delas será “média”. Uma pena que os limites mínimo e máximo de tal subsérie eram constrangedoramente baixos. Nada que ver com uma classe média numerosa, robusta e autônoma, e é por isso, evidentemente, que temos uma das piores distribuições de renda do mundo: nossa “classe média” é um conjunto vazio entre a pífia minoria que maneja o Estado patrimonialista e a massa de miseráveis à qual tal Estado nem uma escolarização decente proporciona.
E os partidos políticos? Ora, um partido político digno de tal designação tem como requisito fundamental a capacidade de se superpor a interesses demasiado estreitos, balizando-os no sentido do bem comum. Os nossos são incapazes de fazer isso porque no fundo eles não passam disto: são meros grupos de interesse, protagonistas do corporativismo desatinado a que nosso país chegou.
* BOLÍVAR LAMOUNIER É CIENTISTA POLÍTICO, SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS; É AUTOR DO LIVRO "DE ONDE, PARA ONDE – MEMÓRIAS" (EDITORA GLOBAL)

PS.: Onde Bolivar Lamounier se refere à América Central, no caso dos judeus empenhados na cultura do açucar, deve se ler, preferencialmente, Caribe.

segunda-feira, 8 de abril de 2019

Bolivar Lamounier sobre a falsa dicotomia esquerda-direita ou o nazismo ser de esquerda (OESP)

01:13:08 | 08/04/2019 | Economia | O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto | BR

Um feio escorregão de Jair Bolsonaro

    BOLÍVAR LAMONIER
    Ao qualificar o nazismo como um regime "de esquerda", o presidente Jair Bolsonarorompeu uma represa enorme, deixando um mar de sandices escorrer pelas redes sociais. Nas centenas de mensagens que li, não encontrei uma referência sequer ao que me parece ser o ponto crucial da discussão: a obsolescência da dicotomia esquerda x direita.
    Ninguém contesta que lá atrás, no século 19, tal dicotomia tinha substância, e em alguns países a conservou durante a primeira metade do século 20. A Guerra Civil Espanhola, por exemplo, contrapôs comunistas e anarquistas (nem sempre solidários entre si) a uma direita rombuda, formada por uma burguesia resistente a toda veleidade de reduzir desigualdades, fazendeiros que adorariam viver na Idade Média e, não menos importante, um catolicismo que se comprazia em estender seu manto sobre toda aquela teia de iniquidades. Ou seja, havia efetivamente uma "esquerda" - os que recorriam à violência no afa de quebrar a espinha dorsal daquela sociedade - e uma "direita", os setores acima mencionados, para os quais o status quo era legítimo, sacrossanto e destinado a perdurar até o fim dos tempos.
    Os regimes totalitários que se constituíram entre as duas grandes guerras - o nazismo na Alemanha, o comunismo na URSS e o fascismo na Itália foram precisamente a linha divisória a partir da qual a dicotomia esquerda x direita começou a perder o sentido que antes tivera. Se fizermos uma enquete entre historiadores, sociólogos, etc., pelo mundo afora, constataremos sem dificuldade que nove em cada dez classificam o nazismo como direita e o comunismo como esquerda - e reconheço que aqueles nove ainda têm um naco de razão.
    Sabemos que os regimes comunistas se serviram do marxismo como base teórica. E que o fizeram com um cinismo insuperável; na prática, o chamado "socialismo real" assentava-se numa combinação de partido único, monopólio dos meios de comunicação, polícia secreta, culto à personalidade e numa repetição ritual da ideologia, entendida como a busca do paraíso na Terra, a "sociedade sem classes". Mas em abstrato - nas alturas da filosofia -, é certo que o marxismo se proclama humanista e igualitário. Não legitima nem tenta perenizar desigualdades sociais e muito menos raciais. O nazismo nada tem de humanitário ou igualitário: toma as desigualdades sociais como um dado da realidade e vai muito mais longe, visto que postula uma desigualdade natural de raças e adotou explicitamente a noção "eugênica" do melhoramento das raças superiores - da "raça ariana", entenda-se - e da exterminação da "raça judia".
    Passemos, agora, ao que chamei de obsolescência da dicotomia esquerda x direita. Nas alturas da filosofia e no cinismo do mero discurso político, é óbvio que os esquerdistas continuam a professar um ideário de igualdade. Proclamam-se mais sensíveis que o resto da humanidade ao sofrimento dos destituídos (daí a atração que exercem sobre a corporação artística), mais competentes e decididos a encetar ações conducentes a uma sociedade menos desigual e, com certo contorcionismo, ainda se apresentam como os detentores monopolistas da estrada real que levará ao paraíso terrestre. Ou seja, cultivam, ainda, o mito da revolução total.
    Mas há dois pequenos senões. Na vida política real não se requer nenhum esforço para perceber que os termos "esquerda" e "direita" estão reduzidos a meros totens tribais. Se me declaro "de esquerda", fica entendido que meu adversário político é automaticamente de "direita". Se o partido ao qual me oponho apoia determinada tese, eu a rejeito, pois ela estará necessariamente ligada ao totem da tribo inimiga. No Brasil é notório que a grande maioria dos políticos não serve a objetivos, eles se servem deles e os enquadram em sua obtusidade totêmica para diluir interesses rigorosamente corporativistas.
    O segundo senão é ainda mais importante. Como antes ressaltei, "esquerdistas" são os que se especializam em professar ideais humanitários e igualitários. Em termos abstratos, isso é correto. Mas, atenção, trata-se, na melhor das hipóteses, de um enunciado no plano do desejo, não de programas concretos de governo e muito menos aos efeitos observáveis da aplicação de determinado programa. Aspirações, não consequências objetivas. No terreno prático, as políticas de esquerda caracterizam-se sobretudo por um distributivismo ingênuo, por uma sesquipedal incompetência e não raro pela corrupção no manejo dos recursos públicos, por afugentar investimentos, ou seja, em síntese, pela irresponsabilidade fiscal e pela leniência com a inflação, tolerando ou assumindo ativamente políticas cujas consequências levam a resultados contrários aos proclamados como desejáveis, piorando as condições de vida dos mais pobres.
    Segue-se que a distinção realmente importante não é entre esquerda e direita, mas entre, de um lado, objetivos proclamados, subjetivos ou meramente discursivos e, do outro, consequências práticas, objetivas e previsíveis. De um lado - na melhor das hipóteses -, a crença em "valores absolutos", lembrando aqui a teoria ética de Max Weber; do outro, uma "ética da responsabilidade", vale dizer, uma visão política que de antemão sopesa objetivos e consequências prováveis.
    Nessa ótica, faz sentido afirmar que há muito mais consenso que dissenso na vida pública brasileira atual. O que queremos, fundamentalmente, é retomar o crescimento econômico em bases sustentáveis, com estabilidade monetária; atrair grandes investimentos para a infraestrutura; revolucionar organizacional e pedagogicamente a educação. Se uma concepção mais convergente não se impuser rapidamente sobre os totens tribais que se digladiam em Brasília, daqui a 20 anos o Brasil não será um país para almas frágeis.
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    Há muito mais consenso do que dissenso na atual vida pública brasileira
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    SÓCIO-DIRETOR DA AUGURIUM CONSULTORIA, É MEMBRO DAS ACADEMIAS PAULISTA DE LETRAS E BRASILEIRA DE CIÊNCIAS E AUTOR DO LIVRO 'DE ONDE, PARA ONDE - MEMÓRIAS' (SÃO PAULO, EDITORA GLOBAL)

    segunda-feira, 26 de fevereiro de 2018

    Reformas no Brasil, pela razao ou pela violencia - Bolivar Lamounier

    O instinto nos salva

    *Bolívar Lamounier
    O Estado de S.Paulo, 25/02/2018

    A ideia é aterradora e absurda, mas, no momento, tudo indica que o Brasil está perdendo a capacidade de equacionar seus problemas de maneira racional e civilizada, pela via da política. Nessa marcha, só o instinto de sobrevivência nos salvará. 
    No falatório sobre a intervenção, sobre as candidaturas presidenciais, sobre o funcionamento das instituições, o tom predominante é um desânimo furibundo, e até mais que isso, uma vontade meio doida de achar uma solução fácil, rápida e definitiva, ainda que o preço seja a quebra da ordem civil. No limite, é como se todos quisessem que metade (sua metade) da população matasse a outra, presumindo que a metade sobrante se dedicaria sinceramente à realização dos valores que elegeu como os mais altos. Isso vem por todos os lados, não é privilégio de nenhum partido ou grupo ideológico. 
    E o pior, infelizmente, é que por trás dessa fumaça realmente há muito fogo. Tal desorientação não chega a surpreender, pois estamos mal e mal saindo da pior recessão de nossa História e tomando consciência da metástase de corrupção que se difundiu por quase todo o sistema institucional do País. Dispenso-me de elaborar este ponto, limitando-me a observar que o cartel das empreiteiras botou no bolso praticamente toda a estrutura partidária de que dispúnhamos: quatro ou cinco organizações com algum potencial e umas trinta obviamente inúteis. Hoje vemos esvair-se até aquele elementar sentimento de lealdade sem o qual a vida interna de um partido se torna inviável. Na mais alta Corte de Justiça do País, salta aos olhos que alguns juízes trabalham sorrateiramente para livrar o sr. Luiz Inácio Lula da Silva, um corrupto notório, já sentenciado a 12 anos e um mês de prisão. No Senado e na Câmara, só quem mantém as estatísticas em dia sabe quantos parlamentares estão indiciados, acusados ou já na condição de réus. 
    A intervenção federal no sistema de segurança do Rio de Janeiro pôs em alto-relevo a questão da corrupção nos corpos militares e policiais, que inclui a entrega de armas potentes ao narcotráfico e à bandidagem em geral. Noves fora, então, a ressalva que se há de fazer diz respeito à competência e à seriedade da equipe econômica, da equipe liderada pelo juiz Sergio Moro e pela Polícia Federal, graças às quais o País não descarrilou por completo. 
    No culto da irracionalidade, a esquerda ganha por duas cabeças. Na questão da intervenção no Rio de Janeiro, por exemplo, ela aposta no fracasso com base em seus tradicionais cálculos eleitorais, ou num requintado cinismo, “esquecendo”, por exemplo, no tocante à concessão de mandados coletivos, as posições que a ex-presidente Dilma Rousseff defendeu em 2016. Não só a esquerda, mas ampla parcela do Congresso recusou-se a aprovar a reforma da Previdência, embora consciente da precariedade fiscal em que nos encontramos e de que o sistema brasileiro de seguridade é campeão mundial em transferir renda dos pobres para os ricos. 
    Não me sinto no direito de aborrecer os leitores me estendendo sobre a deterioração em que se encontra nossa capacidade de conduzir racional e civilizadamente as operações de governo, mas há uma questão mais ampla, que transcende todas as já mencionadas, para a qual me vejo obrigado a chamar a atenção. Refiro-me ao médio prazo, ou seja, ao futuro de nosso país dentro de uma ou duas décadas. Nessa referência de tempo, se não recuperarmos a capacidade de raciocinar e colaborar, realmente, só o instinto de sobrevivência nos salva. 
    O quadro que me esforcei por esboçar é em si mesmo sinistro, mas é brincadeira de criança se o colocarmos num horizonte de 20 anos. Já me referi outras vezes a esse ponto e temo ter de voltar a ele muitas vezes nos próximos meses, ainda mais em se tratando de um ano eleitoral. A incapacidade da política acarreta uma progressiva liquefação do próprio Estado. O País perde sua stateness, ou seja, a presença efetiva da máquina de governo. Ninguém ignora que diversas áreas do Rio de Janeiro já há muito tempo se tornaram inacessíveis à autoridade pública. O que muitos talvez não saibam é que os Correios já não entregam correspondência em quase metade dos endereços da Cidade Maravilhosa. Refiro-me a ela porque é lá que a perda da “estatalidade” se tornou mais perceptível, mas em maior ou menor grau o processo se manifesta no País inteiro. Com um fator agravante: temos agora um vizinho, a Venezuela, onde o Estado atingiu um estágio avançado de putrefação, forçando centenas de milhares de cidadãos a buscarem refúgio em Roraima. 
    Com a contração causada pela recessão engendrada pelo lulopetismo, nossa renda anual por habitante deve ser atualmente metade da correspondente à Grécia e bem inferior à de Portugal. Se, recuperando a economia, lograrmos crescer 3% ao ano, o que não é trivial, precisaremos de mais de 20 anos para alcançar os dois países citados, e lá chegaremos com uma distribuição de renda muito pior, com uma situação educacional claramente inferior, com as condições de saneamento que conhecemos e possivelmente com índices ainda muito mais altos de violência. Isso significa que o debate público dos últimos anos nem sequer arranhou a superfície dos verdadeiros problemas, que são a velocidade do crescimento e a profundidade das reformas de que necessitamos. 
    Escusado dizer que não me estou referindo à antiga ladainha do “governo forte”, pedra de toque da retórica fascista, que por aqui vicejou vigorosamente à época da ditadura getulista. Refiro-me ao óbvio: o imperativo de quebrar a resistência dos grupos corporativos e encetar um esforço reformista muito maior. As reformas virão, de um jeito ou de outro: pelo caminho mais ou menos civilizado da política ou por sucessivas ondas de anarquia e violência. 

    *Cientista político, sócio-diretor da Augurium Consultoria, é autor do livro ‘Liberais e Antiliberais’ (Companhia das Letras, 2016)

    quinta-feira, 21 de dezembro de 2017

    Bolivar Lamounier: a (nao)reforma do sistema politico brasileiro - Bolivar Lamounier, Paulo Roberto de Almeida

    Em 2005, eu fazia uma resenha deste livro de Bolívar Lamounier, abaixo transcrita:
    1482. “Tudo o que você sempre quis saber sobre a política brasileira...”, Brasília, 14 out. 2005, 2 p. Resenha de Bolivar Lamounier: Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira (São Paulo: Augurium Editora, 2005, 320 p.).  
     

    Não creio que a situação tenha melhorado desde então, ao contrário, só piorou nestes 12 anos desde que o livro foi publicado e eu fiz essa resenha. O sistema se tornou mais fragmentado, mais corrupto, mais bandidos de colarinho branco ainda escapam de uma justa punição, aliás com a colaboração ativa de membros dos cortes inferiores (ops) que teimam em não julgar os maiores bandidos da política brasileira.
    Temos alguma réstia de esperança?
    Não creio, pelo menos não imediatamente. Mas teimamos em resistir e continuamos na nossa ação para limpar o sistema político. Eu pelo menos faço o meu dever de denunciar, de acusar, de informar, de refletir, e não hesito em assinar embaixo do que escrevo.
    Bom 2018 a todos.
    Paulo Roberto de Almeida 
    Brasília, 21 de dezembro de 2017



    Tudo o que você sempre quis saber sobre a política brasileira...

    Bolivar Lamounier:
    Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira
    São Paulo: Augurium Editora, 2005, 320 p.; R$ 49,00

    Paulo Roberto de Almeida
    14/10/2005

                ...e nunca teve a quem perguntar. Agora já tem: é o novo “Lamounier”, cobrindo desta vez (quase) dois séculos de história política. Mas atenção: o livro não é para principiantes, nem do lado teórico, nem do lado prático, isto é, dos que são chamados a nos representar no parlamento e no executivo. Estes, como evidenciado nos casos de “fundos não contabilizados”, acabam construindo um universo à parte dos que pagam impostos, que vêem os recursos auferidos serem dilapidados pelos poucos que, segundo a descrição apta de Milton Friedman, “são pagos para gastar o dinheiro dos outros”.
                Não se trata de uma simples “introdução” à história política brasileira, uma vez que o livro exige dos leitores um conhecimento mínimo dessa história, ao mesmo tempo em que certa familiaridade com conceitos centrais da ciência política. Tampouco se trata de um “manual” para a reforma política e eleitoral à intenção dos que nos governam, pois eles dificilmente se deixariam guiar por critérios de racionalidade estrita do sistema partidário e representativo, preferindo cuidar dos seus interesses, acima de quaisquer considerações éticas. Como diz o autor na introdução: “O crafting institucional da democracia brasileira ostenta resultados contraditórios: organizamos bem a esfera eleitoral e criamos uma ética para o voto, mas não organizamos nem criamos uma ética para a esfera dos partidos e do parlamento”. Difícil, assim, que os governantes sigam as recomendações da terceira parte, relativa, justamente, à reforma política, para introduzir um sistema de governo, uma organização partidária e um sistema eleitoral que correspondam às necessidades da nação, contra seus próprios interesses, enquanto classe organizada para o assalto (é o caso de se dizer) e a manutenção do poder.
                As duas primeiras partes, em todo caso, constituem a mais completa análise de que se tem notícia na literatura sobre a evolução da política brasileira, não apenas pelo lado dos “episódios” políticos, mas também pelo lado da teorização sobre os regimes políticos, os sistemas partidários, as relações civil-militares e as “lições” de cada período. Um quadro analítico resume a evolução do sistema político de 1822 a 2005: cada um dos regimes – Império, Primeira República, Revolução de 1930, Estado Novo, República de 1946 e o regime militar – terminou em grave conflito político, geralmente sob a forma de golpes militares, com o apoio das classes médias. O regime militar, na verdade, se esvaiu numa “prolongada peleja política e eleitoral”, ao cabo da qual as oposições coligadas viabilizaram o retorno ao governo civil. O novo regime democrático, obviamente, ainda não acabou, mas se supõe que seu destino seja menos dramático do que a meia dúzia de sistemas político-partidários que o precederam.
                Lamounier examina a historiografia convencional – propondo sua revisão – e a literatura de cada época. Duas formas de reducionismo político são identificadas no protofascismo (“mescla de positivismo, nacionalismo e endeusamento do Estado”) e no marxismo (“sobretudo na versão stalinista da Terceira Internacional”), intrinsecamente antiliberais e antiparlamentares, ambos avessos à consideração do sistema político enquanto esfera autônoma. A análise se estende ainda à construção e funcionamento dos sistemas partidários e representativos, sendo evidentes o crescimento paulatino do corpo eleitoral, a ampliação do sufrágio e a fragmentação gradual do sistema partidário.
    Um texto de Hegel sobre a Inglaterra de 1830 é ironicamente recrutado para explicar o que é um “curral eleitoral”, prática aliás bem viva no Brasil moderno, a julgar pela formação de um exército contemporâneo de assistidos por “mensalinhos” oficiais. A despeito disso, a competição aumentou, mas nem sempre foi assim: Rodrigues Alves (1918) e Washington Luís (1926), por exemplo, conquistaram a suprema magistratura com maiorias “albanesas” superiores a 98% dos votos válidos, ainda que com cerca de 2% de votantes sobre a população total (hoje a proporção de eleitores é superior a 60%). “Lula lá”, em 2002, foi “a batalha que não houve”: a manutenção do sistema político de maiorias frágeis mostra a amplitude das reformas políticas que precisam ser feitas para tornar o Brasil mais conforme à estabilidade já conquistada no terreno econômico. A julgar pelo “presidencialismo de mensalão”, ainda estamos longe do ideal...

    Paulo Roberto de Almeida
    [Brasília, 14 outubro 2005]

    20. “Tudo o que você sempre quis saber sobre a política brasileira...”, Brasília, 14 outubro 2005, 2 p. Resenha de Bolivar Lamounier: Da Independência a Lula: dois séculos de política brasileira (São Paulo: Augurium Editora, 2005, 320 p.). Publicada em Desafios do Desenvolvimento (Brasília: IPEA-PNUD, ano 2, nº 16, novembro 2005, p. 60; link: http://www.ipea.gov.br/desafios/index.php?option=com_content&view=article&id=1791:catid=28&Itemid=23). Divulgado no blog Diplomatizzando (01/02/2012; link: http://diplomatizzando.blogspot.com/2012/01/politica-brasileira-por-um-especialista.html). Relação de Trabalhos nº 1482. Relação de Publicados nº 604.


    sexta-feira, 17 de outubro de 2014

    Ideologos, essas especies exoticas, esses animais predadores - Bolivar Lamounier

    Intelectuais, segundo Paul Johnson, que a eles dedicou um livro inteiro, costumam fazer mais mal do que bem às sociedades. Não necessariamente porque sejam estúpidos, mas é porque se pretendem espertos demais. Estão sempre querendo reformar totalmente a sociedade, segundo princípios abstratos e outros projetos absurdos, que provocam, em alguns casos, prejuízos humanos monumentais. A começar por Lênin, continuando por Mussolini, Hitler e Mao Tsé-tung -- e sem considerar os menores, como Pol Pot, Fidel Castro e os norte-coreanos -- eles são capazes de eliminar milhões da face da Terra.

    Paulo Roberto de Almeida

     

    Tribunos, profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século XX

    tribunos profetas e sacerdotes Tribunos, profetas e sacerdotes: intelectuais e ideologias no século XX
    Em “Tribunos, profetas e sacerdotes” (Companhia das Letras, 2014), Bolívar Lamounier procura repensar a dicotomia entre liberalismo e antiliberalismo, ou democracia liberal e autoritarismo, em todo o transcurso do século XX, pela ótica dos intelectuais. Em abstrato, a resposta para tal escolha metodológica e de tema é perfeitamente justificável. Afinal não faz tanto tempo que Hitler tomou o poder na Alemanha e Stálin encenou os famigerados “julgamentos de Moscou”. Tampouco se requer uma pesquisa alentada para constatar que o século XXI choca ovos de serpente.
    O desafio de como conduzir tal inquirição é de apreender em toda a sua complexidade a conexão entre a atividade reflexiva, as ideologias e a estrutura política, e estreitar analiticamente as relações entre a vida dos pensadores e o marco político real.
    A proposta do autor desdobra-se em dois níveis. No nível individual, ele propõe o estudo da questão através de três papéis característicos que os pensadores costumam assumir na esfera pública: o tribuno, o profeta e o sacerdote. No nível coletivo, três tipos históricos de inserção na vida intelectual: pensadores individuais, intelligentsias e comunidades academicamente centradas. Uma leitura iluminadora em época de recidivas autoritárias e crise da democracia representativa.

    Home » Democracia » “Ainda há muitos ovos de serpente por aí”

    “Ainda há muitos ovos de serpente por aí”

    Para Bolívar Lamounier, é um equívoco pensar que o potencial autoritário do mundo acabou com o fim do século XX. “Ainda há muitos ovos de serpente por aí”, diz o cientista político, autor do livro “Tribunos, profetas e sacerdotes – Intelectuais e ideologias no século XX” (Companhia das Letras, 2014). Na obra, lançada em setembro, Bolívar faz uma contraposição entre democracia e totalitarismo no século passado, por meio do pensamento político dos intelectuais, tanto no Brasil, quanto em outros países, como Rússia, Alemanha e Estados Unidos. O cientista político não acha que a democracia representativa esteja em crise, mas acredita que o Brasil enfrenta um período difícil. “Temos um momento em que as forças políticas majoritárias no país resvalam para ideias antidemocráticas”. Ouça. Acesse também a página especial do Instituto Millenium, “Eleições 2014”.