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segunda-feira, 1 de abril de 2024

Lincoln Gordon pode ter sido o embaixador do golpe, mas para isso teve a ajuda do coronel Vernon Walters - Elio Gaspari (Globo, FSP)

O americano esteve em todas

Elio Gaspari


O Globo, domingo, 31 de março de 2024


Na manhã de hoje, há 60 anos, o embaixador americano Lincoln Gordon chegou à sua sala por volta das 9h15m. Ele sabia que o golpe estava por dias, mas não sabia que o general Olímpio Mourão Filho, comandante da Região Militar com sede em Juiz de Fora (MG), havia resolvido se rebelar. Quem o avisou que a coisa havia começado foi seu adido militar, o coronel Vernon Walters, um homem corpulento, amigo de militares brasileiros desde a Segunda Guerra Mundial.

Walters ralou durante esse dia. No fim da tarde achava-se que o general Castello Branco, seu colega de barraca na Itália e chefe do Estado-Maior do Exército, estava encurralado no Ministério da Guerra. (Falso, ele estava num aparelho na Zona Sul.) Um marechal avisou-o de que uma tropa legalista da Vila Militar marchava para Minas Gerais. Às 19h05m seu prognóstico era sombrio: “A rebelião parece estar perdendo ímpeto.”

Naqueles dias o Rio de Janeiro penava um racionamento de energia e bairros inteiros ficavam sem luz à noite. Perto das 23h, o marechal Lima Brayner, chefe do Estado-Maior da Força Expedicionária Brasileira durante a guerra, ouviu pancadas na entrada de serviço do seu apartamento de Copacabana, abriu a portinhola e viu, iluminado por uma vela, o coronel Walters. Brayner disse-lhe: “O Kruel acaba de lançar um manifesto.” “Graças a Deus”, respondeu Walters, um católico devoto.

A adesão do general Amaury Kruel, comandante da guarnição de São Paulo, havia decidido a parada. O marechal Cordeiro de Farias, patriarca de todas as sublevações militares do período resumiria a questão: “O Exército foi dormir janguista a acordou revolucionário.”

No dia 2 de abril, Walters passou pela casa de Castello Branco, em Ipanema. No dia 4, de novo, e também na do ex-presidente, marechal Eurico Dutra (1946-1950).

Eleito presidente, no primeiro dia de serviço, Castello convidou-o para um almoço no Palácio do Planalto. Walters presenteou-o com um abacaxi.

O coronel Walters entrou na mitologia das intervenções militares americanas como se, com seus seu pés enormes, esmagasse governos. Teria ajudado a derrubar o rei Farouk no Egito (1954), o premier Mossadegh no Irã (1953), os presidentes Manuel Prado no Peru e Arturo Frondizi na Argentina (1962), noves fora Jango. É um exagero.

Na vida real ele foi mais que isso. Onde houve encrenca ou mistério, lá está ele. Conversas secretas com chineses e vietnamitas? Foi Walters quem bateu à porta de embaixada chinesa em Paris com um recado do presidente americano Richard Nixon. Era em sua casa que Henry Kissinger se escondia para negociar com os vietnamitas do Norte. Escândalo do Watergate, que derrubou o presidente dos Estados Unidos? Ele era o vice-diretor da Central Intelligence Agency em 1972, quando a Casa Branca concebeu um estratagema para congelar as investigações do FBI. Walters e o diretor da CIA, Richard Helms, barraram a manobra.

Walters alistou-se no Exército para derrotar o nazismo e continuou na carreira para derrotar o comunismo. Em 1989, ele era embaixador na Alemanha e de sua janela viu o fim do Muro de Berlim. Morreu em 2002, aos 85 anos.

O homem que falava oito línguas

Walters era um interlocutor direto, dotado de um humor sarcástico. Costumava dizer que falava outras sete línguas (francês, italiano, espanhol, português, alemão, russo e holandês) mas não pensava em nenhuma. Seu português tinha pouco sotaque, como o de Roberto Campos.

Quando Fidel Castro lhe disse que estudou com padres, cortou:

— Yo también, pero me quedé fidel.

Quando era acusado de saber tudo sobre o Brasil, respondia.

— Se eu fosse isso tudo, não teria comprado um apartamento no Panorama Palace Hotel. (Lançado no Rio nos anos 1960, o Panorama foi um mico e hoje é chamado de Favela Hub.)

Walters alistou-se no Exército em 1941 antes mesmo que os Estados Unidos entrassem na guerra. Seu pai teve algum dinheiro, mas perdeu-o na Depressão dos anos 1930. Tinha talento para idiomas e lapidou-o na adolescência, como mensageiro de uma companhia de seguros da Babel de Nova York. Achou que com isso teria uma boa posição mas, de saída, virou soldado raso.

Um ano depois era tenente, na área de informações, e um coronel mandou que aprendesse português. Em 1943 foi designado para acompanhar oficiais brasileiros nos Estados Unidos e, mais tarde, na Itália. Daí em diante foi interprete das conversas de presidentes americanos com brasileiros, de Dutra a Médici, de Harry Truman a Richard Nixon. Teve dois padrinhos, o presidente Eisenhower e Averell Harriman, milionário, diplomata, ex-governador de Nova York grão-duque do partido democrata.

Depois de ter vivido alguns anos no Rio (e virar flamenguista), era adido militar em Roma em 1962, quando o embaixador Lincoln Gordon pediu ao presidente Kennedy que o removesse para o Rio, reforçando o dispositivo militar da embaixada. Walters moveu céus e terra para não sair de Roma, pensou em pedir passagem para a reserva. Em outubro o coronel desceu no Rio e teve 13 generais para recebê-lo no aeroporto.

Na noite de 13 de março de 1964 ele viu o discurso de João Goulart na casa do general Castello Branco. (O alto da testa de Castello batia abaixo da base do queixo de Walters, que o descreveria assim: “Baixo, robusto. O pescoço muito curto e a grande cabeça dão a impressão de que é corcunda”.)

Walters deixou o Brasil em 1967 como general. Uma semana depois da edição do AI-5, quando havia pressão para que os EUA se afastassem da ditadura, ele escreveu ao secretário de Estado Henry Kissinger defendendo a aliança:

“Se o Brasil se perder, não será outra Cuba. Será outra China”.

Walters foi adido militar em Paris, vice-diretor da CIA, embaixador nas Nações Unidas e em Berlim. Lá, pelo seu jeitão loquaz, o secretário de Estado James Baker evitava-o.

Washington manda, e Walters cumpre

Em 1966 a Polícia Federal prendeu dois americanos com contrabando de minérios na Amazônia. Um poderoso senador foi ao secretário de Defesa e pediu por eles. Walters recebeu o seguinte telegrama:

“Apreciamos seus francos comentários se há algo que possa ser feito nesse caso através de seus bons contatos com seus interlocutores militares brasileiros.”

Walters foi a Castello Branco dizendo-se envergonhado por encaminhar a gestão. Dias depois, as celas dos americanos amanheceram com as portas abertas e eles fugiram.

Missão impossível, Resgatar Kissinger

Quando: 1970.

Onde: Paris

O general Walters está no seu gabinete de adido militar na França e recebe uma mensagem de Washington informando que o avião que conduz do secretário de Estado Henry Kissinger para mais um encontro secreto com vietnamitas está sobre o Atlântico e será obrigado a descer no aeroporto de Frankfurt, na Alemanha.

Missão: Trazer Kissinger, incógnito, a Paris.

Walters desceu, caminhou até o palácio presidencial e pediu para ser recebido imediatamente pelo presidente francês Georges Pompidou. Expôs o seu caso: precisava de um avião para buscar o secretário.

Quando Pompidou perguntou-lhe o que Kissinger vinha fazer em Paris, respondeu que a viagem envolvia uma senhora.

Pompidou emprestou-lhe um jato militar, ele desceu em Frankfurt, atravessou a pista, mandou apagar os refletores e resgatou Kissinger. Seguindo a rotina, levou-o para seu apartamento, onde a empregada jamais soube quem era o hóspede.

Serviço:

Walters escreveu dois livros de memórias, o primeiro, “Missões silenciosas”, muito bom, tem edição em português.

 

quarta-feira, 21 de fevereiro de 2024

A irresponsabilidade de Lula: Ele reciclou a usina de besteiras de Bolsonaro - Elio Gaspari (Folha de S. Paulo)

A irresponsabilidade de Lula


Ele reciclou a usina de besteiras de Bolsonaro

Elio Gaspari

Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles 'A Ditadura Encurralada'

Folha de S. Paulo21 de fevereiro de 2024


Ao mandar Jair Bolsonaro para casa, o Brasil parecia ter se livrado de um encosto. Durante a pandemia, esse espírito duvidava da vacina, sugeria que o vírus da Covid havia sido fabricado na China e exaltava a cloroquina. Lula recolocou o Brasil nos eixos na questão ambiental e atravessou o mundo para resgatar o encosto, escorregando na casca de banana de Gaza.

No domingo passado, em Adis Abeba, ele disse que "o que está acontecendo na Faixa de Gaza com o povo palestino, não existe em nenhum outro momento histórico. Aliás, existiu quando Hitler resolveu matar os judeus". Com isso, abriu uma crise e foi declarado persona non grata pelo governo de Israel.

Lula já havia costeado o alambrado dias antes, no Cairo, com duas frases: "O Brasil foi um país que condenou de forma veemente a posição do Hamas no ataque a Israel e o sequestro de centenas de pessoas. Nós condenamos e chamamos o ato de ato terrorista".

Falso. O ataque do Hamas aconteceu no dia 7 de outubro. Cinco dias depois, o Itamaraty informou que a classificação do Hamas como organização terrorista competia à ONU. Posteriormente é que a ONU o incluiu em terrorismo.

Lula acrescentou: "Não tem nenhuma explicação o comportamento de Israel, a pretexto de derrotar o Hamas, está matando mulheres e crianças - coisa jamais vista em qualquer guerra que eu tenha conhecimento."

Ressalvada a falta de conhecimento, essa afirmação foi um exercício de retórica amparada na ignorância.

A fala de Adis Abeba teve a ver com a classificação do comportamento de Israel em Gaza como "genocídio". Que as tropas de Binyamin Netanyahu cometeram crimes de guerra, é certo. Genocídio é outra coisa, é um ato deliberado de exterminar um povo, esteja ele onde estiver. Em junho de 1944, com a guerra perdida, os alemães capturaram os 400 judeus que viviam na ilha de Creta. Naquele mês, o brasileiro Benjamin Levy, a mulher e a filha foram amarrados em Milão e deportados para o campo de Bergen-Belsen.

Lula já disse que Napoleão foi à China e que os americanos derrubaram Dilma Rousseff de olho no petróleo do pré-sal: "É preciso que o petróleo esteja na mão dos americanos porque eles têm que ter o estoque para guerra. A Alemanha perdeu a guerra porque não chegou em Baku, na Rússia, para ter acesso à gasolina."

A batalha de Stalingrado terminou em fevereiro de 1943, quando os alemães já haviam sido contidos em Moscou, os Estados Unidos estavam na guerra e haviam quebrado a perna da Marinha japonesa. Se os alemães chegassem a Baku, pouca diferença faria. Eles perderam a guerra por falta de gasolina.

Vale lembrar que a Segunda Guerra também não acabou porque os americanos tinham mais gasolina. Ela acabou depois das explosões de bombas atômicas em Hiroshima e Nagasaki, que ficaram prontas em 1945.

De onde Lula tira essas ideias, não se sabe, mas no seu terceiro mandato ele se move na cena internacional com uma onipotência aplaudida por áulicos e venenosa para a diplomacia brasileira.

Durante seu primeiro ano deste mandato, firmou-se como um chefe de Estado excêntrico. A fala de Adis Abeba temperou a ignorância com irresponsabilidade.


quarta-feira, 16 de agosto de 2023

Saraiva Guerreiro foi um grande diplomata e um chanceler equilibrado: muito diferente de outros que estavam antes ou vieram depois - Elio Gaspari

O efeito Milei e o Itamaraty

Elio Gaspari

Folha de S. Paulo, 15.ago.2023 às 23h15 

 

A encrenca argentina é séria, mas não é inédita. Lá, o general Jorge Rafael Videla, ditador deposto em 1981, morreu num banheiro da cadeia em 2013. Em 2001, o presidente civil Fernando de la Rúa fugiu da Casa Rosada e em duas semanas o país teve três presidentes.

O governo do presidente Alberto Fernández está bichado. Cumpriu-se parcialmente uma profecia de Jair Bolsonaro, impropriamente enunciada durante a campanha eleitoral de los hermanos. Fernández e Lula aproximaram-se. Javier Milei, por sua vez, aproximou-se de Bolsonaro.

Com as cartas que estão na mesa, é forte o efeito gravitacional que levaria o Brasil a se meter na encrenca argentina. Se Bolsonaro não deveria ter se metido na campanha de 2019, o governo de Lula não deve se meter na disputa de 2023. À primeira vista isso parece impossível, até injusto. Seria como tirar o sapato sem tirar a meia.

Para diplomatas competentes, não só isso é possível, como em circunstâncias piores, o Itamaraty já fez a mágica.

Em 1982, os presidentes Leopoldo Galtieri e João Baptista Figueiredo eram bons amigos. Militares brasileiros sequestravam exilados argentinos no Brasil e militares argentinos sequestravam brasileiros em Buenos Aires. O general Galtieri (um bebum) teve sua ideia: invadir as ilhas Falklands, terras perdidas no meio do oceano, governadas pelos ingleses.

A primeira parte foi fácil e ele tomou as Malvinas. Restava a segunda: o que faria a Inglaterra, governada pela primeira-ministra Margaret Thatcher? No dia 23 de abril de 1982, o embaixador do Brasil em Londres, Roberto Campos, informava: "Especula-se que as propostas britânicas estariam divididas em três fases: retirada argentina, período de transição, onde o Reino Unido faria algumas concessões no sentido de uma administração partilhada, e de uma negociação da situação final das ilhas, inclusive da questão da soberania".

No dia seguinte, foi além: "Vários observadores vêm insistindo em que seria muito pouco provável que o Reino Unido inicie operações militares contra a Argentina enquanto estão em curso negociações".

Ilusão do doutor. Thatcher desceu a frota, retomou as ilhas e Galtieri, humilhado, foi mandado para casa. No Itamaraty, estava o chanceler Ramiro Guerreiro, de sapatos e meias. Ele sabia que a aventura militar acabaria em desastre. Tratava-se de dissociar-se da maluquice, sem colocar o Brasil na condição de aliado dos ingleses numa questão sensível para todos os argentinos.

Guerreiro conteve os ímpetos de Figueiredo e dos militares brasileiros aliados da ditadura argentina, com suas dezenas de milhares de mortos. O chanceler Guerreiro era um diplomata discreto. Seu colega Araújo Castro dizia que ele era a única pessoa capaz de dormir durante o próprio discurso.

Por calado, Guerreiro não deixou registro público da sua mágica. Seus detalhes estão nos arquivos do Itamaraty. Passados 41 anos, eles estão disponíveis para quem sente o impulso de se meter na encrenca argentina e na alma aventureira de Javier Milei.


quinta-feira, 28 de julho de 2022

Elio Gaspari recomenda liquidar a fatura no 1o. turno (O Globo)

 Papo reto

Elio Gaspari
O Globo, 24/07/2022

Didaticamente o porquê tudo ser resolvido no 1o turno. 

A eleição para a Presidência da República este ano tem um componente diferente. É a civilização contra a barbárie, estes 3 últimos anos têm sido terríveis para qualquer pessoa com o mínimo de bom senso, e isso não se aplica a ser de direita ou de esquerda. Isso se aplica a ser civilizado. Eu adoraria estar num processo eleitoral "normal" para escolher entre aquele que eu acredito plenamente no seu projeto de governo e os outros. 

Mas, infelizmente, a barbárie instalada neste país nos últimos 3 anos faz com que a escolha definitiva seja logo no primeiro turno. 

São 33 milhões de brasileiros passando fome, são mais de 60 milhões em insegurança alimentar média e leve, são milhões de desalentados, inflação de dois dígitos, o país sucateado, o "orçamento secreto" (a corrupção oficializada) fazendo a festa de deputados que eram "antissistema" (sabe-se lá o que isso é na cabeça dessa gente tosca), a Educação sem um projeto definido, a Saúde pessimamente administrada como nunca aconteceu, o Meio Ambiente destruído, até o Itamaraty conseguiu ficar desmoralizado na atual gestão.  

Isso sem falar no aumento do número de feminicídios, crimes homofóbicos, racismo escancarado, misoginia e agora até crimes por motivação política escancarados. 

A barbárie não pode vencer, a barbárie não pode sequer ter a chance de um segundo turno. Sei que para muitos votar no Lula seja difícil, mas temos que ver as composições políticas e extremamente pragmáticas ele está fazendo. Não haverá muita possibilidade de uma reviravolta, Lula já foi presidente por duas vezes, a sordidez e a perversidade não fazem parte de seu perfil.  

A "Marcha para Jesus", ontem, no ES, que tinha uma arma como símbolo mostra exatamente o que esse governo é. Nunca a fé foi tão perversamente explorada.  

Repetir que as coisas estão mal no mundo inteiro e no Brasil não seria diferente revela uma incapacidade de reflexão sobre o todo assustadora, a total falta de conhecimento sobre o processo histórico, a eliminação da capacidade de observação, é a barbárie fazendo o seu papel, minando pouco a pouco o que resta do civilizatório.  

Não é histeria, não é messianismo, é pragmatismo. Eu não vou dar chance para a barbárie.

quinta-feira, 21 de julho de 2022

O cercadinho dos embaixadores - Elio Gaspari (O Globo)

O cercadinho dos embaixadores

A diplomacia mambembe de Bolsonaro

Elio Gaspari

Presidente Jair Bolsonaro em reunião com embaixadores sobre o sistema eleitoral brasileiro 

 

Há 200 anos, antes do Grito do Ipiranga, José Bonifácio de Andrada e Silva criou a semente da diplomacia brasileira. Em agosto de 1822, ele encaminhou um “Manifesto aos Governos e Nações Amigas”, em que Dom Pedro mencionava a “vontade geral do Brasil que proclama à face do universo a sua independência política”. Sempre antes do 7 de Setembro, Andrada mandou representantes a Londres e Paris.

Passaram-se 200 anos, e Jair Bolsonaro apequenou a diplomacia fundada por José Bonifácio. Reuniu embaixadores estrangeiros para recriminar o sistema eleitoral brasileiro, atacando nominalmente os ministros Luís Roberto Barroso, Edson Fachin e Alexandre de Moraes.


Ele disse coisas assim: 

— Por que um grupo de apenas três pessoas quer trazer instabilidade para o nosso país, não aceita nada das sugestões das Forças Armadas, que foram convidadas? São perfeitas, chega a perfeição absoluta? Talvez não. Nem um sistema informatizado pode dar garantia de 100% de segurança. As Forças Armadas, das quais sou comandante supremo, ninguém, mais do que nós, quer estabilidade em nosso país.

Bolsonaro pode dizer coisas desse tipo onde bem entender, menos para uma plateia de diplomatas estrangeiros formalmente convidados. O processo eleitoral de um país pode ter observadores internacionais, caso essa seja a vontade de seu governo. Chamar diplomatas estrangeiros para ouvir uma peroração como a do Alvorada não chega a ser alienação de soberania, é apenas tolice, menos para quem esteja planejando uma crise institucional. Vale lembrar que, na posse dos presidentes do Estados Unidos, os embaixadores estrangeiros não são convidados para a cerimônia, pois se trata de assunto doméstico.

Desde 1822, quando Andrada e Silva se preocupava com as nações amigas, não há precedente de um governante brasileiro ter reunido embaixadores para defender suas opiniões, atacando integrantes de outro Poder da República. Seria ingenuidade achar que Bolsonaro reuniu esses senhores para convencê-los de seja lá o que for. Bolsonaro falou para sua base. Uma coisa é certa: a ideia desse “brienfing”, como dizia a transparência, não partiu do Itamaraty.

Todos os diplomatas reunidos por Bolsonaro transmitiram relatos para suas chancelarias, e é possível imaginar alguns aspectos factuais do evento:


1) Nem todos os embaixadores foram convidados. Ficaram de fora a China, a Argentina, o Chile e o Reino Unido;

2) Bolsonaro se fez acompanhar pelo chanceler e pelos generais-ministros da Defesa, do Gabinete de Segurança Institucional e da Secretaria-Geral da Presidência, mais seu provável candidato a vice. Os presidentes do Supremo Tribunal Federal e do Tribunal Superior Eleitoral (TSE) recusaram o convite;

3) O protocolo não previa perguntas da plateia (ainda bem);

4) Só foram admitidas equipes de emissoras de televisões que se comprometeram a transmitir a fala de Bolsonaro na íntegra, ao vivo. A emissora estatal fez a transmissão;

5) Horas depois, o ministro Edson Fachin, presidente do TSE, e Rodrigo Pacheco, presidente do Senado, rebateram a fala do presidente.


Se algum embaixador concluiu que o evento do Alvorada fortaleceu o compromisso democrático do presidente Bolsonaro diante do resultado das urnas de outubro, será chamado de volta a bem do serviço público de seu país.

 


quarta-feira, 28 de outubro de 2020

Uma nova história dos EUA, por Jill Lepore - Elio Gaspari

Com quase 2 quilos, livro mostra história dos EUA com elegante domínio dos fatos 

'Estas Verdades', de Jill Lepore, mostra discreto bom humor da autora, que trata de tudo, inclusive cinema ou esporte


Elio Gaspari
FSP, 24/10/2020

Uma grande História dos EUA

Está nas livrarias “Estas Verdades - História da Formação dos Estados Unidos”, da professora Jill Lepore, de Harvard. Com 866 páginas e quase dois quilos, vai de Cristóvão Colombo a Donald Trump.

A historiadora e autora Jill Lepore na universidade de Harvard - Kayana Szymczak/The New York Times

Lepore gosta da vida, de História e dos Estados Unidos. Isso faz com que sua produção tenha um discreto bom humor, levando-a a tratar de tudo, inclusive cinema ou esporte. Os personagens de “Estas Verdades” têm carne e osso. Ela olha para os magnatas, os poderosos, os negros, os índios e as mulheres. Em 1760 o fazendeiro George Washington consertou sua boca usando dentes de escravizados. (Pelo menos 43 deles fugiram e um combateu ao lado dos ingleses. Da fazenda de Thomas Jefferson fugiram 13. O futuro presidente acasalava-se com a escrava Sally Hemmings, meia-irmã de sua falecida mulher. Na conta do erudito amante e senhor, ela só tinha um oitavo de sangue negro.)

No século 18, as colônias americanas tiveram duas revoluções, uma contra o domínio inglês, outra contra a escravatura. Esta levou quase um século para prevalecer. O que levou os colonos a se rebelar não foram apenas os impostos e a repressão, mas sobretudo a oferta da liberdade para os escravos. Em 1776 um grupo de “subversivos”, segundo o filósofo inglês Jeremy Bentham, criou um estado “absurdo e visionário”. Em 1801 a Suprema Corte se reunia na pensão em que viviam seus juízes.

Lepore diz coisas assim: “A Inglaterra manteve-se no Caribe e desistiu da América”. Ou ainda, tratando da Guerra Civil: “O Sul perdeu a guerra, mas ganhou a paz”.

A grande nação americana foi construída também pelos movimentos dos trabalhadores, dos imigrantes e dos negros. “Estas Verdades” vai mostrando essa história aos poucos, com um elegante domínio dos fatos: em 1776, quando foi proclamada a independência dos Estados Unidos, a temperatura na cidade de Filadélfia era de 11 graus, às vésperas da chegada de Donald Trump era de 15. Para Bill Gates, “Estas Verdades“ é o “relato mais honesto e mais bem escrito que já li sobre a história dos Estados Unidos”. Jill Lepore conta uma grande aventura e termina com certa ansiedade: “Uma nação não pode escolher seu passado, só pode escolher seu futuro”.


quinta-feira, 15 de agosto de 2019

Que falta faz um chanceler - Elio Gaspari (FSP)

Elio Gaspari comenta episódios da diplomacia profissional do regime militar, e lamenta que o atual chanceler, acidental e improvisado, não atue para controlar – esse é o termo – o presidente mais que improvisado, incompetente em diplomacia e um desastre em política externa, que pode prejudicar terrivelmente as relações com nosso principal vizinho.


Médici, Geisel e Figueiredo tinham suas opiniões, mas sabiam que deviam ouvir os profissionais

A declaração de Jair Bolsonaro de que a derrota de Mauricio Macri na prévia eleitoral argentina pode significar uma vitória da “esquerdalha” de Dilma Rousseff, Hugo Chávez e Fidel Castro, foi coisa inédita, assombrosa.

Ele pode achar o que quiser, mas não tem mandato para meter o Brasil numa disputa eleitoral argentina.

Falando de questões internas, pode se intitular “Capitão Motosserra” ou expor sua teoria da relação do meio ambiente com o cocô. Bolsonaro é assim e sem dúvida prefere ver os brasileiros discutindo cocô em vez do cheiro de uma recessão na economia.

Bolsonaro não gosta dos governos civis que o antecederam. Tudo bem. Ficando-se com os exemplos que lhe deixaram os militares, salta aos olhos uma lição: falta-lhe um chanceler, ou, pelo menos, um ministro das Relações Exteriores com as qualidades profissionais de Mário Gibson Barboza (governo Médici), Azeredo da Silveira (Geisel) e Ramiro Guerreiro (Figueiredo).

Os três descascaram abacaxis nas relações com a Argentina sem criar atritos. Graças aos dois primeiros, conseguiu-se negociar em relativa harmonia a construção da hidrelétrica de Itaipu.

Médici aguentou um desaforo do general-presidente Agustín Lanusse. Numa visita a Brasília, ele enfiou um caco no discurso que fez no Itamaraty, e sua comitiva chegou à grosseria de cortar do comunicado conjunto uma referência à “inquebrantável amizade” dos dois países. Na costura da calma estava Mário Gibson.

Lanusse foi substituído pelo demagogo larápio Juan Perón. Tinha tudo para acabar em encrenca. Ele vivia exilado na Espanha. Em 1964 tentou descer na Argentina mas foi barrado pelo governo brasileiro no aeroporto do Galeão e teve que voar de volta. Ainda por cima, era amigo do presidente deposto João Goulart e assumiu criando dificuldades para a construção de Itaipu.

O general Ernesto Geisel detestava-o e disse ao embaixador brasileiro em Buenos Aires, Azeredo da Silveira, que não negociaria “com quem está de má-fé, sem honestidade de propósitos”.

O diplomata não havia sido convidado para o ministério e sabia que estava numa sabatina, mas disse ao general: “Mesmo assim, é preciso negociar”. Geisel negociou.

Perón morreu sem que a ditadura brasileira encrencasse com seu governo ou com o de sua substituta, a vice Isabelita, uma ex-dançarina de cabaré panamenho.

Coube a Ramiro Guerreiro, o chanceler de João Figueiredo, o melhor lance da diplomacia dos generais com a Argentina. Em 1982, ela era presidida pelo general Leopoldo Galtieri, um cavalariano chegado ao copo, que mantinha boas relações com Figueiredo.

Com a popularidade em baixa, Galtieri resolveu invadir naquele ano a possessão britânica das ilhas Malvinas. Se dependesse de Figueiredo e dos militares que o cercavam, o Brasil ficaria do lado da Argentina.

Coube a Guerreiro tomar distância. Não podia ficar perto da maluquice de Galtieri, mas também não podia se aproximar da inevitável vitória dos ingleses. Algo como tirar a meia sem descalçar o sapato, e Guerreiro conseguiu.

(Meses depois, a diplomacia brasileira conduziu uma gestão para que os ingleses devolvessem o capitão Alfredo Astiz, que se rendeu nas Malvinas. Tremenda sorte a de Astiz, pois recebeu o tratamento que merecem os soldados. Ele havia sido um dos maiores assassinos da ditadura militar argentina que sucedeu Isabelita Perón. Era apelidado de Anjo Ruivo da Morte. Está na cadeia.)

Médici, Geisel e Figueiredo tinham suas opiniões, mas sabiam que na Presidência deviam ouvir os profissionais. Por sorte, tiveram Gibson, Silveira e Guerreiro.

Elio Gaspari
Jornalista, autor de cinco volumes sobre a história do regime militar, entre eles "A Ditadura Encurralada".

quarta-feira, 19 de junho de 2019

A protecao industrial no Brasil: computadores - Elio Gaspari (FSP)

O capitão prometeu uma alegria

Bolsonaro quer baixar imposto de importação de computadores

Num de seus últimos tuítes o presidente Bolsonaro anunciou
“Para estimular a competitividade e inovação tecnológica, o governo estuda (...) a possibilidade de reduzir de 16% para 4% os impostos sobre importação de produtos de tecnologia da informação, como computadores e celulares.” 
É o caso de se sentir o alívio da diretora de futebol da seleção feminina da Tailândia, que chorou ao ver o gol de seu time depois de tomar 13x0 contra os Estados Unidos e de ralar um 5x0 contra a Suécia.
Tomara que o capitão emplaque essa. Como seus tuítes fazem parte de uma realidade paralela, ficaria de bom tamanho se passasse a revelar todos (repetindo, todos) os obstáculos que aparecerão no caminho.
Os computadores, bem como os tablets e os celulares, custam caro no Brasil. A inovação tecnológica da indústria é desprezível e esse mercado é dirigido pela mão invisível do atraso.
Em 1975, quando a China vivia as trevas da Revolução Cultural que descambou até para casos de canibalismo, em Pindorama uma aliança de militares e burocratas começou a erguer barreiras contra a importação de computadores. Nascia assim uma das maiores ruínas produzida pela ditadura, a chamada reserva de mercado da informática. Era mais fácil trazer um quilo de cocaína do que passar pela Alfândega com um computador. A ideia era criar uma tecnologia nacional, copiando patentes estrangeiras.
Em 1984, quando o Congresso sacramentou a maluquice, um grupo de engenheiros chineses fundou a empresa Lenovo. Ela ralou, mas hoje é a maior vendedora de computadores do mundo. É a China que monta os iPhones e seus celulares estão entre os melhores. Os chineses disputam com os americanos a dianteira na tecnologia da informática. Os campeões nacionais brasileiros atolaram.
Deve-se ao então presidente Fernando Collor a quebra do monopólio do sonho, ao qual juntaram-se grandes bancos e empresários. A reserva de mercado acabou, mas a mão invisível continuou agindo no escurinho de Brasília. Reciclou-se, beneficiando-se de incentivos fiscais, franquias de importação y otras cositas más. O resultado desse contorcionismo está aí: os celulares e os tablets são caros e os computadores competem graças ao imposto de importação de 16%.
O tuíte de Bolsonaro poderá ser uma baforada, como foi o “Peso Real”. Se ele contar, passo a passo, por que a ideia não vier a avançar prestará um grande serviço. As guildas empresariais já anunciam que uma redução do imposto provocará a fuga de indústrias. Nesse caso, um dos motivos que mantém essas empresas em funcionamento é a barreira tarifária. Restará discutir se ela faz sentido. Sempre será bom lembrar que a abolição da escravatura destruiria a produção do café. Era lorota.
No final do século passado, quando o Brasil começou a abrir sua economia, a indústria fortificou-se na defesa de sua proteção. Isso para não falar na venda de ilu$ões, como o plano de construção naval. Noves fora alguns trogloditas, a agricultura e a pecuária tomaram o caminho inverso, modernizando-se. Surgiram dezenas de centros de pesquisas agrícolas e hoje o agronegócio empurra a economia. Enquanto isso, as guildas industriais continuam dando jantares para autoridades. Uma indústria pode crescer protegendo-se dos concorrentes, mas definha quando se protege dos consumidores.

quinta-feira, 3 de agosto de 2017

BNDES ingressou no rol dos fracassos nacionais, infelizmente - Elio Gaspari (2013)

(Recebido em 2/08/2017) 
 
Prezados Senhores

Se você colocar o governo federal para gerir o deserto do Saara, em 5 anos haverá escassez de areia (MILTON FRIEDMAN).

Imaginem o governo administrando um banco como o BNDES, com juros 10 vezes menores do que o de mercado. 

Somente escrevendo um “livro negro” com o artigo abaixo do ilustre jornalista Elio Gaspari.

NOTA: ESCRITO EM 06/10/13
Ricardo BERgamini
Ricardo Bergamini
 
GASPARI 1: BNDES CRIOU CAMPEÕES DE "DESASTRES"
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Política de "campeões nacionais", que foi a marca da gestão de Luciano Coutinho, teria sido um grande fracasso, segundo o jornalista Elio Gaspari; ele aponta os colapsos de empresas como OGX, LBR e da própria Oi
6 DE OUTUBRO DE 2013 

- O estímulo à formação de grandes grupos de capital brasileiro, os chamados "campeões nacionais", pelo BNDES, tem sido um grande fracasso. É o que aponta o jornalista Elio Gaspari em sua coluna. Leia abaixo:

As campeãs nacionais de desastres

O sonho petista de criar um bloco de empresas financiadas pelo BNDES reeditou um pesadelo

Em 2007, o BNDES ressuscitou o zumbi da anabolização de empresários amigos e anunciou que o governo queria criar um núcleo de "campeões nacionais", inserindo-o no mundo das grandes empresas mundiais. Nesse lance, botou perto de R$ 20 bilhões em empresas companheiras.

Numa mesma semana, dois fatos mostraram o tamanho do fracasso dessa política. O conglomerado da OGX, produção megalomaníaca de Eike Batista na qual o BNDES financiou R$ 10,4 bilhões, está no chão. A "supertele" Oi, produto da fusão pra lá de esquisita e paternal da Telemar com a Brasil Telecom, tornou-se uma campeã nacional portuguesa, fundindo-se com a Portugal Telecom. Em 2010, o BNDES e os fundos de pensão tinham 49% da empresa. A nova "supertele" nasce com uma dívida de R$ 45,6 bilhões. Novamente, receberá recursos do BNDES e dos fundos companheiros. O ministro Paulo Bernardo, das Comunicações, garante que essa fusão é uma "estratégia". Vá lá, desde que ele acredite que o Unibanco fundiu-se com o Itaú.

A carteira de ações do BNDESPar caiu de R$ 89,7 bilhões em 2011 para R$ 72,8 bilhões em 2012. A campeã do ramo de laticínios chamava-se LBR e quebrou. A Fibria, resultante da fusão da Aracruz (chumbada) com a Votorantim, atolou. O frigorifico Marfrig tomou R$ 3,6 bilhões no banco e acabou comido pela JBS, cujos controladores movem-se num perigoso mundo onde convivem a finança internacional e a política goiana. Já o Bertin teve que ser vendido logo depois de o BNDES entrar na empresa. (Até 2013, esse setor recebeu a maior parte dos investimentos do BNDES.)

O BNDES anunciou há meses que abandonou a estratégia da criação dos campeões nacionais. Falta só explicar quanto custou, quanto custará e que forças alavancaram os afortunados. Essa tarefa será fácil para alguns petistas e para o doutor Luciano Coutinho. Eles conhecem a história do banco.