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quarta-feira, 29 de novembro de 2023

Discurso do Ministro Mauro Vieira por ocasião do Dia do Diplomata, 2023

 

Discurso do Ministro Mauro Vieira por ocasião do Dia do Diplomata - Brasília, 21 de novembro de 2023

Excelentíssimo Senhor Presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva,

Senhora Secretária-geral das Relações Exteriores, embaixadora Maria Laura da Rocha,

Excelência reverendíssima, Arcebispo Giambattista Diquattro, Núncio Apostólico

Senhora Diretora-Geral do Instituto Rio Branco embaixadora Glivânia Maria de Oliveira,

Senhora paraninfa da Turma Mônica de Menezes Campos, embaixadora Maria Elisa Teófilo de Luna,

Senhor orador da Turma Mônica de Menezes Campos, Secretário Essí Rafael Mongenot Leal, 

Colegas do serviço exterior brasileiro,

Formandos, familiares, amigos, senhoras e senhores,

Estendo aos formandos da Turma Mônica de Menezes Campos as mais calorosas boas-vindas a esta cerimônia tão aguardada.

Os novos colegas participaram do concurso de admissão à carreira diplomática em período especialmente desafiador para o Brasil, marcado por graves retrocessos políticos, sociais e econômicos, e pela pandemia de COVID-19.

Felizmente para todos nós, eles perseveraram, e hoje somam-se, oficialmente, a essa grande missão em prol do povo brasileiro que é o serviço exterior.

Permitam-me ilustrar, com uma experiência recente, a complexidade e a urgência dessa missão, bem como a relevância dos servidores que a desempenham.

Há cerca de uma semana, quando a aeronave VC-2, da Força Aérea Brasileira, abriu suas portas no aeroporto de Brasília, o país comoveu-se diante da alegria das crianças que, junto com suas famílias, pisavam, finalmente, o solo brasileiro.

Vinham da Faixa de Gaza, zona conflagrada do Oriente Médio da qual conseguiram partir em segurança após semanas de gestões incansáveis do governo federal, em todos os níveis – desde os funcionários de nossas embaixadas na região, até o próprio Presidente Lula.

Esse foi o décimo voo da Operação Voltando em Paz, por meio da qual foram repatriados 1477 brasileiros e familiares afetados pelo mais recente capítulo do conflito e da ocupação que seguem, há décadas, pendentes de resolução entre Israel e a Palestina.

Essa rápida resposta à crise mobilizou os principais instrumentos da política externa: da diplomacia bilateral, que cultiva o diálogo com todos os países, à diplomacia multilateral, que expressa nossa voz nos foros internacionais; da assistência a brasileiros no exterior à cooperação humanitária; das mais discretas tarefas administrativas a uma pujante diplomacia pública e presidencial.

Todas essas linhas de ação dependem de uma infraestrutura comum: a imprescindível rede de embaixadas, consulados e missões do Brasil no exterior. Essa presença política, logística e, sobretudo, humana no mundo, onde quer que estejam em jogo os interesses nacionais e globais do país, tem importância existencial para o nosso povo.

Senhoras e senhores,

Vinte anos separam a formatura de hoje da cerimônia da Turma Sérgio Vieira Melo, em 2003, a primeira das oito presididas pelo Presidente Lula ao longo de seus dois primeiros mandatos.

Naquela ocasião, assim dirigiu-se Vossa Excelência, Senhor Presidente, aos formandos, e cito: “Vocês ingressaram na carreira diplomática em um momento de mudanças, em que o Brasil se afirma com crescente desenvoltura e confiança perante o mundo. (...) Ao mesmo tempo, é preciso que lutemos por um sistema internacional mais justo”.

Essas foram as bases da política externa que magnificaria a grandeza do Brasil no mundo, a partir de um reencontro consigo mesmo e com nossa região, e redefiniria os termos do debate sobre relações internacionais em nosso país neste primeiro quarto do século XXI.

Seu principal expoente, o chanceler, e caro amigo, Celso Amorim, definiria essa exitosa política como “desassombrada e solidária”, ao dirigir-se aos formandos do seu último ano à frente do Ministério das Relações Exteriores, em 2010.

A passagem do tempo confirmou o acerto dessa visão arrojada. Ensinou, também, que nenhuma conquista é suficiente, nem definitiva: todas requerem atenção contínua ao seu aprofundamento, bem como à sua proteção contra retrocessos.

A afirmação, pelo Presidente Lula, de que “nossa guerra é contra a fome” é tão pertinente hoje quanto o fora em 2003. A ordem internacional segue incapaz de “preservar as gerações vindouras do flagelo da guerra”, objetivo principal da quase octogenária Carta das Nações Unidas.

Países em desenvolvimento são crescentemente pressionados a alinhamentos automáticos. Nossa tradição diplomática é o melhor antídoto contra esse mau caminho. Ao longo de sua história, o Brasil soube navegar soberanamente a política do mundo, tendo como bússola os seus próprios valores, interesses e aspirações, além do direito internacional.

Recordo, aqui, um preceito de grande atualidade do ex-chanceler à época em que tomei posse como diplomata, Antonio Francisco Azeredo da Silveira, sob cuja liderança tive a honra de trabalhar em meu primeiro posto no exterior: o Brasil nunca será satélite de nenhum país ou bloco.

Como tem dito o Presidente Lula, o Brasil está de volta. Voltou, antes de tudo, a si mesmo, retomando o projeto da Constituição Federal de 1988 em sua plenitude. Voltou ao seu entorno geoestratégico na América do Sul e no Atlântico Sul e, a partir dele, ao contato com parceiros de todas as regiões do globo. Voltou, enfim, ao palco dos grandes debates internacionais.

A intensidade dessa correção de rumos evidencia-se nas mais de 200 interações do Presidente da República com autoridades estrangeiras, desde 1º de janeiro até o momento, na forma de participação em cúpulas e em reuniões bilaterais às suas margens; visitas realizadas e recebidas; telefonemas e videoconferências.

A recuperação do universalismo da política externa não poderia ter expressão mais clara.

Assim como o Brasil voltou ao mundo, o mundo também voltou ao Brasil. Nosso país será, nos próximos anos, a capital de foros internacionais da mais alta relevância, como o G20, a COP30 do Clima, o BRICS e a Zona de Paz e de Cooperação do Atlântico Sul, entre vários outros. Seguirá, igualmente, recebendo importantes visitas bilaterais.

Já no próximo mês, assumiremos duas imensas responsabilidades nessa caminhada.

A primeira delas será a assunção da presidência do G20, agrupamento que reúne as maiores economias do mundo e debaterá iniciativas concretas para enfrentar os principais desafios contemporâneos.

A segunda será a formalização da presidência brasileira da COP30 do Clima, a ser realizada em 2025, mas cuja preparação já começou. A COP constituirá oportunidade única para revitalizar o regime multilateral do clima; buscar limitar o aumento da temperatura global em 1,5 graus centígrados; e acelerar nossa própria transição ecológica e energética.

Essas duas linhas de ação receberão tratamento prioritário em 2024, em conjunto com uma terceira, de caráter permanente: seguir fortalecendo a integração regional, por meio do adensamento das relações bilaterais com os países latino-americanos e caribenhos e do seguimento dos resultados das cúpulas aqui sediadas no Brasil em 2023.

A aposta brasileira na integração, princípio constitucional que rege as relações internacionais do Brasil, seguirá sendo conduzida como projeto de Estado, que atende aos interesses de longo prazo do povo brasileiro, e transcende governos e orientações políticas.

Senhoras e senhores,

O ideal de política externa aqui enunciado, há 20 anos, pelo Presidente Lula segue mais atual do que nunca. Retomá-lo, em novas circunstâncias, exige análise atualizada do contexto internacional, atento aos desafios e aspirações contemporâneos de cada região e de cada país.

O sexagésimo aniversário do discurso proferido pelo chanceler Araújo Castro nas Nações Unidas, em 1963, sobre desenvolvimento, desarmamento e descolonização, convida-nos a reimpulsionar iniciativas diplomáticas voltadas para uma ordem internacional mais justa, pacífica, e capaz de reduzir desigualdades entre países e entre pessoas.

Os próprios parâmetros do exercício da diplomacia também devem ser atualizados, para internalizar o reconhecimento do protagonismo de mulheres, pessoas negras, LGBTQIA+, com deficiência e povos indígenas na história, e nos destinos, do Brasil e das relações internacionais.

A igualdade de gênero e a igualdade racial serão objetivos prioritários e transversais da política externa. O Brasil está em posição única para contribuir com formulações próprias para esse debate, a partir de suas múltiplas identidades como país do Sul, latino-americano, e da diáspora africana.

Prezados colegas,

A dedicação exemplar de seus servidores possibilitou que o Itamaraty conseguisse acompanhar a súbita, e muito bem-vinda, mudança do ritmo da política externa em janeiro deste ano – de um estado de inanição para o reengajamento simultâneo com todos os foros, temas e continentes.

Não obstante, é imperativo reconhecer um limite operacional inegável: a insuficiência de pessoal na Secretaria de Estado das Relações Exteriores.

A agenda da política externa para 2024 nos exigirá ainda mais: além do intenso trabalho habitual em suas áreas, os servidores farão o seguimento de iniciativas lançadas; realizarão cerca de 100 reuniões do G20; e prepararão, para as cúpulas a serem sediadas no Brasil em 2025, algo em torno de cem processos negociadores da COP30 do Clima e dezenas de reuniões do BRICS e do MERCOSUL.

Nesse quadro, questões relativas à gestão de pessoas – incluindo o ingresso, a alocação e a progressão de carreira dos servidores – revestem-se de fundamental importância para o êxito da política externa.

Serão tomadas medidas sistêmicas para, de um lado, mitigar o déficit de funcionários, a exemplo dos concursos já convocados para diplomatas e oficiais de chancelaria; e, de outro, para alocar a força de trabalho do Itamaraty de modo mais eficiente e alinhado com as prioridades estabelecidas pelo senhor Presidente da República.

o planejamento institucional do ministério para o período 2024-2027 conferirá especial atenção à ampliação da diversidade no quadro dos servidores, avançando a partir de conquistas já realizadas como o Programa de Ação Afirmativa do Instituto Rio Branco e da criação, neste governo, do sistema de diversidade e inclusão.

Trabalharemos para aprimorar a qualidade de vida no ambiente de trabalho, com particular atenção à segurança e à saúde física e mental de servidores, e a uma política robusta de prevenção e combate a assédios e a qualquer forma de discriminação.

Tais medidas – combinadas a uma abordagem inclusiva na gestão do patrimônio físico, histórico e artístico da diplomacia – fortalecerão o Itamaraty, e os serviços que presta à sociedade, como espaço de pertencimento físico, político e simbólico para todos os brasileiros.

A diplomacia pública e as relações com os demais ministérios, o Congresso Nacional, e os entes federativos, serão intensificadas. Em seu governo, Presidente Lula, o Itamaraty será mais diverso e permeável ao diálogo com o Estado, a academia e a sociedade brasileira.

Caros formandos,

Compraz-me receber os novos diplomatas ao lado de colegas com quem iniciei minha carreira e com quem compartilho a celebração hoje de 50 anos de serviço público.

Deixo uma palavra de reconhecimento e afeto aos colegas Carlos Antonio da Rocha Paranhos, João Almino de Souza Filho e Andréia Cristina Nogueira Rigueira, e aos colegas de turma do meu curso do Instituto Rio Branco: Piragibe dos Santos Tarragô, Carlos Alberto Lopes Asfora, Eduardo Prisco Paraíso Ramos e Moira Pinto Coelho.

Esse encontro entre as turmas de 2023 e 1973 confere sentido especial a uma palavra muito cara ao Itamaraty: tradição, a qual expressa um ato de entrega. A importância simbólica dessa formação de vínculos, dessa troca de saberes entre gerações, reside tanto em quem passa o bastão, como em quem o recebe.

É nesse espírito que peço aos jovens colegas que recebam as múltiplas matrizes da tradição viva da diplomacia brasileira: prontos a conhecê-la, a honrá-la e a transformá-la quando necessário. E a construir, a partir dela, as novas tradições que conduzirão o futuro do Brasil e do Itamaraty.

É, igualmente, nesse espírito que peço a todos os servidores do Ministério que recebam os formandos: abertos a seus valiosos aportes e ideias, dos quais todos temos muito a nos beneficiar.

Muitas felicidades a todos e muito obrigado.



quinta-feira, 20 de abril de 2023

Dia do diplomata, do meu ponto de vista - Paulo Roberto de Almeida

 Dia do diplomata, do meu ponto de vista:

Fui diplomata por 45 anos, mas estudo as relações internacionais, a política externa, a diplomacia do Brasil e o mundo de forma geral por um período ainda maior, em especial as questões de desenvolvimento econômico e social dos países em perspectiva histórica e no plano comparativo.
Nunca deixei que a primeira condição atrapalhasse a segunda missão, bem mais importante.
Simples questão de honestidade e de independência intelectual.
Paulo Roberto de Almeida
Brasilia, 20 de abril de 2023

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Ser diplomata é uma missão!
 
Hoje comemora-se o Dia do Diplomata, data escolhida em homenagem ao patrono da diplomacia brasileira, José Maria da Silva Paranhos Júnior, o Barão de Rio Branco, nascido em 20 de abril de 1845.

A ADB celebra esse dia com muita alegria e entusiasmo, e agradece a parceria de todos os associados.

Assista ao vídeo preparado pela ADB Sindical:  Dia do Diplomata - YouTube

https://www.youtube.com/watch?app=desktop&v=QEv4Gr1Ncoc


#ADBSindical #Diplomacia #DiadoDiplomata

domingo, 24 de abril de 2022

Dia do Diplomata: entrevista na Roda de Conversa, TV Pai Eterno - Prof. Rafael Manzi, Paulo Roberto de Almeida

Uma entrevista recente no dia do diplomata; sem notas, apenas vídeo.

1446. “Dia do Diplomata: entrevista na Roda de Conversa, TV Pai Eterno”, Brasília, 20 abril 2022, 2 blocos de 18 e de 19 mns, na companhia do Professor Rafael Manzi, na TV Pai Eterno; 

1ro bloco, link: https://youtu.be/mkPkr_rU8Xc

2do. Bloco, link: https://youtu.be/IQUuW6TuyoE

Sem original, notas ou texto.


 

quarta-feira, 20 de abril de 2022

Entre o passado e o futuro: práticas republicanas e desafios da diplomacia brasileira - Gabriela Lotta, Izabela Moreira Correa, Mariana Costa Silveira

Entre o passado e o futuro: práticas republicanas e desafios da diplomacia brasileira

O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2022

Gabriela Lotta, Professora de Administração Pública da Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e Coordenadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV)

Izabela Moreira Correa, Doutora em Governo pela London School of Economics (LSE)

Mariana Costa Silveira, Doutoranda em Administração Pública e Governo na Fundação Getulio Vargas (FGV-EAESP) e pesquisadora do Núcleo de Estudos da Burocracia (NEB-FGV)

 Em todos os lugares, levo a memória da Pátria. Ubique Patriae Memor. A frase é do Barão do Rio Branco, patrono da diplomacia brasileira, cuja data de nascimento marca a comemoração do Dia do Diplomata, 20 de abril.

Mas, mostrar para o mundo o que é o Brasil nunca foi tão difícil para as diplomatas e os diplomatas brasileiros como tem sido recentemente. Em pouco mais de três anos, o país alterou profundamente várias de suas posições diplomáticas históricas. Exemplos abundam. O alinhamento sem precedentes da política externa brasileira à do presidente americano Donald Trump, o ataque internacional aos direitos humanos, o afastamento da posição de equilíbrio em relação a Israel e Palestina, as duras críticas à China, o descaso com compromissos internacionais sobre meio ambiente, o afastamento de nossos vizinhos, e, o desmonte dos mecanismos de integração regional.

O Brasil, que sempre foi reconhecido por ter uma postura mediadora e negociadora, se transformou num pária internacional, isolado em várias posições ao lado de governos autoritários. ‘Nos últimos dois anos, avolumaram-se exemplos de condutas incompatíveis com os princípios constitucionais e até mesmo os códigos mais elementares da prática diplomática’, constava da carta apócrifa de diplomatas brasileiros divulgada no final de março de 2021, dois dias antes da demissão de Ernesto Araújo.

Por que apócrifa? Por que, com raras exceções, em vez de encontrarmos uma resistência frontal dos diplomatas, temos visto atos de resistência tímidos ou silenciosos?

Para responder a esta pergunta, entrevistamos dezenas de diplomatas, lotados em vários países, em distintos setores, e que fazem parte de diferentes gerações do Itamaraty. Estas entrevistas fazem parte de pesquisa que estamos conduzindo para compreender a relação entre opressão governamental e reação burocrática. Para tanto, temos olhado para a administração pública buscando avaliar o funcionamento dos órgãos governamentais e de suas burocracias.

O Itamaraty é um dos órgãos federais mais longevos. Reconhecido por seu posicionamento histórico de equilíbrio e moderação, possui corpo funcional estável e altamente qualificado que, até recentemente, se orgulhava de sua independência técnica ao se assumir como “funcionários de Estado”, elemento aprendido em seu processo de formação e socialização no Instituto Rio Branco. Essas características são, em geral, associadas a organizações públicas autônomas, que conseguem se proteger de desmandos políticos e manter, com bastante efetividade, certa estabilidade na sua agenda. Por todas essas características, enquanto estudiosas da administração pública, fomos surpreendidas com a mudança radical sofrida pelo Itamaraty e pela política externa durante o Governo Bolsonaro.

Embora críticos dos rumos seguidos pela política externa do Governo Bolsonaro, as diplomatas e os diplomatas que entrevistamos foram enfáticos em reconhecer sua limitação em impor resistências ao governo. Na raiz dessa impotência mora o medo da retaliação, pelos pares ou pelo governo, agora ou no futuro.

Medo de retaliação não é peculiar aos servidores do Itamaraty. Em outras organizações também encontramos servidores com receio de sofrer processos administrativos, perseguições, assédio moral e mudança de área. No Itamaraty, entretanto, as represálias parecem ser de outra ordem e ter consequências que ultrapassam um único governo. O trabalho do corpo diplomático envolve, necessariamente, remoções ao longo da vida funcional para serviço em outros países, promoções funcionais e acesso a cargos de direção.

A escolha de para onde o diplomata vai (ou não) afeta não só seu futuro profissional, mas também o de sua própria família. A barganha e uso político do instrumento – por exemplo, punindo servidores que divergem do governo com possível remoção para países indesejados – é uma forma poderosa de manter os diplomatas na linha de obediência.

O segundo mecanismo, a promoção, pode ser usado para o mesmo propósito. Diferentemente de outras carreiras nas quais a promoção acontece a partir de critérios objetivos – tempo de serviço e capacitação, por exemplo – no caso das diplomatas e dos diplomatas, a partir de certo estágio da carreira, a ascensão funcional é feita com base na “promoção por merecimento”, que envolve elementos subjetivos e cuja decisão final depende de apoios formais de colegas na alta direção do ministério, do ministro das Relações Exteriores e, legalmente, do presidente da República. Para além das críticas à influência de fatores como parentesco e relacionamentos pessoais, nossa pesquisa aponta que, sem critérios formais, a promoção também pode ser instrumentalizada para manter a subordinação ou o silêncio daqueles que, ainda que muito desconfortáveis com o retrocesso da política externa, temem que a defesa aberta da democracia, de princípios constitucionais ou de posicionamentos diplomáticos tradicionais os levem ao ostracismo no futuro.

Por fim, os resultados da pesquisa sugerem que o Palácio do Planalto, com a conivência de Ernesto Araújo, num primeiro momento, e agora de Carlos França, tem vetado número expressivo de diplomatas indicados para posições no ministério. A “caça às bruxas”, como tem sido descrita (não apenas no Itamaraty, aliás), afeta inclusive cargos de comissão de médio escalão, algo jamais vivenciado pelo Itamaraty, segundo relatos dos entrevistados. Há casos também de diplomatas que passam meses sem lotação ou atribuições definidas, num limbo funcional jocosamente conhecido como “Departamento de Escadas e Corredores”. Isso tudo sem que os servidores jamais conheçam as motivações para tanto. Os relatos indicam perseguições políticas motivadas, por exemplo, por posicionamentos pessoais de servidores em redes sociais, posições ocupadas em governos anteriores, ou proximidade com pessoas vistas com desconfiança.

Estes instrumentos, junto com outros que encontramos no restante da esplanada (como processos administrativos, assédio institucional e interferência política por meio de nomeações de atores externos, incluindo de militares, para cargos de chefia sem conhecimento técnico) explicam em grande medida como e por que o presidente foi capaz de impor uma mudança tão brusca nos rumos de uma organização que se vangloriava por suas tradições.

Último ano do governo. Hora de olharmos para tudo o que vivemos, aprender e tirar uma agenda de futuro que melhore nossa administração pública e fortaleça nossa democracia. O caso do Itamaraty nos mostra a importância de investir em organizações públicas fortes, capacitadas, e que tenham instrumentos transparentes, isonômicos e impessoais de gestão e carreira. E nos lembra que, para que a tradição da política externa brasileira seja preservada e o Brasil consiga retomar posições de equilíbrio e destaque internacional, é necessário avançar em prol de práticas internas mais republicanas. Talvez assim, as diplomatas e os diplomatas brasileiros não tenham que conviver mais com a dificuldade de em todos os lugares levar a memória da pátria.

https://politica.estadao.com.br/blogs/gestao-politica-e-sociedade/entre-o-passado-e-o-futuro-praticas-republicanas-e-desafios-da-diplomacia-brasileira/

Dia do Diplomata: algo a ser comemorado? - Paulo Roberto de Almeida


Dia do Diplomata: algo a ser comemorado?

Paulo Roberto de Almeida

Diplomata, professor

(www.pralmeida.org; diplomatizzando.blogspot.com)

  

Hoje, 20 de abril, é dia do Diplomata, assim estabelecido pois essa data corresponde ao dia do nascimento de José Maria da Silva Paranhos Jr., em 1845. Cem anos depois, por decreto da ditadura do Estado Novo, era criado o Instituto Rio Branco, encarregado de realizar o concurso de admissão à carreira diplomática, a única forma de ingressar no serviço exterior brasileiro desde então. Os exames de ingresso mantêm o mesmo alto padrão de exigências, com requerimentos praticamente impossíveis de serem alcançados facilmente por qualquer candidato que se apresente, daí o elevado conceito de grande qualidade do seu capital intelectual de que sempre gozou a diplomacia do Brasil, na comparação com serviços diplomáticos de outros países, até alguns desenvolvidos.

Mas a diplomacia, como todos sabemos, é apenas uma ferramenta técnica, um instrumento de trabalho, a ser moldado e orientado pelo chefe de Estado e de governo, no caso republicano o presidente. Sou parlamentarista, e preferia ver na chefia dos negócios da nação alguém que pudesse ser mais facilmente demitido do que um presidente, que requer um sempre traumático processo de impeachment. Digo isto por que um mau presidente, aliás, bem mais do que mau, péssimo, como é o caso atualmente, é capaz de contaminar, deformar, emporcalhar a política externa e a diplomacia, como infelizmente ocorre com as nossas relações exteriores e o seu instrumento de trabalho, o Itamaraty. 

Já fiz muitos balanços sobre a demolição da política externa e a miséria de nossa diplomacia, que aliás correspondem aos títulos de dois livros meus cobrindo, infelizmente, este mau momento da nossa imagem internacional, devido inteiramente ao inepto que nos desgoverna. Teríamos muito a comemorar, efetivamente, se nossa credibilidade externa fosse a mesma de alguns anos atrás, em que pesem todas as turbulências – corrupção e destruição econômica – da era do lulopetismo, que conduziu uma política externa razoável, a despeito de suas derivações partidárias extremamente medíocres (aliança com ditaduras execráveis, para mencionar apenas um aspecto).

Mas, já fomos mais respeitados no mundo, e voltaremos a sê-lo, mas isso vai exigir muito trabalho, a partir do momento em que conseguirmos nos desvencilhar do estrupício que infelicita a nação e constrange os diplomatas, com sua ignorância e desvio de caráter. Haverá um imenso trabalho a ser feito a partir de um governo mais ou menos normal (nunca se pode desejar perfeição no caso brasileiro, com o estamento político patrimonialista que temos), quando então teremos de reconstruir uma política externa decente e restaurar uma diplomacia profissional baseada na excelência do seu capital humano, deixando de lado as deformações ideológicas que atingiram tanto o lulopetismo diplomático, quando o horrível bolsonarismo lunático.

Aguardando chegar esse dia, desejo um bom dia do diplomata a todos os meus colegas, prometendo e confirmando que sempre estarei na linha de defesa de nossos valores e princípios hoje tão depreciados.

Adelante, pessoal. Temos muito a fazer, desde já, planejando nosso renascimento intelectual e nossa recuperação orgânica.

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 4133: 20 abril 2022, 2 p.


quinta-feira, 22 de outubro de 2020

Dia do Diplomata (atrasado) no Itamaraty: política externa sem ideologia? Ainda não, orgulho de ser pária

O discurso do chanceler acidental no Dia do Diplomata confirmou muito do que já sabíamos: a política externa sem ideologia, prometida pelo candidato a presidente, só tem ideologia, e com furor, e o chanceler acidental exibe até certo orgulho pelo fato de o Brasil ter de ficar sozinho no mundo.

Paulo Roberto de Almeida

Se atuação do Brasil nos faz um pária internacional, que sejamos esse pária, diz Ernesto

Durante pandemia, chanceler abre Itamaraty para evento com centenas de pessoas e ataca 'covidismo'

Ricardo Della Colletta
Folha de S. Paulo, 22/10/2020

Em uma defesa da atuação do governo Jair Bolsonaro, o chanceler Ernesto Araújo disse nesta quinta (22) que, se a nova política externa do Brasil “faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária”.

As declarações de Ernesto, que comanda o Itamaraty desde o início do mandato de Bolsonaro, ocorreram durante a cerimônia de formatura do Instituto Rio Branco, a escola de formação de diplomatas.

A fala foi marcada por queixas contra o multilateralismo e o que ele chamou de "covidismo", além de críticas a um marxismo sem Deus e ao globalismo —slogan político usado por movimentos populistas de direita para denunciar, entre outros temas, a suposta perda de identidade nacional.

“Nos discursos de abertura da Assembleia Geral da ONU, por exemplo, os presidentes Bolsonaro e [Donald] Trump [dos EUA] foram praticamente os únicos a falar em liberdade. Naquela organização que foi fundada no princípio da liberdade, mas que a esqueceu”, disse Ernesto, em uma fala de 40 minutos.

“Sim, o Brasil hoje fala em liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária.” A política externa conduzida por Ernesto —marcada por um alinhamento estreito com o governo Trump, a antagonização com a China e a defesa de pautas conservadoras em fóruns multilaterais— é criticada por analistas e até mesmo por embaixadores aposentados.

Um dos principais argumentos levantados por críticos é o de que posturas radicais adotadas pela diplomacia brasileira podem deixar o país em situação de isolamento. “Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, do lado de fora, do que ser um conviva no banquete do cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e dos semicorruptos”, acrescentou Ernesto.

“É bom ser pária. Esse pária aqui, esse Brasil; essa política do povo brasileiro, essa política externa Severina —digamos assim— tem conseguido resultados”, emendou, listando entendimentos comerciais com União Europeia e EUA e a aproximação com países como Arábia Saudita e Emirados Árabes Unidos.

Ainda que o chanceler tenha capitalizado o acordo comercial assinado entre Mercosul e a União Europeia, a ratificação do trato enfrenta resistência em diferentes países europeus, principalmente devido à política ambiental do governo Bolsonaro.

Ernesto fez ainda referência à obra-prima do poeta e diplomata João Cabral de Melo Neto (1920-1999), escolhido pelos formandos como homenageado da turma. Ao lembrar de uma trabalhadora doméstica que sua família empregou nos anos 1980, o chanceler fez alusão ao personagem do livro "Morte e Vida Severina", lembrado como símbolo do brasileiro mais pobre e sofrido. Segundo o ministro, essa trabalhadora, chamada Severina, “odiava o comunismo”, porque eles “são contra Deus”.

Se Ernesto fez elogios à obra de João Cabral, não poupou críticas ao próprio autor, por, segundo ele, ter se dirigido “para o lado errado, para o lado do marxismo e da esquerda”.

“Sua utopia, esse comunismo brasileiro de que alguns ainda estão falando até hoje, constituía em substituir esse Brasil sofrido pobre e problemático [retratado na obra de João Cabral] por um não Brasil. Um Brasil sem patriotismo, sujeito naquela época aos desígnios de Moscou, e hoje, nesse novo conceito de comunismo brasileiro, sujeito aos desígnios sabe-se lá de quem”, afirmou o chanceler.

Esse tipo de acusação não é nova na história de João Cabral. Em 1952, o poeta, então servindo em Londres, foi acusado de liderar uma célula comunista dentro do Itamaraty. Após uma campanha na imprensa, ele foi afastado da chancelaria sem receber vencimentos. Só seria reintegrado em 1955, após ser absolvido pelo STF (Supremo Tribunal Federal) no ano anterior.

A formatura de alunos do Rio Branco conta todo ano com a presença do presidente e dos principais ministros do governo. A realização da edição deste ano em plena pandemia da Covid-19, no entanto, gerou polêmica, uma vez que participaram da solenidade dentro do Palácio do Itamaraty centenas de pessoas, entre diplomatas, autoridades, familiares e homenageados. Muitos não usavam máscaras.

O Sinditamaraty (Sindicato Nacional dos Servidores do Ministério de Relações Exteriores) publicou nota em que “manifesta preocupação com a organização de um evento presencial de grande porte, uma vez que os casos e as mortes por infecção da Covid-19 ainda não estão controlados no Brasil”.

Num discurso em que se queixou por ser tratado como "ideológico", Ernesto também acusou a esquerda de reduzir tudo a “conceitos como gênero e raça” e de querer promover “a ditadura do politicamente correto e da criação de órgãos de controle da verdade”.

“Todo isentão é escravo de algum marxista defunto”, disse. "Tratar os conservadores de ideológicos é o epítome da prática marxista-leninista: chame-os do que você é, acuse-os do que você faz”.

Para o chanceler, movimentos marxistas de esquerda têm a “utopia de um Brasil sem Deus”, de um povo “arrancado aos braços da sua fé cristã”, citando como exemplo protestos sociais no Chile em que manifestantes colocaram fogo em igrejas. Em outra denúncia do que chama de “estratégia marxista”, Ernesto disse que esse movimento toma preocupações legítimas em temas como o meio ambiente e mudanças climáticas e as transforma em "ismos" —no caso, ambientalismo e climatismo.

Fez alusão semelhante à Covid-19, usando o termo "covidismo". “Tomam uma doença causada por um vírus, a Covid, e tentam transformá-la num gigantesco aparato prescritivo, destinado a reformatar e a controlar todas as relações sociais e econômicas do planeta, o covidismo”.

A Covid-19 soma até o momento mais de 5,2 milhões de infectados no Brasil e 155,4 mil mortos.

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‘Se falar em liberdade nos faz um pária internacional, que sejamos um pária’, diz Ernesto Araújo

Ministro das Relações Exteriores defendeu a orientação do "novo Itamaraty" e afirmou que a diplomacia brasileira estava vivendo conceitos ultrapassados

Por Rafael Bitencourt e Matheus Schuch, Valor — Brasília
22/10/2020 13h32  Atualizado há 2 horas

Em formatura de diplomatas no Itamaraty, o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, disse que a diplomacia brasileira, representada pela pasta, ficou muito tempo presa “dentro de si mesma, vivendo conceitos ultrapassados, cantando glórias passadas, lustrando troféus antigos e esquecendo de jogar o campeonato deste ano”.

Para ele, o Itamaraty, antes de sua chegada, cultivava conceitos “ultrapassados e superficiais, satisfeito com a própria fala”.

No discurso, o chanceler voltou a dizer que o país, antes do atual governo, flertava com o “marxismo” e o “globalismo”, como forma de explorar ainda mais os trabalhadores, se valendo de instrumentos para “corromper e estraçalhar a fé”, sem considerar as reais necessidades da sociedade.

Araújo lembrou que, na última Assembleia-Geral das Nações Unidas (ONU), somente o presidente americano Donald Trump e Jair Bolsonaro falaram em liberdade. “O Brasil fala em liberdade através do mundo, se isso nos faz ser um pária internacional, então que sejamos um pária”, afirmou.

O ministro ressaltou que considera guardar semelhanças com o homenageado na solenidade, o poeta e ex-diplomata João Cabral de Melo Neto. “Modestamente também me considero poeta e diplomata”, comentou.

Para Araújo, a diplomacia, assim como a poesia, serve à busca da liberdade. “A diplomacia pode ajudar a libertar o pensamento, libertar a língua, libertar a grande nação brasileira e o próprio mundo da pobreza material e espiritual”, disse o chanceler.

“A diplomacia pode ser lírica, dramática e pode ser épica, pode ter bandeira e pátria. A diplomacia pode pensar, pode falar. Para mim, isso foi uma descoberta transformada e quero compartilhar com vocês”, completou Araújo, ao dirigir a palavra aos formandos, que, segundo ele, chegam a um “Itamaraty que se renova".

Por fim, o ministro das Relações Exteriores rejeitou a referência a ele atribuída de ser uma autoridade do governo que integra a ala ideológica. “Aqueles que nos acusam de ideológicos são aqueles que idealizam toda a vida para concentrar poderes”, afirmou. Para ele, a mídia faz parte de um “esquema” que distorce conceitos.

Como resultado do “novo Itamaraty”, Araújo destacou ter concluído acordos comerciais com as maiores economias do mundo, europeia e americana, restaurado as relações com países de alta tecnologia, como Israel e Japão, feito parcerias com países onde estão grandes centros de capital, como Arábia Saudita e Emirados Árabes, entres outras medidas no campo das relações internacionais.

https://valor.globo.com/politica/noticia/2020/10/22/se-falar-em-liberdade-nos-faz-um-paria-internacional-que-sejamos-um-paria-diz-ernesto-araujo.ghtml

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Chanceler de Bolsonaro critica João Cabral de Melo Neto, patrono da turma, em formatura no Itamaraty

Ernesto Araújo afirmou que escritor e diplomata, perseguido na ditadura Vargas e depois reabilitado, foi parar 'do lado errado do marxismo e da esquerda'

Victor Farias

O Globo, 22/10/2020 - 14:19 / Atualizado em 22/10/2020 - 15:46

BRASÍLIA — O ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, afirmou nesta quinta-feira que o Itamaraty ficou "muito tempo dentro de si mesmo, cantando glórias passadas, lustrando troféus antigos e esquecendo-se de jogar o campeonato deste ano". Segundo ele, com a eleição do presidente Jair Bolsonaro, isso mudou. A declaração foi dada durante formatura do Instituto Rio Branco.

— Em seu discurso da noite da vitória, quase exatamente dois anos atrás, em 28 de outubro de 2018, o presidente Jair Bolsonaro, então recém-eleito, proclamava: vamos liberar o Itamaraty, e era disso que nós precisávamos, presidente: libertação. Precisamos de libertação, libertação para que despertemos e voltemos a enxergar o Brasil e o mundo — disse.

Em um longo discurso de mais de 30 minutos, Araújo fez críticas ao globalismo, ao comunismo, aos "isentões" e ao "estranho hipermoralismo da atualidade". Ele afirmou que, durante a abertura da Assembleia Geral da ONU, Bolsonaro e o presidente americano, Donald Trump, foram "praticamente os únicos" a falarem em liberdade. E disse que, se falar de liberdade faz do Brasil um "pária", "que sejamos esse pária".

— Naquela organização que teria sido, que foi fundada no princípio da liberdade, mas que a esqueceu. Sim, o Brasil hoje fala de liberdade através do mundo. Se isso faz de nós um pária internacional, então que sejamos esse pária, que sejamos esse severino que sonha e essa severina que reza  — disse, citando "Morte e Vida Severina", obra de João Cabral de Melo Neto, escolhido como patrono da turma. — Talvez seja melhor ser esse pária deixado ao relento, deixado de fora, do que ser um conviva no banquete no cinismo interesseiro dos globalistas, dos corruptos e semicorruptos.

Ao comentar a escolha do escritor e diplomata João Cabral de Melo Neto como patrono da turma, o chanceler afirmou que o escritor tinha uma "grande sensibilidade para o sofrimento do povo brasileiro", mas disse que ele, talvez, tenha ido para o "lado errado do marxismo e da esquerda".

— Sua utopia, esse comunismo brasileiro de que alguns ainda estão falando até hoje, consistia em substituir esse Brasil sofrido, pobre e problemático por um não-Brasil, um Brasil sem patriotismo, sujeito naquela época, anos 50, 60, aos desígnios de Moscou, e hoje, nesse novo conceito de comunismo brasileiro, sujeito ao desígnios sabe-se lá de quem — afirmou.

Durante a ditadura de Getúlio Vargas, o escritor, que era diplomata, foi acusado de comunista, e o Itamaraty o colocou em disponibilidade inativa, sem remuneração. Ele, no entanto, foi absolvido pelo Supremo Tribunal Federal (STF), e reintegrado ao Itamaraty, em 1955.

O chanceler disse, ainda, que "todo isentão é escravo de algum marxista defunto" e que "pessoas com baixa capacidade intelectual descobriram que podem parecer inteligentes chamando de ideológico tudo aquilo que não compreendem".

— Tachar os conservadores de ideológicos é a epítome da prática marxista-leninlista: chame-os do que você é, acuse-os do que você faz. O grande complexo marxista-isentista cria ideologias todos os dias, ou seja, agarra pedaços da realidade sempre complexa e cambiante e os transforma em sistemas de locuções fechados, que nao admitem questionamentos — disse, acrescentando: — Assim, tomam o meio ambiente e as preocupações legítimas com esse tema e o transformam em ambientalismo, tomam a mudança climática e a transformam em climatismo, tomam a ciência e a transformam em cientificismo, tomam a iluminação e a transformam em iluminismo.

https://oglobo.globo.com/mundo/chanceler-de-bolsonaro-critica-joao-cabral-de-melo-neto-patrono-da-turma-em-formatura-no-itamaraty-24706541


segunda-feira, 20 de abril de 2020

Barão do Rio Branco de passagem por Brasília - Hussei Kalout

Barão do Rio Branco de passagem por Brasília
Dia 20 de abril é considerado o Dia do Diplomata no Brasil
Hussein Kalout*
O Estado de S.Paulo, 20 de abril de 2020 | 08h59

Olá, meu jovem! Tudo bem? Olha só, me disseram que estão querendo reescrever a história do Brasil. É verdade isso? Fiquei um tanto surpreso. Essa modernidade de vocês é preocupante. Muitos mal sabem quem eu sou e o quanto me doei por este país abençoado. Ah, me desculpe, meu jovem, não me apresentei. O meu nome é José Maria da Silva Paranhos Júnior. Muito prazer!
Na minha época, sabe, eu fiquei conhecido como o Barão do Rio Branco. Mas, por favor, esqueça o título nobiliárquico que herdei. Não quero confundir a sua cabeça, é que eu servi ao Brasil como Ministro das Relações Exteriores na República. Me dediquei a ajudar quatro presidentes – Rodrigues Alves, Afonso Pena, Nilo Peçanha e Hermes da Fonseca – ao largo de uma década. Você já se situou? Ah, não? Tá bom, meu jovem, não importa.
Estou procurando o Itamaraty. Sabe onde fica? Está localizado na nova capital. Pois, foi o que o presidente Juscelino me falou. Ele disse que admirava o que eu fiz pelo Brasil. Preciso chegar lá, pois estou um pouco apressado. Depois que morri, fui aclamado como o Patrono da Diplomacia Brasileira. Nunca imaginei ser honrado com tamanha deferência. Morri trabalhando sobre a minha mesa lá no Palácio Itamaraty que ficava na antiga capital, o Rio de Janeiro – aquilo parece que virou uma bagunça; uma pena! Mas, voltando ao assunto: queria deixar tudo nos trinques, enfim, para que ninguém mais tenha que se preocupar com essa tal “resolução pacífica das controvérsias”.
Me disseram que hoje é o Dia do Diplomata, 20 de abril. É verdade, meu jovem? Soube pelo Oswaldo Aranha e pelo San Tiago Dantas que escolherem a data do meu natalício para celebrar o dia dos profissionais que se dedicam à causa diplomática. Estou me encaminhando para Brasília para conversar com certas pessoas. O meu espírito, desde 2019, anda inquieto. Ando apreensivo e desgostoso. Me tiraram do sossego e agora estou obrigado a vagar por esse mundo.
Passei muitos anos trabalhando duramente para estruturar os cânones da nossa política externa brasileira, meu jovem. Negociei sem que um tiro fosse disparado em nossos vizinhos para resolver as questões de nossas fronteiras. Por causa do Acre, discuti asperamente com o Rui Barbosa. Para ele tudo era sob a ótica do direito e das normas jurídicas. O baixinho era insistente e, por vezes, petulante para um geógrafo.
Enfim, não sou homem fácil de se convencer. Mas, fui! O Direito Internacional passou a ser um pilar estrutural de nossa tomada de decisão.
É assim que o Brasil melhor protege os seus interesses, meu jovem. Percebi que isso seria uma vantagem, especialmente, para dialogar mais a fundo com os líderes de um promissor país: os Estados Unidos da América. O seu presidente, na minha época, era o Theodore Roosevelt – um homem jovem, de quase 43 anos, e de justeza. Estudou, em Harvard, e foi até da revistinha de lá a tal The Harvard Advocate. Te confesso, que tenho certa admiração, meu jovem, pela carta dos pais fundadores daquela nação americana. Um deles era o Thomas Jefferson, de uma polidez intelectual e de refinamento jurídico indescritível. Foi o que eu soube. Não sei se você já leu algo sobre isso. Sou um velho que gosta, também, de história. O Rui está certo, sabe! O respeito ao Direito foi importante amalgama e um dos melhores argumentos a usar para estabelecer um laço de confiança para com os seus líderes.
Por isso, o Nabuco, o Joaquim, era a chave na nossa estratégia. Mandamos o Nabuco – era um sujeito garboso e de intelecto agudo – para chefiar a nossa Legação Diplomática, em Washington, que elevamos à categoria de Embaixada. Ali, ele tinha uma missão vital. Garantir o apoio dos Estados Unidos a nossa causa nas arbitragens de fronteira e, se possível, expandir o comércio. O Nabuco era duro na queda quando a coisa se enveredava para esses dois assuntos: soberania e a autodeterminação dos povos. O “Quincas” não abria mão em defesa dos dois princípios. Você deveria ler mais, meu jovem. É bom aprender. Quincas, o belo, é o Nabuco, ora! Me contaram que ele perambulava em Washington propagando os Lusíadas de Camões. Aliás, o que o pessoal anda lendo na nova capital? Quem? Fale de novo. Quem? Perdoe minha memória e velhice, mas nunca ouvi falar de Olavo de Carvalho. Deixe para lá.
O Senhor Elihu Root, Secretário de Estado de Roosevelt, tinha apreço especial pelo Nabuco – acabou lhe vendendo a casa. O pernambucano trabalhou bem, garantiu o apoio nos processos de arbitragens remanescentes e abriu uma boa frente comercial. E mais, desde então, nos tornamos, apesar dos percalços, os garantes da estabilidade da América do Sul. Sabe, meu jovem, é vital cuidar da nossa região e de nossos interesses. O Lampreia, o moço que ocupou o meu posto, me disse que o Celso Amorim tinha boa visão estratégica, mesmo com desacertos aqui ou ali.
O Lampreia, cá entre nós, deu também as suas escorregadas: olhou muito para o norte achando que dava samba! A nossa vocação, meu jovem, é universalista! Bom, chegando a Brasília no dia do diplomata, 20 de abril, tentarei encontrar com o moço que está à frente do Itamaraty. Soube que o Rubens Ricupero disse que a coisa está à deriva. Uma enciclopédia esse homem, segundo me disse o Afonso Arinos.
Nabuco ficaria com inveja da inteligência dele!
Na minha época a nossa projeção além-mar tinha três componentes: realismo, pragmatismo e interesse nacional. És jovem e ainda terás oportunidade de entender o que digo. E a religião? Qual religião, meu jovem? Não posso crer que já sequestraram a constituição em nome dele. O divino nada tem a ver com política externa. Se tivesse não seria necessário canhões para a guerra e diplomatas para a paz, meu jovem.
Deixe o altíssimo!
E tentarei ver o Presidente, se for possível para ele me receber. Ah...ele admira o Senhor Trump. O atual incumbente dos Estados Unidos. Quanta degradação, não? Tinha gente melhor a se espelhar, não? Podia ser o George Washington que, enfim, era militar. Podia admirar ao menos algum mandatário brasileiro. Há muito o que acertar antes de retornar ao meu sossego.
Enfim, até logo, meu jovem! Preciso ir e deixar o meu agradecimento aos verdadeiros patriotas de ontem e de hoje que me homenageiam em sua alma e em seu silêncio. Espero não ter de vir no ano que vem!

* Cientista Político, Professor de Relações Internacionais e Pesquisador da Universidade Harvard. Foi Secretário Especial de Assuntos Estratégicos da Presidência da República (2016-2018) e atuou como consultor das Nações Unidas e do Banco Mundial. Escreve semanalmente, às segundas-feiras.

Feliz aniversário Barão (malgré lui) - José Maria da Silva Paranhos Jr., Paulo Roberto de Almeida

Memórias do Barão do Rio Branco (4)
Uma data para esquecer

José Maria da Silva Paranhos Jr.
Petrópolis, 19 de abril de 1908
[Transcrição e modernização da ortografia destas “memórias” por Paulo Roberto de Almeida, a partir de manuscritos encontrados nos papéis deixados pelo próprio.’

Amanhã é o meu aniversário de nascimento, o que sempre me deixa muito irritado, não tanto pela data em si, à qual não dou a mínima importância – agora que estou distante de minha família, que ficou em Paris –, mas pelo fato de que meus assessores, e mesmo gente que eu raramente vejo no trabalho diário, vêm pressurosamente prestar supostas homenagens por mais um natalício que eu preferia esquecer. O que, sim, eu gostaria de comemorar, é o aniversário do meu querido pai, o Visconde, de quem herdei esse glorioso título de “Rio Branco”, que essa nossa República tão bizarra pretende extinguir, nesses arroubos de um jacobinismo tão infantil quanto desnecessário.
O aniversário de nascimento de meu pai transcorreu pouco mais de um mês atrás, em 16 de março, e a não pude comemorar dignamente – talvez inaugurando o seu busto na nossa Secretaria dos Negócios Estrangeiros – porque eu já estava refugiado neste meu chalet de Petrópolis, a cidade do imperador, para onde venho sempre que posso. 
Já não aguento aquele ambiente ainda fétido do munícipio neutro, mesmo depois que o grande Oswaldo Cruz tentou combater os miasmas pestilenciais que sempre afugentaram do Rio todo o corpo diplomático e mesmo visitantes estrangeiros. 
O 16 de março, quando o meu querido pai poderia estar comemorando o seu 89. aniversário, passou em branco, pois, mas espero organizar uma homenagem muito mais merecida, no ano que vem, quando ele estaria completando 90 anos, se ainda estivesse vivo. Sinto muito não ter podido acompanhar seu falecimento quase trinta anos atrás, pois eu já me encontrava em Liverpool – na verdade em Paris –, quando ele nos deixou, com apenas 61 anos, mas com uma grande obra atrás de si. Ainda me lembro perfeitamente bem quando o acompanhei, ainda com cabelos negros, em sua primeira missão no Prata, para tentar resolver aquelas contendas ridículas que sempre surgem entre Blancos e Colorados, e que nos obrigaram, mais de uma vez, a intervir nos negócios internos dos nossos vizinhos da Cisplatina. Sempre desconfiei que essas nossas intrusões nas confusões dos uruguaios – mesmo atuando indiretamente, pelos “bons ofícios do Irineu Evangelista, por exemplo – poderiam ainda causar confusões ainda maiores, como de fato ocorreu logo depois, com a maldita guerra que arruinou o nosso próspero império. 
Não pude fazê-lo em sua segunda missão, da qual ele retornou cabisbaixo, sob as críticas dos seus inimigos na Assembleia e mesmo no Senado. Mas sua defesa de sete horas na Câmara Alta, foi tão memorável no desfilar dos bons argumentos, que nosso grande romancista, o velho Machado – que ficou macambúzio depois da morte da sua doce Carolina – produziu uma das mais belas crônicas que já vi publicadas nos nossos folhetins. Meu pai foi um dos maiores estadistas do Brasil, ainda que meu amigo Nabuco dispute a primazia da lista em favor do seu próprio pai, a quem dedicou dois grossos volumes que ainda não tive a pachorra de terminar. O Quincas também já vai avançado na idade, mas ainda nos tem prestado belos serviços na capital dos yankees, os quais ele passou a admirar, depois de uma fresca paixão pelos pérfidos ingleses; espero que ele consiga com o homem do porrete, Theodore, algum dreadnought desses novos, já que os malditos argentinos continuam a nos bloquear o caminho dos estaleiros britânicos. Se ele conseguisse falar com o Mahan, aposto que o homem do poder naval americano apoiaria a ideia junto ao presidente.

Ontem o Domício [da Gama] subiu a serra para me ver, e pedir que eu descesse com ele, para alguma comemoração do meu aniversário, o que me recusei a fazer. Da última vez que cá vim, suei doze lenços, desde a saída do Rio, em caleche, depois no trem que o Mauá construiu e novamente a força de animal até esta minha casinha que tem me servido bem, desde que aqui recebemos os bolivianos, para aquelas difíceis negociações do Acre. Na verdade, quem deu mais trabalho não foram nossos vizinhos, mas o meu amigo Ruy, que se mostrou intransigente na questão do pagamento do novo território e na cessão de uma nesga do nosso próprio território a eles. Acabou saindo da delegação, o que não me impediu de convidá-lo para chefiar a nossa participação na segunda conferência da paz da Haia, no ano passado, quando teve de impor todo o seu valor contra os imperialistas do velho e do novo continente. 
O Domício insistiu muito, dizendo que todos no palácio da Rua Larga gostariam de me cumprimentar, e que de mim esperavam algumas palavras de estímulo nas confusões que ainda temos de resolver com os nossos hermanos, sempre desejosos de estorvar as nossas boas relações com os amigos do hemisfério e do velho mundo. Eu confessei-lhe que já ando cansado dos problemas que eles nos causam desde sempre, mesmo depois que Roca andou por aqui, quase dez anos atrás, proclamando hipocritamente que nada nos separa. Gostaria que assim fossem, e por isso mesmo respondi a Domício que tínhamos de ver com nossos amigos chilenos se eles estão mesmo dispostos a assinar esse Pacto ABC que eu já propus desde alguns anos. Estou cada vez mais pessimista com o cenário geopolítico nestas bandas do Sul, pois os argentinos só buscam um motivo para nos prejudicar mais uma vez com paraguaios, uruguaios e bolivianos.
Disse a Domício que estava sofrendo da gota, e que assim não poderia ser desta vez que eu desceria a serra. Ele ainda insistiu comigo que o Ruy também queria me ver, para discutir a sua campanha à presidência, que ele chamou de “civilista”, para contrastar com as recentes tendências militaristas que surgiram no horizonte da nação. Domício até chegou a sinalizar que muitos lá embaixo não tinham desistido da investida de me fazer candidato à chefia do país, coisa que eu detestaria, dizendo que eu seria praticamente imbatível, dado meu rol de serviços ao país. Acenei para que ele não me importunasse mais com esse tipo de baliverne, pois eu nunca fui homem de política, menos ainda de partidos: tudo o que me interessa é a glória do Brasil nos negócios de Estado, no grande palco deste novo século tão prometedor.  
Ele se foi consternado, não sem antes me dizer que o Euclides (da Cunha) continuava aguardando algum posto permanente no nosso serviço; fiz mostra de me interessar pelo nosso homem do Conselheiro e da Amazônia, mas nunca tive muita vontade de empregar um criador de casos, sempre afetando uma superioridade que de fato ele não possui. Domício ainda me perguntou, na soleira da porta, se eu não pretendia fazer algum concurso para completar as vagas que estavam sendo criadas pela aposentadoria de antigos monarquistas, homens do meu tempo, quando o prestígio do Brasil no exterior era ainda maior. Respondi-lhe que pensaria no assunto, mas não pretendo mudar meu modo de recrutamento: eu mesmo entrevisto os candidatos segundo os meus critérios, não essas provas parnasianas, montadas por esses escriturários sem o charme necessário ao nosso serviço diplomático de inspiração britânica. 
Encomendei-lhe, ainda, quando chegou a carruagem, que pensasse em algum artista para fazer o busto do meu pai, pois lhe devíamos essa homenagem, pelos insignes serviços que ele prestou à nação, e não apenas na questão servil. Foi Paranhos pai quem, mesmo sendo matemático de formação, criou o cargo de Consultor Jurídico da antiga Secretaria de Estado dos Negócios Estrangeiros, e ainda formulou, de sua própria mão, inúmeros pareceres eivados da mais pura doutrina jurídica, e do maior rigor lógico e matemático, virtudes que se perderam depois que deixaram o posto vacante pelo resto do Império. Fui eu quem tive o prazer de restabelecer o serviço, e resolvi testar as qualidades do jovem Clovis Beviláqua, que me parece prometedor, tendo saído da mesma Escola do Recife do grande Tobias Barreto, um quase anarquista republicano, mas o único em nossas paragens que lia e escrevia perfeitamente na língua de Goethe.
Vou deixar passar o meu aniversário, e só retornar ao Rio na semana que vem, para despachar alguns assuntos no Itamaraty, e despachar alguma correspondência no próximo paquete para a Europa: meus filhos devem estar inquietos deste meu silencia inabitual. Eu espero, sinceramente, que o Ruy possa ter êxito contra aquela mula fardada que ameaça desmantelar a nossa frágil República: o marechal, que arrisca ganhar, tem aquela mesma neurose nacionalista que alimenta alguns dos piores tribunos europeus, e esse sempre foi o germe das guerras e dos conflitos. Folgo em que esses imperialistas europeus se entendam, a despeito das quizílias que andam arrumando no norte e no sul da África, depois de já terem estuprado a China, quando daquela revolução tão infeliz dos Boxers. Ando cansado de todas essas boutadeseuropeias, que pretendem que nós é que somos povos não civilizados, quando eles perpetram as piores barbaridades em todos esses locais, escravizando os indígenas, como faz aquele arrogante Leopold II no Congo; o que ele anda fazendo contra os pobres negros, naquelas terras ricas em minerais preciosos é um verdadeiro horror, segundo me relata nosso cônsul em Anvers. 
Só espero que quando eu voltar ao Rio, por um tempo o menor possível, eu não tenha de aguentar os falsos elogios de todos esses áulicos, que só me querem para uma fotografia, para depois conquistar alguma boa imagem na nossa imprensa volúvel. O Itamaraty não é velho, mas andou envelhecendo precocemente, sob a longuíssima direção do nosso Cabo Frio. Eu ainda lhe inventei um busto, alguns anos atrás, para ver se ele se decidia partir, mas o velho grudou-se como uma ostra no rochedo, e só saiu mesmo à beira da morte. O Visconde, o mais longevo dos nossos diretores gerais, e que ainda vinha dos tempos em que esse cargo tinha o título de Oficial Maior, me escondia os dossiês mais delicados, pois pretendia ter sozinho o controle da chancelaria. Não quero que nenhum dos meus assessores tenha essa pretensão, mesmo aqueles mais devotados dos secretários: vou fazer dois ou três ministros na Europa, para me livrar dos mais subservientes, pois não gosto desses que vivem sem ter opinião própria. O Itamaraty precisa ter personalidade própria e nunca mais dobrar-se aos políticos oportunistas.
Amanhã (...)

[anotações interrompidas neste ponto e o Barão não mais retomou os projetos para o dia do seu aniversário; ele parece nunca ter desistido de fazer o aniversário do seu pai, um dia de homenagem aos diplomatas da nação, como ainda quis fazer em 1909. Falta decifrar muitas outras páginas, na letra críptica do Barão.]