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quinta-feira, 5 de junho de 2014

Brasil e Argentina, condenados ao atraso?: livro de Eduardo Viola e Hector Ricardo Leis

Uma resenha de um livro para o qual tive a honra de ter sido convidado para escrever um prefácio (acabou saindo quase uma introdução), alguns anos atrás, e que descubro agora nos sistemas de intercâmbio acadêmico, com plataforma de "depósito" de textos, de que participo também.

A resenha resume bem o sentido de atraso, perda de oportunidades, indolência, em que parecem se comprazer os dois maiores países da América do Sul. Aliás, foi mais ou menos o que também escrevi em meu Prefácio, que reproduzo ao final.

Paulo Roberto de Almeida


Revista Brasileira de Política Internacional

versão impressa ISSN 0034-7329

Rev. bras. polít. int. v.50 n.2 Brasília jul./dez. 2007

http://dx.doi.org/10.1590/S0034-73292007000200013 

RESENHA

Sistema internacional com hegemonia das democracias de mercado: desafios de Brasil e Argentina*

VIOLA, Eduardo & LEIS, Héctor Ricardo. Sistema internacional com hegemonia das democracias de mercado: desafios de Brasil e Argentina. Florianópolis: Insular, 2007, 232 p., ISBN: 978-85-7474-339-4.

Thiago Gehre Galvão
Professor de Relações Internacionais da Universidade Federal de Roraima – UFRR e doutorando em Relações Internacionais pela Universidade de Brasília – UnB (thiago.gehre@gmail.com)


Um duro retrato da realidade internacional: esta talvez seja a frase que melhor sintetiza o livro de Eduardo Viola, professor titular de Relações Internacionais da Universidade de Brasília, e Héctor Ricardo Leis, professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Após quase vinte anos do colapso da União Soviética as transformações operadas no sistema internacional agora podem ser melhor percebidas: coube aos autores descrevê-las de forma coerente e contundente.
A linha central de pensamento dos autores é que o sistema de estados que delineia a ordem internacional vigente é baseado na hegemonia das democracias de mercado. Nesse sentido, o protagonismo norte-americano só é válido em composição com outras grandes potências: juntas, como democracias de mercado consolidadas, fazem da democracia seu modelo político, do capitalismo de mercado sua moldura econômica definidora e da globalização seu veículo de manutenção ou transformação da ordem vigente. Ainda que exaltando o verdadeiro liberalismo, a análise de ambos aponta para uma valorização do progresso social e econômico como metas universais, em detrimento de orientações puramente ideológicas.

O objetivo da obra é o de apresentar ao leitor inteligente um retrato realista da cena internacional do século 21, desenhada não por incertezas e bifurcações, nem por antagonismos de classes e forças sociais, mas pela certeza da preponderância do liberalismo em construir um mundo em consonância com as demandas sociais e com o objetivo de preparar as novas gerações para lidar com a infinidade de velhos e novos desafios deste milênio, como terrorismo, pobreza e desigualdades globais, epidemias e problemas ecológicos (poluição, desflorestamento, escassez de água...).
Para tanto, os autores dividem a obra em três partes principais com cinco capítulos: tratam da rota de Brasil, Argentina e América do Sul rumo ao universo pós-histórico das democracias de mercado. No primeiro capítulo, O sistema internacional com hegemonia das democracias de mercado no início do século XXI, os autores se dedicam coerentemente a um esforço de conceitualização das principais categorias explicativas que subsidiam o argumento do livro, como globalização, sociedade do conhecimento, regime político e política exterior. Além disso, produzem um panorama do mundo no início do ano de 2007, numa preocupação de analisar a conjuntura atual das relações internacionais.
O segundo capítulo Brasil: modernização lenta e travada de uma sociedade de corte é dedicado a explicar, a partir do perfil sócio-político brasileiro, os entraves ao desenvolvimento nacional. Para os autores, o tipo de relação pessoal de privilégio e segregação promovido pelas elites nacionais é nefasto para as pretensões nacionais de potência, uma vez que "a lentidão do Brasil cobra um forte preço em termos de prosperidade e oportunidades" (p. 79).
Argentina: modernização parcial e retrocessos cíclicos de uma sociedade movimentista, terceiro capítulo da obra, discute a realidade do principal vizinho brasileiro e coloca em evidência a montanha russa histórica que representa o passado do país em sua investida internacional. Diferentemente do Brasil, marcado por uma lenta progressão no seu processo de desenvolvimento, a Argentina teve sua história marcada por rupturas e retrocessos que foram fatais em colocar o país numa situação periférica e de subdesenvolvimento. Esse descaminho histórico é promovido por movimentos (sociais, ideológicos, nacionalistas) que minam e corroem as bases da fortaleza institucional democrática.
Os capítulos quatro e cinco delimitam uma terceira parte da obra, na qual Viola e Leis ajustam o foco de análise para abarcar o todo sul-americano. No quarto capítulo, América do Sul e suas alternativas de integração, e no quinto, O dilema da América do Sul no século XXI: democracia de mercado com estado de direito ou populismo, os autores apontam para a trajetória declinante da região. Com exceção do Chile, bem sucedido nas reformas políticas e econômicas de liberalização, os outros países apresentam resultados pífios: a estagnação uruguaia, a orientação nortista do Peru, a peculiaridade colombiana (crescimento econômico e crise política interna), a constante instabilidade do Equador, a decadência política e social da Venezuela, a Bolívia como um país a beira da desintegração, o Paraguai como um precursor de Estado fracassado e Guiana e Suriname como portas de entrada dos ilícitos transnacionais. Além disso, na visão dos autores, o Brasil se perde na sua cruzada pela liderança regional, uma vez que a "principal potência da ‘América do Sul' são os EUA, e não o Brasil". O dilema sul-americano evidencia-se do encontro entre populismo e democracia: será o populismo capaz de gerar verdadeiras democracias de mercado? Para Viola e Leis a resposta é óbvia: o populismo só tende a esfacelar as sociedades em fatias irreconciliáveis!
Por um lado, a obra de Viola e Leis apresenta pequenos desvios: por ser uma análise essencialmente conjuntural incorre nas dificuldades inerentes a este tipo de abordagem, como não conseguir enxergar tendências de longa duração, nem acompanhar as modificações recentes da vida política doméstica e internacional. Por outro, compensa pela riqueza analítica e conceitual, contribuindo decisivamente para o campo de estudo das Relações Internacionais ao disseminar uma visão de mundo condizente com os anseios e expectativas de sociedades em desenvolvimento, como a brasileira e a argentina. Ademais, os autores apresentam colocações contundentes e afirmativas acerca da inserção de Brasil e Argentina em um mundo democrático desenvolvido, posicionando-se objetivamente em determinado locus do mundo das idéias. Por exemplo, afirmam que "o maior paradoxo do Brasil é produzir exclusão social em nome da inclusão" (p. 79) ou que "o futuro da Argentina parece ser o eterno retorno do movimento e a contínua decadência do país em ciclos de euforia e de depressão" (p. 171).
Viola e Leis apontam em seu livro para o surgimento de novas esperanças para os medos e ameaças da vida internacional após o colapso soviético e após os atentados terroristas de 11 de setembro de 2001. Em um novo mundo, no qual sobressai a figura do império norte-americano, desenvolvem a análise com base em um argumento maduro, longe de representar uma visão ingênua ou doutrinária sobre o papel dos EUA no mundo. Isto torna a obra uma referência para debates e discussões dentro do campo de relações internacionais, bem como em outras áreas conexas, algo pouco estimulado na academia brasileira. Além disso, conceitualmente, o livro avança ao apontar uma nova forma de compreender a distribuição de poder no mundo: não a partir de uma sociedade internacional global ou um espaço mundial, nem uma ordem unipolar ou unimultipolar – os autores falam de um sistema de hegemonia das democracias de mercado.
Em suma, os autores vislumbram um novo arranjo nas relações internacionais do século 21, semelhante ao surgido no início do século 19 na Europa. Duzentos anos depois, estaria emergindo um concerto democrático capitalista de mercado para ditar o ritmo da ordem internacional pós-guerra fria. Conforma-se, na visão dos autores, uma poliarquia democrática capitalista mundial para regular uma nova ordem em direção à homogeneização política e econômica. Por isso, a obra de Viola e Leis deve ser lida como uma lúcida saudação à era das democracias de mercado.
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Brasil e Argentina no contexto regional e mundial

Paulo Roberto de Almeida

Prefácio ao livro de
Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis:
Sistema Internacional com Hegemonia das Democracias de Mercado: Desafios de Brasil e Argentina (Florianópolis: Editora Insular; Programa San Tiago Dantas – CAPES, 2007)

O historiador Fernand Braudel – que confessou ter ficado “inteligente” no Brasil, para onde veio como jovem professor universitário nos anos 1930 – costumava separar os eventos rápidos da vida política dos movimentos mais lentos do processo econômico, e ambos das transformações seculares das estruturas sociais e das configurações civilizacionais, que se moviam a uma velocidade próxima à “história geológica”. Um outro historiador britânico adepto da “história lenta”, Lawrence Stone, dizia, por sua vez, que a história avança muito lentamente, como uma velha carroça desajustada, com os eixos rangendo e as rodas desalinhadas.
O mesmo parece se aplicar, sob nossos olhos, a certas configurações “ideológicas”, em especial aquelas derivadas da tradição revolucionária francesa, que criou todo o vocabulário e a coreografia que ainda agitam a política contemporânea. Alguns dos conceitos consagrados por essa velha tradição converteram-se, efetivamente, em “tradicionais”: eles estão desajustados aos requerimentos da vida moderna, mas continuam por aí, num deslocar errático e irregular, como os eixos rangentes de um velho carro de bois que ainda não foi aposentado pela modernidade.
Tomemos, por exemplo, os conceitos de esquerda e de direita, ou de progressista e conservador, geralmente identificados a valores, normas e princípios que seriam, cada um a seu modo, positivos ou negativos no plano das mudanças sociais. A esquerda estaria identificada com a justiça e a igualdade, lutando por uma distribuição mais equânime da riqueza, normalmente por via do distributivismo estatal e da solidariedade contratual. À direita restaria o papel de preservar as velhas estruturas, ressaltando o papel do esforço e do mérito individuais e das estruturas de mercado na promoção da prosperidade geral, aceitando, portanto, a desigualdade como um fato natural da vida. No plano social e político, a esquerda estaria sempre do lado dos humildes e oprimidos, lutando pelos direitos dos trabalhadores contra os patrões “exploradores”. A direita, obviamente, se alinharia com aqueles capitalistas de cartola e charuto, na missão de estender a dominação do capital aos mais diferentes cantos do planeta, concentrando ainda mais riqueza e poder, em detrimento dos povos da periferia e dos pobres dos países ricos.
Qualquer que seja a validade respectiva desses estereótipos para o mundo contemporâneo, não se pode recusar o fato de que a direita ainda apóia os seus discursos no liberalismo clássico, de antiga extração britânica, e que parte da esquerda, por sua vez, ainda pretende aplicar Marx ao contexto atual, repisando velhos argumentos classistas, anticapitalistas e antimercado, ao mesmo tempo em que clama por reivindicações igualitárias, sem muito embasamento na economia real. Na América Latina, em especial, o pensamento dito “progressista” ainda é estatizante, centrado na distribuição dos “lucros do capital” e voltado para um combate de retaguarda contra a marcha da globalização contemporânea.
O retrato pode parecer caricatural, mas é certo que a esquerda latino-americana, aliada no chamado movimento antiglobalizador a velhos sindicalistas, a jovens idealistas e a universitários em tempo integral, pretende extrair das antigas lições marxianas sobre a “dominação do capital” a necessidade de superar esse estado de coisas, rejeitando tudo isso que aí está, em nome de “um outro mundo possível”. Ela acaba, pateticamente, se rendendo a contrafações do modelo original, como se pode constatar em experiências regionais que demonstram uma filiação “genética” mais próxima do fascismo mussoliniano do que de um pretendido socialismo gramsciano. Em termos braudelianos, a esquerda congela seus conceitos e ações políticas no mundo quase estático das lentas mudanças “geológicas”, em lugar de adaptar-se a uma conjuntura histórica de transformações – para empregar o conceito de outro historiador francês, Ernest Labrousse –, que se descortina aos olhos de quem quer enfrentar a realidade sem as viseiras ideológicas do passado e aspira a entender o mundo como ele é, realmente, não como ela gostaria que ele fosse.
Curiosamente, a América Latina era apontada, até meados do século XX pelo menos, como o continente que lograria igualar-se aos países desenvolvidos, se perseverasse nos esforços de industrialização substitutiva, no planejamento estatal, no protecionismo comercial, nos subsídios à “indústria infante”, na integração introvertida e em políticas dirigistas que atribuíam ao Estado o papel principal na determinação quanto ao uso de fatores, na mobilização de capitais – por via inflacionária, uma forma de poupança forçada – e na alocação autoritária dos recursos assim capturados do conjunto da sociedade. Incidiu nesse tipo de recomendação o economista sueco Gunnar Myrdal – prêmio Nobel em 1974, junto com o liberal austríaco Alfred Hayek, por ironia da história – que, no seu tão aclamado quanto errôneo Asian Drama, vaticinava que a Ásia era sinônimo de miséria insuperável e que se havia países no Terceiro Mundo que tinham alguma chance de alçar-se aos patamares de bem-estar e riqueza dos desenvolvidos, estes eram os latino-americanos. Myrdal preconiza para todos o modelo indiano, feito de planejamento centralizado, empresas estatais em todos os “setores estratégicos” e descolamento dos mercados internacionais, que supostamente condenava esses países à exportação de commodities sujeitas às flutuações das bolsas de mercadorias. À época em que ele pesquisou e escreveu – início dos anos 1960 – a maior parte dos países da América Latina estava mais integrada à economia mundial do que os da Ásia, ostentava, na média, o dobro da renda per capita asiática e possuía instituições públicas – Estados consolidados, depois de 130 anos de independência, estruturas de mercado capitalistas – que seriam, no cômputo global, mais “weberianamente” pró-crescimento e pró-desenvolvimento do que as arcaicas tradições confucianas da região asiática. O itinerário seguido desde então pelas duas regiões não precisa ser relembrado: a Ásia decolou espetacularmente na economia mundial e nos indicadores de crescimento – tanto mais rapidamente quanto ela se afastou das políticas socialistas e estatizantes recomendadas por Myrdal – enquanto a América Latina manteve-se, com poucas exceções, no subdesenvolvimento, na desigualdade e na pobreza. Para isso também contribuíram experimentos populistas, irresponsabilidade emissionista, desrespeito aos direitos de propriedade, desconfiança da abertura ao exterior – comércio e investimentos – e uma insistência no centralismo estatizante que marca ainda hoje boa parte da esquerda neste continente.

Os autores deste livro conhecem um pouco dessa história, por experiência própria, se ouso dizer. Outrora pertencentes, como vários jovens dessa geração, ao universo do marxismo latino-americano, naturalizados brasileiros justamente em virtude da história trágica de equívocos conceituais e de erros práticos da esquerda argentina do último terço do século XX, eles estão muito bem preparados para enfrentar a tarefa de analisar a trajetória do Brasil e da Argentina no contexto das modernas democracias de mercado. A migração forçada de um país a outro, a descoberta de realidades políticas relativamente similares, ainda que sob roupagens distintas, e o comparatismo inevitável que esse tipo de situação cria, permitiu-lhes constatar, provavelmente, como os mesmos diagnósticos equivocados feitos por lideranças políticas, lá e aqui, redundaram em perda de oportunidades de inserção no mundo globalizado da atualidade, atrasando o processo de desenvolvimento e postergando a conquista da almejada prosperidade social.
De fato, a despeito de uma história singular, que corre em trilhas próprias, o Brasil e a Argentina reproduzem, em boa medida, equívocos similares de políticas públicas – tanto macroeconômicas quanto setoriais – cometidos por diferentes regimes políticos ao longo do século XX. Se o recurso a Suetônio cabe na sociologia comparada do desenvolvimento, pode-se dizer que os dois grandes da América do Sul exibem “vidas paralelas”. Tanto o Brasil como a Argentina padecem de insuficiências de desenvolvimento, mas a maior parte dos problemas de cada um deriva de erros de gestão macroeconômica e de escolhas infelizes das elites políticas ao longo da formação das nações e das dificuldades de ajuste aos desafios externos.
Durante muito tempo, grosso modo na primeira metade desse século, prevaleceu no Brasil a idéia de que a Argentina era bem mais desenvolvida, graças a um maior componente “europeu” na sua formação étnica e aos maiores cuidados com a educação do seu povo. Em contrapartida, ao aprofundar-se sua trajetória em direção à decadência econômica, prevaleceu na Argentina a noção de que o Brasil foi mais bem sucedido na industrialização e no fortalecimento da base econômica graças ao maior envolvimento de seu Estado na gestão macroeconômica, em lugar do liberalismo que teria sido praticado nas margens do Prata. Em ambos os países, líderes populistas e ditadores militares se revezaram nos comandos do Estado pretendendo construir a grandeza nacional com base no nacionalismo industrializante e no emissionismo inflacionário. Ambas as economias foram relativamente excêntricas – isto é, voltadas para os parceiros privilegiados no hemisfério norte – e os regimes políticos mantiveram, contra toda racionalidade e interesses imediatos, certo distanciamento competitivo, que em alguns momentos quase descambou para a hostilidade, isto é, para a corrida armamentista e uma possível disputa pela hegemonia regional.
Os dois países passaram, depois de superadas suas repúblicas “oligárquicas” – mais ou menos na mesma época, os anos 1930 –, por processos de modernização econômica e política, sob a forma de experimentos nacionalistas e populistas, identificados com as figuras de Vargas e Perón. A Argentina logrou, provavelmente, um maior grau de inserção social, mas o Brasil foi menos errático no processo de desenvolvimento, conseguindo consolidar a construção de uma base industrial que nunca teve paralelo na Argentina, que permanece ainda hoje uma economia agroexportadora. Os azares da Guerra Fria e as ameaças percebidas pelas classes médias como provenientes da sindicalização excessiva do sistema político conduziram ambos os países em direção de episódios mais ou menos prolongados de autoritarismo militar.
O período militar – responsável pela vinda dos autores ao Brasil – assumiu dimensões mais dramáticas na Argentina, com um custo elevado em vidas humanas e outras conseqüências menos desejáveis no plano das relações bilaterais, com o fenômeno que dois autores consagrados – Boris Fausto e Fernando Devoto, no livro Brasil e Argentina: um ensaio de história comparada (1850-2002) – chamaram de “afinidades repressivas”. As esquerdas padeceram muito no tempo das baionetas, mas talvez conservem, desse período, a mesma inclinação fundamental ao culto do Estado, para a autarquia econômica e o protecionismo instintivo que exibiam os militares. Hoje, se pretende avançar no desenvolvimento conjunto, mediante o Mercosul, mas as salvaguardas e os desvios ao livre comércio colocam limites à integração econômica.
Com efeito, a fase de redemocratização permitiu revigorar o processo de integração, que tinha começado no final dos anos 1950, desta vez segundo um formato bilateral – tratado para a formação de um mercado comum de 1988 – que logo se desdobrou numa dimensão quadrilateral, ao incorporar os dois vizinhos menores em 1991. O Mercosul logrou incluir outros países, como o Chile e a Bolívia (associados em 1996) e, mais recentemente, a Venezuela, mas sua zona de livre-comércio permanece incompleta, sua união aduaneira é perfurada por inúmeras exceções nacionais e o mercado comum, prometido para 1995, é um sonho ainda distante.
O itinerário dos dois países, mesmo contrastante nos planos cultural, social e político, não deixa de apresentar coincidências ou similitudes nos planos do desenvolvimento econômico e da inserção internacional, o que talvez permita retomar ao presidente argentino Roque Sáenz Peña uma frase, do início do século XX, que resume a visão otimista da cooperação bilateral, sempre invocada pelas autoridades engajadas no atual processo de integração: “Tudo nos une, nada nos separa”. Talvez – com a provável exceção dos campos de futebol –, mas a história raramente se contenta com projetos meramente retóricos de desenvolvimento ou de integração internacional. Nesse particular, o Brasil e a Argentina apresentam trajetórias erráticas, com impulsos positivos em determinadas épocas e atitudes defensivas em outras. O elemento mais notável, da presente fase, é provavelmente constituído pela incapacidade respectiva em empreender reformas que os coloquem em condições de se inserir de modo mais afirmativo na economia globalizada que caracteriza o Atlântico Norte e a região da Ásia Pacífico.

Os trabalhos compilados neste livro discutem as novas circunstâncias da economia global e os padrões atuais de organização política, com os problemas daí derivados para Estados, como o Brasil e a Argentina, que ainda estão construindo sua inclusão no novo sistema, que os autores chamam de “hegemonia das democracias de mercado”. A leitura destas páginas, impregnadas de conhecimento histórico e de racionalidade sociológica, permite constatar como são anacrônicas as demandas e reivindicações de alguns desses militantes de causas equivocadas, armados de slogans retirados de um já mundo desaparecido nas dobras da história – como os conceitos de “dependência” ou de “antiimperialismo” –, que insistem em defender causas que não são mais de vanguarda ou sequer progressistas. A oposição desses grupos e movimentos políticos a reformas institucionais que permitiriam inserir mais rapidamente os países da América Latina nas correntes mais dinâmicas da globalização – reformas política, previdenciária, trabalhista, tributária, sindical ou educacional – não é apenas conservadora, mas pode ser tachada de propriamente reacionária, em vista dos imensos problemas acumulados pelos países da região nesses aspectos que muito têm a ver com as perspectivas de emprego, renda e oportunidades de ascensão social de imensas massas ainda hoje excluídas de qualquer possibilidade de inserção produtiva no tecido social.
Os autores não deixam de confessar sua surpresa, logo na introdução, com o fato de que muitos intelectuais desenvolveram um agudo senso de anticapitalismo – sentimento que, no meu ponto de vista, consegue inclusive ser antimercado – , o que os fez cúmplices objetivos das piores barbaridades cometidas no século XX contra os direitos humanos e a democracia. Na América Latina, em particular, esse anticapitalismo visceral dos intelectuais obstaculizou a modernização econômica e social dos países, a começar pelo aggiornamento do próprio Estado, no sentido de libertá-lo, ou pelo menos distanciá-lo, da herança centralista e patrimonialista ibérica, em prol de uma visão do mundo que estivesse mais objetivamente em consonância com os requisitos de uma moderna “democracia de mercado”, aberta aos influxos da economia global.
Aparentemente incapazes de renovar conceitos e aceitar as novas realidades da economia mundial, os intelectuais da América Latina continuarão a mover-se, no futuro previsível, ao ritmo do “tempo geológico” de Fernand Braudel, arrastando-se, em grande medida, pelos caminhos da modernidade numa trajetória tão tortuosa e torturada quanto o permitido pela “velha carroça da história”, de que falava Lawrence Stone. Isto a despeito de se poder constatar, hoje em dia, que outros povos e países estão fazendo melhor e mais rápido no caminho da modernidade do que a quase totalidade da América Latina. A região poderia ser uma espécie de “Prometeu acorrentado”, se apenas grilhões materiais a prendessem a um passado mercantilista e patrimonialista, se meros impedimentos técnicos a impedissem de avançar mais aceleradamente no caminho do progresso tecnológico e da capacitação científica. Mas, os grilhões que a prendem ao atraso material e à irrelevância intelectual são de outra natureza: são propriamente mentais, invisíveis, se quisermos, ainda que alertas sejam regularmente lançados contra essa busca ativa pelo declínio econômico e pelo retrocesso político. Este livro, aliás, é um exemplo de alarme intelectual.
A insistência na velhas soluções estatizantes, na repetição dos mesmos erros do passado, a tendência a encontrar bodes expiatórios no estrangeiro e a alimentar teorias conspiratórias sobre as razões do nosso fracasso são tanto mais surpreendentes quanto estão disponíveis boas análises – por analistas individuais ou por organismos multilaterais – sobre as razões da trajetória errática e da miopia das elites. O mais surpreendente e frustrante é que continue a prevalecer, tanto na academia quanto na opinião pública, explicações simplistas, e geralmente equivocadas, sobre as causas de nossos problemas – que são de origem majoritariamente interna – e sobre as soluções que lhes seriam pertinentes. Não constitui surpresa, assim, se a cada classificação internacional de desempenho relativo – no crescimento, na educação, na competitividade, na tecnologia e em vários outros setores ainda –, a América Latina continua a ser ultrapassada por todas as demais regiões, com a possível exceção da África, ainda assim melhor colocada esta, nas taxas atuais de crescimento econômico. A julgar por certas “inovações” populistas recentes na região, a escolha parece ser por mais Estado, mais nacionalizações, menor atratividade do capital estrangeiro e, de forma não surpreendente, uma opção preferencial pelas soluções distributivistas e rentistas.
Acadêmicos experientes no debate intelectual em torno da “contra-reforma” modernista latino-americana, tanto pela sua vivência pregressa na Argentina, como pelo longo convívio nas universidades do Brasil, observadores atentos das realidades regionais e, à maneira de Raymond Aron, “espectadores engajados” na construção da ordem mundial pós-guerra fria e no grande espetáculo da globalização contemporânea, os dois autores, Eduardo Viola e Héctor Ricardo Leis, estão amplamente capacitados para oferecer uma análise de qualidade sobre os desafios do Brasil, da Argentina e de toda a região nessa difícil, mas indispensável, inserção no sistema internacional das democracias de mercado. O retrato que eles fazem da região, dos dois grandes da América do Sul em particular, não é muito otimista, mas é sem dúvida alguma necessário e bem-vindo, em face dos desafios remanescentes.
Intelectuais verdadeiros devem ostentar, antes de mais nada, espírito crítico, sem se deixar aprisionar pelas lutas políticas em curso na sociedade na qual vivem ou se enredar nas ideologias em competição na ágora universitária. A honestidade intelectual é o seu primeiro e único dever. Desse ponto de vista, nossos dois autores não se enquadram na antiga crítica sobre a “traição dos clérigos” de que falava Julien Benda. Ao contrário: eles estão em sintonia com as necessidades do tempo presente e fazem do seu ofício um instrumento crítico de esclarecimento da maioria, em prol do progresso social e em benefício da razão, como apreciaria Kant.

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais, diplomata, professor no mestrado em Direito do Centro Universitário de Brasília (Uniceub).

Brasília, maio de 2007

quinta-feira, 30 de maio de 2013

Comissao da (In)Verdade e Direitos Humanos Parciais, Seletivos - Hector Ricardo Leis


Direitos humanos, menores e verdade

30 de maio de 2013 | 2h 04
Héctor Ricardo Leis* - O Estado de S.Paulo
Foi com grande satisfação cidadã que recebi a Lei 12.528/2011, dando origem à Comissão Nacional da Verdade (CNV), com a finalidade de esclarecer as graves violações de direitos humanos ocorridas entre 18 de setembro de 1946 e 5 de outubro de1988, a fim de efetivar o direito à memória e à verdade histórica e promover a reconciliação nacional.
A leitura do livro Direito à Memória e à Verdade: Histórias de Meninas e Meninos Marcados pela Ditadura, publicado em 2009 pela Secretaria Especial dos Direitos Humanos da Presidência da República, com a assinatura do presidente Luiz Inácio Lula da Silva e do ministro Paulo Vannuchi, fez-me pensar que o trabalho da CNV era oportuno e fundamental para esclarecer aqueles anos. Lendo esse livro, porém, tive uma clara percepção da confusão reinante no governo Lula com relação às violações dos direitos humanos de menores em conflitos armados.
O Direito Internacional considera uma violação dos direitos humanos o recrutamento de menores para participarem de conflitos armados. No Decreto n.º 5.006, de 8 de março de 2004, o então presidente da República, Luiz Inácio Lula da Silva, promulgou o Protocolo Facultativo à Convenção sobre os Direitos da Criança, relativo ao envolvimento de crianças em conflitos armados, adotado em Nova York em 25 de maio de 2000. Essa importante norma do Direito Internacional estabelece no seu artigo 4.º: "1. Os grupos armados distintos das forças armadas de um Estado não deverão, em qualquer circunstância, recrutar ou utilizar menores de 18 anos em hostilidades. 2. Os Estados Partes (como é o caso do Brasil) deverão adotar todas as medidas possíveis para evitar esse recrutamento e essa utilização, inclusive a adoção de medidas legais necessárias para proibir e criminalizar tais práticas".
Cinco anos depois de o Brasil ter promulgado o protocolo, no entanto, os autores do livro acima mencionado se conformaram em denunciar o terrível crime dos agentes do Estado contra os menores, omitindo-se de caracterizar o fato, explicitamente reconhecido no texto, de que menores foram recrutados por diversas estruturas de organizações guerrilheiras e/ou terroristas. A seguir fragmentos do livro: "Secundaristas se engajaram, em plena adolescência, nas organizações da resistência clandestina, e muitos participaram em ações de guerrilha". O livro dá destaque a dois casos: o de Nilda Carvalho Cunha (1954-1971), morta depois de selvagem tortura, que tinha ingressado "muito cedo na organização clandestina Movimento Revolucionário 8 de Outubro (MR-8)", e o de Marco Antônio Dias Baptista (1954-1970), o mais jovem desaparecido político brasileiro, que "precoce filiou-se à Frente Revolucionária Estudantil, ligada à VAR-Palmares".
Lembremos que a Lei 12.528/2011 foi pensada para estabelecer a verdade dos fatos. Nesse caso, é um fato reconhecido pelo próprio governo brasileiro que no Brasil, no fim dos anos 1960 e início dos 1970, houve recrutamento de menores para participarem, de um modo ou outro, de grupos armados. Por que, então, não foi feito sequer um pequeno comentário a esse respeito? Não se trata de aplicar uma norma de 2004 com caráter retroativo a coisas que ocorreram 30 ou 40 anos antes, trata-se, isso sim, de caracterizar corretamente as violações dos direitos humanos que houve no passado para que elas não voltem a repetir-se. Um ato que criminal se não se caracteriza como tal é uma falta com a verdade e a memória histórica.
Não interessa trazer a polêmica, mas apenas mencionar que, segundo alguns autores, o recrutamento de menores de 15 anos para participarem de conflitos armados não é um crime qualquer, mas um crime contra a humanidade. Antecipo-me a lembrar ao leigo que o consentimento de um menor para um crime não descaracteriza em absoluto o ato criminal em si, nem as responsabilidades por ele que cabem a seus participantes.
A fim de que as autoridades competentes pudessem tratar do assunto, em 12 de março deste ano encaminhei à Comissão Nacional da Verdade uma denúncia do caso. No ato do envio solicitei à CNV que me informasse se a minha denúncia seria aceita, já que eu não encontrava no seu site nenhum grupo de trabalho que tivesse por objetivo investigar as possíveis violações de direitos humanos cometidas pelos grupos guerrilheiros e/ou terroristas. Nenhum dos 13 grupos de trabalho existentes cobria esse objetivo. Paradoxalmente, a CNV sintonizava o espírito do livro, esquecendo ou ignorando que a Lei 12.528 não abria nenhuma exceção para esses crimes.
Passado um mês do envio da minha denúncia, a ausência de qualquer resposta me levou a encaminhar mais dois pedidos àquela comissão para que confirmasse a sua aceitação ou não. Como tampouco aconteceu nada, escrevi igualmente para a Controladoria-Geral da União para perguntar-lhe o que devia fazer diante da falta de resposta da CNV. Tampouco neste caso tive resposta.
Depois de mais de dois meses de silêncio, estou sendo obrigado a fazer públicas a minha denúncia e a desatenção que estou recebendo da parte de órgãos públicos. Preferi levar antes minha denúncia às autoridades porque considero que se trata de uma questão delicada que nem sempre poderá ser bem entendida pela opinião pública. Mas em questões de interesse público o silêncio é sempre pior do que um eventual mal-entendido.
Sou também consciente de que a minha denúncia não envolve a mesma gravidade que as denúncias de violações dos direitos humanos por grupos de repressão do Estado. Mas a história dos direitos humanos mostra que não deve existir nenhuma omissão nessa área. Havendo, ficam comprometidos a verdade e o futuro.  
* Cientista político, é membro do Instituto Millenium