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domingo, 10 de dezembro de 2023

Lula precisa pensar um pouco no Brasil - Rolf Kutz (O Estado de S.Paulo)

 Lula precisa pensar um pouco no Brasil

O Brasil também precisa de Lula

Presidente poderia mudar o quadro da economia se indicasse, de forma clara e crível, um compromisso de boa gestão fiscal em seu segundo ano de governo

Rolf Kutz

O Estado de S.Paulo, 10/12./2023

Tendo falhado na promoção da paz entre Rússia e Ucrânia e Israel e Hamas, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva talvez tenha algum sucesso, enfim, se der maior atenção ao Brasil e a seus vizinhos. O ditador venezuelano, Nicolás Maduro, um democrata, segundo Lula, andou rosnando e ameaçando tomar um pedaço da Guiana. O presidente brasileiro pediu bom senso aos governantes dos dois países. Mais uma vez, tratou vilão e vítima como se fossem equivalentes, como havia feito depois da guerra na Ucrânia. Mas foi mais discreto que em outras ocasiões, evitando, talvez, impor algum incômodo ao companheiro chavista. A diplomacia brasileira também deu atenção, nos últimos dias, à eleição na Argentina. Lula enviou saudações ao povo argentino e ao recém-eleito, Javier Milei, sem, no entanto, mencionar seu nome. O desbocado Milei o havia chamado de corrupto.

Entre o belicismo de Maduro e a grosseria de Milei, o presidente Lula parece ter tido pouco tempo, no início deste mês, para avaliar as condições do Brasil e cuidar das expectativas. A economia brasileira cresceu 3,1% nos 12 meses até setembro, em relação aos 12 meses anteriores. Mas perdeu vigor, no período recente, e no terceiro trimestre a produção foi apenas 0,1% maior que a do segundo. A agropecuária, há muitos anos o setor mais eficiente e mais dinâmico da economia brasileira, desta vez despencou 3,3%.

O resultado geral foi salvo pela indústria e pelos serviços, ambos com crescimento trimestral de 0,6%. Mas de janeiro a setembro a produção do campo, avaliada a preços de mercado, superou por 18,1% a de um ano antes, enquanto a da indústria, medida pelo mesmo critério, avançou apenas 1,2%. Além disso, o desempenho industrial, no período de julho a setembro, foi 8,3% inferior ao de dez anos antes.

Maior e mais desenvolvida economia da América Latina, o Brasil continua incapaz de reverter, de forma segura, a desindustrialização iniciada no final do século passado. O quadro fica mais feio quando se vê o desempenho da indústria de transformação, porque o conjunto da atividade industrial vem sendo sustentado pelas contribuições positivas das indústrias extrativas e daquelas produtoras e distribuidoras de eletricidade, gás e água.

Classificado por instituições multilaterais como economia de industrialização recente, o Brasil talvez seja descrito de modo mais preciso como um país em processo de desindustrialização.

O ministro da Indústria e do Comércio, vice-presidente Geraldo Alckmin, parece reconhecer o enfraquecimento do setor industrial. Já anunciou um esforço de neoindustrialização, mas tem sido difícil, até agora, perceber os avanços dessa política. Com juros muito altos, há pouco estímulo para o investimento em expansão e modernização do sistema empresarial. Mas o custo financeiro, embora seja um problema evidente, é apenas parte dos obstáculos.

Embora prometa a retomada do crescimento, o presidente Lula nunca apresentou um plano de governo bem estruturado e detalhado. Além disso, jamais se comprometeu claramente com a estabilidade fiscal, mesmo depois de seu ministro da Fazenda, Fernando Haddad, ter fixado para 2024 a meta de déficit zero. O arcabouço fiscal enviado ao Congresso poderia valer como um contrato de austeridade, mas só se o discurso presidencial indicasse uma disposição inequívoca de buscar esse equilíbrio.

Essa busca deveria incluir, obviamente, a aceitação do corte de gastos. Tanto melhor se essa política incluísse uma racionalização administrativa. Mas isso implicaria, certamente, readequação do pessoal e do aparelho administrativo. São noções incompatíveis com a criação de cargos e até de ministérios para concretizar negociações políticas e acomodar aliados.

Quando se combinam essas acomodações e a evidente resistência à ideia de cortes orçamentários, fica mais difícil apostar num esforço de arrumação fiscal nos próximos meses. Fica mais difícil, portanto, prever uma queda significativa dos custos financeiros no primeiro semestre de 2024. Essa queda vai depender, em parte, das expectativas dos membros do Copom, o Comitê de Política Monetária do Banco Central. Dependerá também da avaliação da política fiscal pelo pessoal do mercado financeiro. As avaliações, por enquanto, indicam ceticismo.

As perspectivas poderão ficar pouco mais claras quando o Copom anunciar os novos juros básicos, na quarta-feira, e apresentar a reavaliação das condições econômicas. Por enquanto, o mercado calcula uma redução dos juros básicos de 12,25% para 11,75%, neste fim de ano. O cenário inclui inflação de 3,92% em 2024 e juros de 9,25% no final do próximo ano – uma taxa ainda incompatível com uma economia vigorosa. Mas a ideia de uma economia solta e próspera está fora desse quadro. As projeções apontam expansão econômica de apenas 1,50% nos próximos 12 meses. O presidente Lula poderia mudar esse quadro se indicasse, de forma clara e crível, um compromisso de boa gestão fiscal em seu segundo ano de governo. Com mais confiança, empresas e consumidores cuidariam do crescimento.

terça-feira, 14 de março de 2023

A nova ordem internacional e o Brasil - Rubens Barbosa (OESP)

 Concordo com a parte histórica sobre a volta da Guerra Fria. Discordo RADICALMENTE da hipócrita “neutralidade” do Brasil, objetivamente pró-Putin. Como disse Rui Barbosa, não há neutralidade ou imparcialidade entre a Justiça e o crime. O Brasil é PARTE do Ocidente e deve DEFENDER a Carta da ONU e sua própria Constituição. Não precisa aderir à guerra, mas tem a OBRIGAÇÃO de condenar a Rússia e EXIGIR a retirada das tropas invasoras, aliás desde a Crimeia, que Dona Dilma ignorou, ao arrepio da tradição brasileira de estrita adesão ao Direito Internacional.

Paulo Roberto de Almeida 

A nova ordem internacional e o Brasil
O Estado de S. Paulo | Espaço Aberto
14 de março de 2023

Rubens Barbosa

Depois da bipolarização da guerra fria, com a queda do muro de Berlim em 1989 e o fim da União Soviética em 1991, surgiu uma nova ordem global. Emergiu um mundo unipolar com os EUA como a única superpotência e com a globalização financeira, econômica e comercial, gerando a expansão econômica liberal e o crescimento da economia global. Essa ordem mundial começou a mudar na primeira década do século 21 com a volta da China como potência e o início da disputa com os EUA pela hegemonia global.

A guerra da Rússia na Ucrânia, o fato mais relevante desde a queda do muro de Berlim, em 1989, marca o início de uma nova era e, ao contrário da situação que prevaleceu nos últimos 20 anos, representa a prevalência da geopolítica, com ênfase na segurança nacional, sobre a economia e a globalização. Sem perspectiva para a suspensão das hostilidades na Ucrânia, é real a possibilidade de escalada do conflito com a utilização de armas nucleares táticas de consequências imprevisíveis. O rearmamento da Alemanha e do Japão, com o aumento dos gastos com defesa, o esvaziamento do G-7 e do G20, além dos custos elevados da energia, são outras características da nova ordem internacional, que ocorre simultaneamente à consolidação da nova ordem econômica global.

Nesse contexto, está se conformando um mundo dividido em tomo de novos eixos, com a perspectiva de confrontação do Ocidente (EUA e Europa) com a Eurásia (China, Rússia e outros países da Ásia). Emerge, na narrativa ocidental, um mundo bipolar, mas em outras bases, visto que a disputa entre Washington e Pequim não é sobre a supremacia ideológica ou militar, mas econômica, comercial e tecnológica, até aqui. Na visão chinesa e russa, surge uma ordem multipolar, pós-ocidental, a do Ocidente versus o resto do mundo. De um lado, acelerou uma aliança estratégica, sem limites, em todas as áreas entre a China e a Rússia e, de outro, fortaleceu a aliança dos EUA com os países membros da Otan com o apoio à Ucrânia.

Hoje, considerações de ordem geopolítica impactam sobre a política externa, de defesa e comercial de todos os países. Apesar da declaração de Joe Biden de que não vai pedir que os países escolham um lado na divisão global, não será surpresa se lealdades começarem a ser cobradas, sobretudo se houver uma escalada bélica e o conflito se ampliar além da Ucrânia. O governo de Washington está discutindo uma nova postura no relacionamento bilateral com a China e medidas contra países que ajudam a Rússia a contornar sanções. Restrições no comércio de semicondutores e de produtos de uso dual, como produtos eletroeletrônicos, de telecomunicações, de tecnologia da informação e de lazer, chips e sensores deverão surgir.

País tem de defendei* seus valores ocidentais e preservar seus interesses asiáticos. Será importante evitar alinhamentos automáticos

Os EUA estão em guerra não declarada em duas frentes com a Rússia e com a China. A Estratégia de Segurança Nacional norte-americana, recém-divulgada, e o discurso de Xi Jinping, no Congresso do Partido Comunista, confirmam isso. A guerra fria, do ângulo do establishment dos EUA, nunca terminou, e agora, no Congresso, adquire formas irracionais e paranóicas em relação à China. O ministro do Exterior chinês advertiu para os riscos de um conflito direto com os EUA, caso não cessem as medidas contra Pequim. As relações entre EUA e China encontram-se no nível mais baixo da História, com a crescente tensão em relação a Taiwan, a possibilidade de entrega de armas à Rússia e a expansão dos interesses da Otan no Mar do Sul da China, agravadas pelo incidente com balão chinês em território norte-americano e as medidas de restrições comerciais (semicondutores) anunciadas por Washington.

Caso esse cenário se confirme, países como o Brasil terão de enfrentar difíceis opções de política externa. O Brasil foi colocado pelos EUA como aliado estratégico extra-Otan e faz parte do Brics com a Rússia, índia, China e África do Sul. Compartilhando valores do Ocidente (democracia, livre comércio, imprensa livre) e com estreitos laços comerciais, econômicos, culturais e de defesa com os EUA e países europeus, o Brasil tem hoje interesses concretos a defender na Ásia, nossa maior parceira comercial. O Brasil tem de defender seus valores ocidentais e preservar seus interesses asiáticos. Ao contrário dos que defendem que o Brasil terá de escolher um lado - o dos EUA -, será importante evitar alinhamentos automáticos, livre de influências ideológicas e geopolíticas. O governo brasileiro já vem sendo confrontado com essas opções em votações nos organismos internacionais e em gestões diplomáticas, como no caso do não fornecimento de munição para tanques na Ucrânia e na autorização para navios de guerra iranianos entrarem em portos nacionais. Ativismo diplomático, contudo, como a iniciativa de criar um grupo da paz para a suspensão das hostilidades na Ucrânia, não terá êxito.

A grande maioria dos países em desenvolvimento da África, América Latina e Ásia tem-se manifestado contra a divisão do mundo. A exemplo da índia, o Brasil, reconhecendo as novas realidades mundiais, deveria manifestar formal e publicamente sua posição de independência em relação aos dois lados, acima de ideologias ou preferências partidárias, na defesa estrita de seus interesses políticos, econômicos e comerciais.

PRESIDENTE DO IRICE, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS


terça-feira, 26 de julho de 2022

A Otan e o Brasil - Rubens Barbosa, O Estado de S.Paulo

 

 

A Otan e o Brasil

Não está claro quais são as obrigações que decorrem da atual situação do País, convidado para ser parceiro estratégico do tratado.

Rubens Barbosa, O Estado de S.Paulo 

26 de julho de 2022 | 03h00 

Por inspiração dos EUA, a Organização do Tratado do Atlântico Norte (Otan) foi criada em 1949 como parte de uma rede de defesa do Ocidente, no início da guerra fria com a URSS. Em 1955, surgiu o Pacto de Varsóvia, que, comandado pela URSS para se contrapor à Otan, foi extinto com o fim da União Soviética. Ao longo de sete décadas a Otan atravessou várias fases e implementou diversos conceitos estratégicos, passando de uma aliança militar dissuasória, destinada à defesa coletiva territorial, para um instrumento político-militar, voltado para a defesa dos interesses dos países-membros além de seus limites originais. A expansão da Otan nos anos recentes – ao contrário das conversações mantidas pelo secretário de Estado James Baker e pelo primeiro-ministro Helmut Kohl, da Alemanha, com Mikhail Gorbachev em 1991, quando do desaparecimento da URSS – coloca desafios para todos os países, agravados a partir da guerra da Rússia contra a Ucrânia. 

A inclusão de novos membros a partir de 1997, a intervenção na Iugoslávia em 1999, a inclusão da Suécia e da Finlândia e a redefinição de sua estratégia em junho de 2022 evidenciam a expansão dos limites de atuação da Otan e a ampliação de seus interesses, vistos como ameaçados, o que já vem acarretando um aumento das despesas militares de todos os países-membros e a mudança da política de Defesa da Alemanha, depois de quase 70 anos. 

Cabe mencionar algumas decisões tomadas pela Otan que afetam ou podem afetar interesses brasileiros, a começar pela diretriz estratégica de 2010, seguida de decisões recentes tomadas na reunião de alto nível de Madri, em junho de 2022. 

Na definição do Conceito Estratégico da Otan em 2010, o Atlântico Sul não foi incluído como área geoestratégica prioritária, o que não exclui totalmente a possibilidade da atuação da organização “onde possível e quando necessário”, caso os interesses dos membros sejam ameaçados. Portugal, nessa discussão, apoiou a Iniciativa da Bacia do Atlântico, que previa a unificação dos oceanos, com a incorporação dos assuntos do Atlântico Sul no escopo estratégico da organização. O Brasil sempre deixou clara sua reserva no tocante às iniciativas que incluam também a Bacia Atlântica e, via de consequência, o Atlântico Sul, como área de atuação da Otan. O sul do Atlântico é área geoestratégica de interesse vital para o Brasil. A Política Nacional de Defesa menciona o Atlântico Sul como uma das áreas prioritárias para a defesa nacional e amplia o horizonte estratégico para incluir a parte oriental do Atlântico Sul, mais a África Ocidental e Meridional. 

Na reunião de cúpula em Madri, em junho passado, os países-membros, na maior revisão estratégica dos últimos 30 anos, redefiniram a estratégia da Otan e declararam a Rússia como sendo a ameaça mais direta e significativa à paz e à segurança. E incluíram a China como um desafio aos interesses de seus membros, além de terem dado prioridade a novas questões, como a de mudança de clima. A redução das emissões de gás de efeito estufa passou a ser um objetivo que estará presente em todas as tarefas essenciais da Otan, por meio de suas estruturas políticas e militares. 

A inclusão da China como um desafio justificou o convite, pela primeira vez na História, do Japão, da Coreia do Sul, da Austrália e da Nova Zelândia para participar do encontro e assinar dois acordos sobre defesa cibernética e segurança marítima. A esse importante desenvolvimento junte-se o pacto estratégico entre os EUA, Reino Unido e Austrália para a aquisição de submarinos, inclusive nucleares, e o acordo entre os EUA, Índia, Emirados Árabes Unidos e Israel (I2U2) para mostrar presença no Mar do Sul da China e na defesa de Taiwan. Na prática, com esse novo conceito estratégico, a Otan ampliou ainda mais sua expansão e retomou a doutrina da guerra fria, que, para muitos setores dos EUA e da Europa, nunca havia desaparecido. 

A nova guerra fria, agora contra a China e a Rússia, poderá levar a uma nova divisão do mundo entre o Ocidente e a Eurásia. 

Qual a repercussão deste novo quadro geopolítico para o Brasil? Nos últimos anos, o Brasil vem sendo associado à Otan, com a designação, pelo presidente Donald Trump no início do atual governo brasileiro, como um aliado prioritário dos EUA extra-Otan, e, posteriormente, convidado para ser parceiro estratégico do tratado, podendo ter acesso aos seus equipamentos militares de forma preferencial e tornar o País elegível para maiores oportunidades de intercâmbio, assistência militar, treinamentos conjuntos e participação em projetos. 

Não está claro quais são as obrigações que decorrem dessa situação nem se houve entendimentos posteriores do governo brasileiro com as autoridades da Otan. Não há informação sobre se a nova política de segurança em relação à mudança de clima voltará sua atenção também para a Amazônia, nem se a Otan reagirá em relação ao transporte de combustível no Atlântico Sul para o submarino nuclear brasileiro em exame na Agência Internacional de Energia Atômica. Fica a questão, ainda, se a Otan ou os EUA (na próxima visita do secretário de Defesa ao Brasil) vão reagir ao anunciado exercício naval de Rússia, China e Irã na América Latina e no Caribe, com base na Venezuela, em agosto. 

PRESIDENTE DO IRICE, É MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

 

 

quinta-feira, 9 de junho de 2022

Eleições 2022: Bolsonaro abandonou o Brasil à fome - Editorial Estadão

 O Brasil foi abandonado

Bolsonaro e seus sócios do Centrão largaram o País à própria sorte para cuidar de seus interesses eleitorais. Resultado: 33 milhões de brasileiros com fome

Notas & Informações, O Estado de S.Paulo 

09 de junho de 2022 | 03h00 

O País voltou a ser assombrado pelo espectro da fome em uma escala que não se via desde a década de 1990. De acordo com os dados do 2.º Inquérito Nacional sobre Insegurança Alimentar no Contexto da Pandemia de Covid-19, divulgados ontem, são 33,1 milhões de brasileiros que dormem e acordam todos os dias sabendo que não terão o que comer. Além desse inacreditável contingente de nossos concidadãos vivendo em condições sub-humanas, equivalente às populações da Bélgica, de Portugal e da Suécia somadas, mais da metade da população brasileira (58,7%) está submetida a algum grau de insegurança alimentar (leve, moderada ou grave). 

Aí está a dimensão do retrocesso patrocinado por um dos piores presidentes da história brasileira. O nome de Jair Bolsonaro estará indelevelmente ligado à degradação da dignidade de milhões de seus governados, seja por sua comprovada incapacidade moral e administrativa para o cargo, seja por sua notória aversão ao trabalho. A fome já seria inadmissível mesmo que fosse algo localizado; sendo verificada em larga escala, mesmo em um país em que há fartura de alimentos, trata-se de uma atrocidade. 

Bolsonaro e seus sócios do Centrão no Congresso abandonaram o País à própria sorte porque não estão interessados no bem-estar dos brasileiros a não ser na exata medida de seus objetivos eleitoreiros. Por essa razão, há profunda desconexão entre as prioridades da atual cúpula do Estado e as da esmagadora maioria dos cidadãos – a começar pela mais primária delas, a de fazer três refeições por dia. 

Um governo que fosse digno do nome, com apoio de um Legislativo igualmente cioso das necessidades mais prementes daqueles a quem cumpre representar, estaria empenhado dia e noite em garantir o bem-estar de seus governados antes de qualquer coisa, proporcionando-lhes as condições mínimas para uma vida digna por meio de políticas públicas responsáveis, bem elaboradas e implementadas. Mas não é isso o que acontece.  

Desde que assumiu o cargo, Bolsonaro só tem olhos para a reeleição. Nunca governou de fato o País nem jamais demonstrou interesse em fazê-lo. Populista, toma decisões sempre de supetão e sem qualquer planejamento, para responder a questões imediatas, deixando para depois ou simplesmente ignorando problemas de longo prazo. Assim chegamos à fome. 

Os presidentes das duas Casas Legislativas, por sua vez, também parecem estar mais preocupados com a recondução aos cargos na próxima legislatura do que em aliviar o padecimento real da população. Só isso explica a chancela às teses estapafúrdias de Bolsonaro, como essa obsessão em torno dos combustíveis, como se a causa raiz para o aumento do número de brasileiros passando fome do ano passado para cá (mais 14 milhões de pessoas) fosse o preço do litro do diesel e da gasolina. 

A fome que dói nesses tantos milhões de brasileiros não decorre diretamente da pandemia de covid-19, da delinquência de Vladimir Putin ao invadir a Ucrânia nem da alta dos preços dos combustíveis. A fome é o resultado mais perverso da acefalia governamental do País há quase quatro anos. É corolário desse arranjo macabro engendrado por um presidente da República extremamente fraco que, para não ser ejetado do poder, se viu obrigado a vender sua permanência no cargo a oportunistas no Congresso, franqueando-lhes nada menos que o controle sobre parte do Orçamento sem a necessidade de prestar contas. 

A pusilanimidade do presidente da República, portanto, explica muita coisa. Mas, em defesa de Bolsonaro, é bom dizer não se teria chegado ao atual estado de coisas inconstitucional sem a colaboração decisiva de parte considerável da classe política, que ignora o que vem a ser interesse público.  

Conforme a Constituição, a “dignidade da pessoa humana” é fundamento da República Federativa do Brasil (artigo 1.º, III), e um dos objetivos dessa República é “erradicar a pobreza e a marginalização e reduzir as desigualdades sociais e regionais” (artigo 3.º, III). Além disso, o artigo 6.º cita a “alimentação” como um dos direitos sociais. Para o consórcio político que sustenta o bolsonarismo, essas determinações são letra morta. 


terça-feira, 8 de fevereiro de 2022

O Brasil e a OCDE: um longo caminho - Rubens Barbosa (O Estado de S.Paulo)

 O Brasil e a OCDE: um longo caminho


O início das conversações é o ponto de partida de um projeto de país e da definição do lugar do Brasil no mundo
   
Rubens Barbosa, O Estado de S.Paulo
08 de fevereiro de 2022 | 03h00

O Brasil, junto com mais cinco países, recebeu resposta positiva do diretor-geral da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE) ao pedido formulado em 2017 de ingresso na Organização, com a informação de que cada um deles deverá concordar com os termos, condições e processos para a adesão. No mesmo dia, o Itamaraty preparou resposta assinada pelo presidente Bolsonaro notando que, “sem qualquer hesitação, poderia garantir que o Brasil está pronto para iniciar o processo de adesão à OCDE”. Na carta, o presidente afirma que “o Brasil está alinhado às prioridades dos países membros no tocante ao comércio e investimento, à governança política e nos esforços efetivos para a proteção ao meio ambiente e ação positiva na mudança de clima”.

É importante entender como se desenrolará todo o processo. Depois de quatro anos, superada a resistência dos EUA em permitir o aumento dos atuais 38 membros, começará o longo processo de negociação. Será preparado um roteiro pela OCDE refletindo os avanços nos últimos quatro anos e serão criados 20 comitês para analisar a consistência das visões, das políticas e das ações em relação à regulamentação e aos princípios e às prioridades da Organização. Não se trata de uma negociação, no sentido de que cada lado cede um pouco para se conseguir um consenso. Nas tratativas, os países membros examinarão como os países que demandam o ingresso se adaptaram ou se adaptarão às regras existentes na Organização. Em outras palavras, a OCDE não se ajustará aos países, mas os países terão de se adaptar à OCDE, com prazos para ajustes e exceções definidos de comum acordo. Tudo isso sem prazo para terminar. A palavra final será dos países membros, que decidirão pela adesão por unanimidade.

O Brasil, nos últimos governos, tem demonstrado seu compromisso em trabalhar em estreita colaboração com a OCDE. Além de participar de mais de 30 comitês (o primeiro – do aço – a partir de 1994, quando, como subsecretário econômico do Itamaraty, tive de convencer muita gente), o País já é parte de 103 dos atuais 251 instrumentos da OCDE.

O processo não será fácil, porque vai além das afirmações positivas mencionadas na carta de Bolsonaro. Para mostrar as contradições e as dificuldades que terão de ser enfrentadas nos entendimentos, comento dois itens dessa carta. Notei a ausência de qualquer referência a ações anticorrupção, apesar da existência na OCDE de grupo para acompanhar as ações anticorrupção no Brasil. Por curiosa coincidência, no mesmo dia da resposta do diretor-geral da OCDE, a Transparência Internacional divulgou seu Index sobre a percepção da corrupção no setor público, no qual se vê o Brasil caindo algumas posições. O segundo é a questão do meio ambiente, na qual o presidente ressalta “o compromisso do governo com as metas do Acordo de Paris, e o apoio, na recente COP-26, à meta de zerar as emissões globais de gases do efeito estufa até 2050, por meio de reduções de emissões possibilitadas por investimentos públicos e privados. Nesse contexto, Bolsonaro afirma “estar comprometido em adotar e implementar completamente políticas públicas em linha com suas metas climáticas, tomando ações efetivas, incluindo trabalhar coletivamente para parar e reverter a perda florestal e a degradação do solo até 2030, enquanto entrega desenvolvimento sustentável e promove uma transformação rural inclusiva”, como previsto na Declaração de Líderes de Glasgow sobre Florestas e Uso do Solo, do qual o Brasil é signatário. Como é de conhecimento publico, não é o que está ocorrendo na prática, pois continuam sem repressão os ilícitos na Amazônia, com queimadas, desmatamento e uma intensa atividade de garimpo, inclusive em terras indígenas. Por isso, o Brasil pode ser impedido de entrar, como disse Macron e deixou implícito, em nota, o Departamento do Tesouro dos EUA. Também por coincidência, no mesmo dia da resposta presidencial, Bolsonaro anunciou cortes de recursos na área ambiental nos vetos à lei orçamentária de 2022, com forte impacto no controle de incêndios florestais e na conservação e uso sustentável da biodiversidade.

O início das conversações sobre o ingresso do Brasil na OCDE não é “o reconhecimento de um grande país”, mas o ponto de partida de um projeto de país e da definição do lugar do Brasil no mundo.

Que País queremos? Quais as perspectivas para os próximos anos? Como o Brasil, país continental, que já foi uma das dez maiores economias do mundo, potência ambiental e agrícola, vai atuar em um cenário global em constante transformação?

O tema da adesão à OCDE não poderá ser ignorado nos debates da próxima eleição presidencial justamente pelas contradições existentes e porque vai apontar para o rumo que a sociedade brasileira quer seguir. O PT sempre ficou contra o ingresso do Brasil na OCDE, por não ver vantagem e ser contra nossa soberania. Lula, que recusou em 2007 convite para o ingresso, vai manter essa posição ou vai aceitar a entrada do Brasil com todas as mudanças necessárias, muitas das quais seu partido ficou contra? Bolsonaro, se reeleito, vai mudar a política ambiental em relação a Amazônia? Como ficará a luta contra a corrupção? O resultado das eleições será aceito, sem contestação?

Como dizia o filosofo, o difícil não é fácil.

RESIDENTE DO INSTITUTO DE RELAÇÕES INTERNACIONAIS E COMÉRCIO EXTERIOR (IRICE) E MEMBRO DA ACADEMIA PAULISTA DE LETRAS

https://opiniao.estadao.com.br/noticias/espaco-aberto,o-brasil-e-a-ocde-um-longo-caminho,70003972280

sábado, 30 de outubro de 2021

Tudo o que une petistas e bolsonaristas (e não só no Congresso): no discurso e na retórica também - Daniel Weterman e Thiago Faria (O Estado de S.Paulo)

Interesses corporativos unem PT e bolsonaristas no Congresso

Maior partido de oposição se alinha à base do presidente em votações de projetos que beneficiam classe política e enfraquecem órgãos de controle

Daniel Weterman e Thiago Faria, O Estado de S.Paulo 

30 de outubro de 2021 | 05h00 

https://politica.estadao.com.br/noticias/geral,interesses-corporativos-unem-pt-e-bolsonaristas-no-congresso,70003884675


BRASÍLIA — A votação da Proposta de Emenda à Constituição (PEC) que aumenta o poder do Congresso sobre o Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP), na semana passada, contou na Câmara com uma inusitada união entre o PT, maior partido da oposição, e aliados do presidente Jair Bolsonaro. Embora a proposta tenha sido rejeitada, não foi a primeira vez que os adversários se juntaram para apoiar medidas que beneficiam políticos e enfraquecem órgãos de controle. Levantamento da consultoria Inteligov, feito a pedido do Estadão, mostra que os petistas se alinharam ao líder do governo em uma a cada dez votações nominais, desde 2019. 

Houve um casamento de interesses, por exemplo, no projeto que afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa, sancionado nesta semana por Bolsonaro. O texto aprovado foi o do relator, Carlos Zarattini (PT-SP), com apoio do líder do governo, Ricardo Barros (Progressistas-PR), nome do Centrão. Os 52 deputados do PT foram a favor da medida, que dificulta a punição de políticos ao exigir a comprovação de “dolo específico”, ou seja, a intenção de cometer irregularidade. 

O PT e o governo também se aliaram quando estavam em jogo interesses partidários. Foi assim nas votações do novo Código Eleitoral, que fragiliza a fiscalização das contas de partidos; da proposta que permitia a volta das coligações – barrada no Senado –; e da que retoma a propaganda das legendas no rádio e na TV. Nos três casos, o PT votou 100% fechado com a orientação do Planalto. 

O levantamento da Inteligov indica que esta situação ocorreu em 349 das 3.672 votações nominais realizadas na Câmara e no Senado desde que Bolsonaro tomou posse, em 2019. O cálculo leva em conta votações de projetos, PECs, medidas provisórias e requerimentos do Legislativo, como pedidos para retirar uma proposta da pauta. 

‘Sobrevivência’. Para o cientista político Leandro Consentino, professor do Insper, há nessas alianças um instinto de sobrevivência da classe política. “No caso da PEC do CNMP e da Lei de Improbidade, há uma agenda de blindagem. O governo e o PT têm, hoje, claramente uma agenda contra esse tipo de medida, em que pese já terem ambos levantado a bandeira contra a corrupção.” 

“Todos estão olhando para o próprio umbigo e as bases eleitorais exigem recursos. Não há preocupação com a transparência”, disse o analista do Departamento Intersindical de Assessoria Parlamentar (Diap) Neuriberg Dias

Nos últimos anos, o Congresso aumentou as emendas parlamentares e passou a destinar recursos diretamente para Estados e municípios. Trata-se das chamadas “emendas cheque em branco”. O modelo foi criado a partir de uma PEC da presidente do PT, deputada Gleisi Hoffmann (PR), mas encontrou maior adesão na base do governo. Em 2021, sete em cada dez deputados que usaram essas emendas votaram com o governo em 70% das ocasiões, apontou a Inteligov.  

‘Política’. “Esses são temas da política, não se trata de oposição e situação. Na Lei de Improbidade, temos o abuso do MP sobre o julgamento de pessoas que, por questões apenas administrativas, são retiradas da vida política. Outra questão é a vida do povo, e aí o Bolsonaro está fora da democracia”, disse o líder do PT na Câmara, Bohn Gass (RS). 

Mesmo na pauta econômica, porém, houve convergências, como na reforma do Imposto de Renda. A bancada petista votou em peso para aprovar a medida, que, além de reduzir impostos de empresas, cria uma cobrança sobre lucros e dividendos. 

Pautas comuns

Emendas

Petistas e governistas votaram juntos no projeto que determinou a execução obrigatória de emendas parlamentares de bancada, ampliando o poder de deputados e senadores sobre o Orçamento. 

Improbidade administrativa

Também se alinharam na análise do projeto que afrouxou a Lei de Improbidade Administrativa, dificultando a punição a políticos. 

Coligações 

A proposta que previa a volta das coligações nas eleições para o Legislativo, prática proibida com o intuito de reduzir o número de legendas no País, uniu petistas e parlamentares governistas. 

Código Eleitoral

O novo Código Eleitoral, que prevê regras mais brandas para o uso de recursos públicos por partidos, reduz a fiscalização e tira poderes da Justiça Eleitoral, teve apoio tanto do PT quanto de parlamentares bolsonaristas. 

Ministério Público

Os adversários votaram juntos na proposta que mudava a composição do Conselho Nacional do Ministério Público (CNMP) e aumentava a influência do Congresso no órgão, responsável por fiscalizar a atuação de procuradores. 

Propaganda 

Projeto que retoma a propaganda gratuita de partidos políticos no rádio e na TV, suspensa em 2017 após a aprovação do Fundo Eleitoral, obteve votos de petistas e de parlamentares governistas.


quarta-feira, 7 de julho de 2021

Sem Ernesto Araújo, Itamaraty retorna à discrição e ensaia moderação - Renato Vasconcelos (OESP)

Sem Ernesto Araújo, Itamaraty retorna à discrição e ensaia moderação

Grande desafio da gestão de Carlos Alberto França é equilibrar interesses do Brasil no duelo EUA-China, em meio à retórica 'antiglobalista' de Bolsonaro

O Estado de S.Paulo
Renato Vasconcelos
07/07/2021, 05:00

Cem dias após a saída de Ernesto Araújo, o Itamaraty ainda tenta recuperar o pragmatismo e a moderação de outrora, características esquecidas durante a gestão do ex-ministro. Sob a liderança do novo chanceler, Carlos Alberto França, a diplomacia brasileira vem trabalhando com discrição , na avaliação de ex-embaixadores e especialistas em política internacional ouvidos pelo Estadão , mas questões de política interna ainda travam mudanças mais significativas na condução da diplomacia brasileira. Apesar disso, a tensão interna no Itamaraty, que marcou os dias turbulentos vividos na gestão Araújo, ficou para trás.

"Não se podia esperar transformações em profundidade, porque o ministro é um auxiliar do presidente da República, e as linhas gerais de política externa são dadas por aquele que ganhou as eleições. Carlos França trouxe uma mudança de estilo, que é completamente oposto ao de Ernesto Araújo. Ele não é um militante político, alguém que faz parte do esquema de poder do presidente, mas sim um funcionário do Estado", afirmou o ex-embaixador brasileiro em Washington e ex-ministro da Fazendo, Rubens Ricupero.

A mudança de estilo foi notada pelo também ex-embaixador do Brasil nos Estados Unidos, Rubens Barbosa. "Mudou o estilo, mudou a retórica e outra grande diferença é a disposição de reconstruir pontes, que foram dinamitadas pelo Ernesto Araújo, em restabelecer canais de comunicação”, analisou.

Carlos Alberto França assumiu o ministério das Relações Exteriores no dia 6 de abril, oito dias depois de Ernesto Araújo ser demitido do cargo. Promovido ao topo da carreira diplomática em 2019, França nunca chefiou um posto no serviço exterior, mas tem familiaridade com o poder: trabalhou no Planalto nos governos Fernando Henrique Cardoso, Dilma Rousseff e Michel Temer, sempre na área do Cerimonial.

Apesar da presumida falta de experiência do chanceler, a simples mudança de comando já foi suficiente para gerar um alívio nas pressões internas do Itamaraty, de acordo com o professor Oliver Stuenkel, coordenador do programa de pós-graduação da Escola de Relações Internacionais da FGV.

"Parte da missão do governo Bolsonaro, inicialmente, foi o desmonte do Itamaraty, que é mais difícil de ser politizado, em função de seu quadro altamente técnico, e a missão do Ernesto Araújo foi basicamente erudir o que a família Bolsonaro chamava de resistência globalista. O novo chanceler, aparentemente, não tem essa missão e trouxe um grau de normalidade à instituição", disse Stuenkel.

Ainda segundo o professor, o novo ministro demonstrou habilidade ao retirar a política externa do embate político interno. "Você não vê o chanceler radicalizando ainda mais o discurso, trazendo teorias da conspiração. Ele atua muito nos bastidores e busca desinflamar os temas de política externa."

Mas a postura não foi a única coisa que mudou no Itamaraty após a troca de comando. Dentro de suas atribuições - imerso na política externa estabelecida pelo governo Bolsonaro - a nova gestão já conseguiu atenuar posicionamentos do Planalto em temas internacionais, entre eles vacinação e clima, ambos destacados por França em seu discurso de posse.

"No tema da covid-19, voltamos a uma linha de sensatez, após a postura de Ernesto Araújo, que chegou a ser negacionista da pandemia. Agora temos uma linha mais positiva em relação à Organização Mundial de Saúde e à Covax Facility" disse Ricupero.

"A política ambiental também foi atenuada. Houve a carta ao presidente americano Joe Biden, a presença de Bolsonaro na Conferência do Clima... Agora vamos ver como o novo Ministro e o Itamaraty vão definir a posição do Brasil no Acordo de Paris", disse Barbosa.

Apesar da tentativa de mudança na narrativa da questão ambiental, Ricupero explica se tratar da linha mais frágil entre as agendas prioritárias do Itamaraty, por depender de mudanças reais no governo. "O papel (do MRE) tem sido tentar negar evidências. Isso diminui o poder de convencimento".

Foi na gestão França que o Itamaraty modulou o voto do Brasil sobre as sanções americanas a Cuba na ONU - enquanto o País se alinhou a Estados Unidos e Israel ao votar contra a retirada dos embargos, neste ano o País se absteve, deixando o bloco opositor.

Os analistas apontam que a nova fase do Itamaraty deve ser marcada por um maior pragmatismo, principalmente no que diz respeito à disputa por protagonismo entre Estados Unidos e China na América do Sul. Ao contrário do que aconteceu no começo do governo Bolsonaro, quando houve um alinhamento quase integral ao governo de Donald Trump.

O alinhamento não ocorreu apenas por causa da gestão de Ernesto Araújo. Ricupero aponta que a própria inclinação do presidente e do filho dele, Eduardo Bolsonaro, aos EUA acabaram por definir este papel, o que fez o Itamaraty se omitir de buscar o melhor posicionamento para o Brasil, uma vez que a derrota do ex-presidente americano na eleição do ano passado deixar o Brasil em uma situação em que é alvo de desconfiança tanto da China quanto do governo Biden.

Não bastasse a desconfiança, o Brasil mantém relações estreitas e importantes tanto com China quanto com Estados Unidos, sendo dependente de ambos em temas estratégicos. O antagonismo com a China - acentuado em alguns momentos - colocou em risco alguns dos principais setores econômicos do país, como o mercado de soja, cujo maior comprador é a China, e os EUA um dos nossos maiores concorrentes.

"Esse lado desapareceu (com a saída de Araújo), mas desapareceu também da parte do presidente. Talvez ele tenha aprendio a lição", diz Ricupero. "O que vai acabar acontecendo é que nós vamos ter uma relação pragmática. Caso a caso, vai se ver o interesse do Brasil".

O pensamento é endossado por Barbosa, que projeta uma posição de independência do Brasil em relação aos dois países. "Não tem como a gente prever, mas eu acho que o chanceler Carlos França vai continuar fazendo o possível para ser o fator de moderação na política externa brasileira".

Assim como Araújo não é o único responsável pelas omissões do Itamaraty na questão envolvendo a política externa da vacina e o alinhamento aos EUA, a troca no comando por si só não resolve a perda de credibilidade da diplomacia brasileira nos últimos anos, que transformou o Brasil em pária internacional.

"A essência do projeto bolsonarista - de ser antiglobalista, questionar o multilateralismo, de não buscar a liderança e a cooperação regional - é o que explica essa situação. Para uma superação do que aconteceu nos últimos dois anos, só se houver uma guinada da política interna", afirma Stuenkel.

Carlos Poggio, professor de Relações Internacionais da Fundação Armando Álvares Penteado (Faap), explica que a deterioração da imagem da diplomacia brasileira não é algo que se supere facilmente. "Não é uma questão de dias ou de meses, é uma questão de anos até uma recuperação completa da imagem do Brasil", disse. E completa: "É um alívio (a troca de comando), é um respiro e uma esperança de um retorno a alguma normalidade no Itamaraty, mas é algo que ainda talvez demore para se reconstruir totalmente, não no curto ou no médio prazo".

"É um processo de reconstrução. Esse é apenas 'o começo do início', porque o principal dano é o que vem do próprio Bolsonaro, na figura dele e do governo dele. O conjunto da obra do governo dele. O que Carlos França fez muito bem foi eliminar o componente que era agregado pelo Ernesto Araújo, mas isso talvez não fosse nem 10% do total. Todo mundo sabe que o papel dele é limitado", afirma Ricupero.

https://internacional.estadao.com.br/noticias/geral,cem-dias-sem-ernesto-o-que-mudou-no-itamaraty-sob-nova-direcao,70003770570

 

quarta-feira, 30 de dezembro de 2020

A agenda internacional do Governo FHC em 1995 (1994; O Estado de S.Paulo) - Paulo Roberto de Almeida

 A agenda internacional do Governo FHC em 1995

 

Paulo Roberto de Almeida

Doutor em Ciências Sociais

O Estado de São Paulo (Domingo, 8 de janeiro de 1995, p. 2)

 


Ademais de prosseguir com a estabilização da economia, no plano interno, o Governo do Presidente Fernando Henrique Cardoso terá pela frente, na área externa, uma agenda relativamente movimentada em 1995, composta de alguns processos em curso e de outros elementos novos e desafiadores.

No terreno do comércio exterior, o ano começa com a entrada do Mercosul em sua etapa de “união aduaneira flexível”, ou seja o processo de convergência progressiva para uma Tarifa Externa Comum, em princípios do próximo século. O primeiro dia do ano também deve assistir à substituição do GATT pela Organização Mundial do Comércio, instrumento valioso para a promoção dos objetivos de desenvolvimento de países como o Brasil, que têm no multilateralismo um dos meios de defesa de seus interesses em face do protecionismo aberto ou disfarçado de sócios mais poderosos. Estes, aliás, vêm recusando-se a dar à OMC as condições necessárias para que ela possa cumprir seu papel de guardiã das “tábuas da lei” do comércio internacional, justificando antecipadamente, talvez, a adoção continuada de medidas unilaterais. O Presidente poderá expressar claramente seus pontos de vista, utilizando, se desejar, a tribuna do Fórum da Economia Mundial, que realiza mais uma sessão anual no final do mês, em Davos, na Suíça.

Depois que, em janeiro, Clinton fizer seu discurso sobre o “estado da União”, será a vez de FHC detalhar, em sua mensagem ao Congresso um mês depois, suas prioridades em termos de política governamental, inclusive na frente externa. As diretrizes principais já foram traçadas no Mãos à Obra Brasil, mas elas poderão ser objeto de reafirmação ou reordenamento calendarizado, sempre em função das percepções do momento. 

Março trará, na Dinamarca, a conferência mundial de chefes de governo sobre o progresso social. O Brasil terá certamente algo a dizer, no “summit” de Copenhague, sobre o papel do crescimento sustentado na geração de empregos e na diminuição da pobreza, mas deverá estar igualmente disposto a ouvir alguns ensinamentos sobre a eliminação da miséria não-necessária. Em todo caso, os países ricos, confrontados com os fenômenos inéditos da exclusão social e da precariedade ocupacional, terão desta vez poucas lições a nos dar em matéria de justiça social.

No mesmo mês, os chanceleres do Grupo do Rio encontram-se com seus colegas europeus na França, país que assegura a presidência da União Européia, com a qual estão em curso diversos projetos de cooperação. A UE (agora com 15 membros) vêm entretanto reforçando seu instrumental protecionista e sua política de comércio dirigido, ao introduzir, por exemplo, em seu Sistema Geral de Preferências as cláusulas ambiental e social, que podem excluir o Brasil de áreas de mercado. 

No que diz respeito mais especificamente ao Mercosul, se buscará avançar na concretização de um amplo acordo de cooperação econômica e de liberalização comercial. Resta apenas saber se a Política Agrícola Comum (a “loucura agrícola comum”, segundo a The Economist) permitirá o acesso de alguns dos nossos produtos aos mercados comunitários: os “eurocratas” e os paysans da França certamente dirão que só em 2020, senão mais adiante. Os países do Mercosul, que ainda não criaram sua própria variedade de “mercocratas” e que possuem camponeses decididamente capitalistas, nunca foram tão abertos à entrada de bens, serviços e capitais do exterior, inclusive de alguns bons queijos franceses, devidamente subsidiados.  

Um mês depois tem início em Nova Iorque a conferência sobre a não-proliferação nuclear, na qual os países que detêm atualmente o monopólio da arma atômica tentarão reconduzir indefinidamente o desigual e discriminatório Tratado de Não-Proliferação Nuclear, concluído sob a égide dos EUA e da ex-URSS em 1968. O Brasil não é parte do TNP, já deu todas as garantias requeridas pela comunidade internacional através do Tratado de Tlatelolco e do Acordo Quadripartite sobre salvaguardas nucleares, possui uma Constituição que impede o uso de armas nucleares e caminha para manter sua postura independente. 

Em maio, as Nações Aliadas estarão comemorando o 50° aniversário do final da segunda guerra mundial na Europa. Tendo participado do esforço de liberação do continente do jugo nazista, no solo italiano, é normal que o Brasil seja convidado para as festividades. Será mais uma oportunidade para se reafirmar nosso conhecido compromisso com a paz e o primado do Direito internacional, bem como nosso desejo de continuar colaborando com as operações de manutenção da paz da ONU (que aliás também comemora meio século de existência em outubro).

Junho é um mês pleno de conferências ministeriais e de chefes de governo para os países desenvolvidos, entre elas a da OTAN (Bósnia again?), a da União Européia (começo da preparação da conferência intergovernamental de revisão institucional de 1996) e da OCDE, esse “clube de países ricos” ao qual já aderiu o México e se prepara para fazê-lo a Coréia. Em seu programa de Governo, FHC manifestou seu desejo de “incentivar a cooperação com a OCDE”, propósito que vem sendo cumprindo através de nossa participação no “diálogo informal” mantido com as “economias dinâmicas não-membras” (eufemismo para os tigres asiáticos e alguns NPIs da América Latina) e nas atividades do Centro de Desenvolvimento, ao qual aderimos em abril de 1994. O cenário não deve alterar-se no curto prazo.

Em junho, os chanceleres e ministros da economia do Mercosul reúnem-se mais uma vez, oportunidade que poderá servir para aprofundar a discussão em torno das propostas hemisféricas lançadas no “summit” de Miami. O Mercosul estará também testando sua recentemente adquirida “personalidade de direito internacional”, que o habilita a falar de uma só voz em foros como o da OMC. Ainda que a isso não estejam obrigados, os Presidentes costumam comparecer a todas as reuniões do Conselho.

O segundo semestre não será menos intenso do que o primeiro, com destaque para a abertura dos debates na ONU sobre a possível reforma da Carta e a eventual incorporação de novos membros ao Conselho de Segurança. Será uma excelente oportunidade para que a posição brasileira seja reapresentada pessoalmente pelo Presidente . Dada a complexidade e sensibilidade do tema é pouco provável que se tenha um encaminhamento rápido dessa questão, considerada prioritária pela diplomacia brasileira. O problema não está com o Brasil, considerado “candidato natural”, mas com interessados de outras regiões do Sul, considerando-se ainda que não exista oposição maior ao ingresso da Alemanha e do Japão. 

No intervalo, sem contar uma reunião sobre mudanças climáticas, a ONU promoverá mais uma conferência mundial sobre os direitos da mulher, desta vez em Pequim, tema sobre o qual o Brasil dispõe, como no caso da conferência do Cairo sobre a população, de uma postura avançada e equilibrada. Essa agenda mundial resumida é apenas uma amostra dos quatro movimentados anos que esperam a diplomacia do Governo FHC.

 

[Paris, PRA/400: 20.12.94]

[Relação de Publicados n°170]

 

469. “A agenda internacional do Governo FHC em 1995”, Paris, 20 dezembro 1994, 4 pp. Artigo sobre os temas de política externa do novo Governo. Publicado no Estado de São Paulo (Sábado, 07.01.95, p. 2). Relação de Publicados n° 173. 

 

domingo, 18 de outubro de 2020

Albert Fishlow: derrota para Trump, dificuldades para Bolsonaro (OESP)

https://economia.estadao.com.br/noticias/geral,trump-vai-perder-e-o-mesmo-pode-ocorrer-com-bolsonaro,70003478931

COLUNISTA

 

Trump vai perder (e o mesmo pode ocorrer com Bolsonaro)

Há uma vaga aberta no País para uma liderança de credibilidade

Albert Fishlow

O Estado de S.Paulo18 de outubro de 2020 | 05h00

 

O eleitorado terá seu momento de decisão nos Estados Unidos em apenas duas semanas. Minha expectativa é de uma derrota decisiva de Trump. Há razões importantes para isso.

Em primeiro lugar, sua política para a economia doméstica foi um grande fracasso. Sob o governo Trump, a expansão funcionou bem até esse ano, por um motivo significativo. O déficit fiscal federal seguiu alto durante o mandato dele, possibilitando uma alta no consumo e a construção de novas habitações.

Mas, com os juros mantidos em patamares baixíssimos, não havia problema nisso. A inflação foi trivial. A lógica pedia um auxílio federal maior para o terceiro trimestre, como anteriormente nesse ano, mas ele não conseguiu fazer com que o senado republicano agisse. Eles preferiram concentrar suas atenções na vaga para a Suprema Corte.

Em segundo lugar, sua política externa apresentou pouco progresso. Trump pareceu atraído principalmente por ditadores estrangeiros, e seus assistentes (uma equipe que ele renovou várias vezes) jamais conseguiram acompanhar sua insistência em glorificar-se publicamente. Seja ao lidar com a Coreia do Norte, com a China, as Filipinas, Arábia Saudita, Turquia, Ucrânia, Rússia e outros países, ele pensou que seu estilo simplista de administração invariavelmente funcionaria. Em se tratando da Europa Ocidental e da Otan, ele ofereceu pouco de positivo – além de seus campos de golfe, quem sabe.

Em terceiro lugar, suas preferências em termos de políticas sociais foram abomináveis. A atitude em relação aos imigrantes foi desprezível. Todos lembram da incapacidade de Trump de estabelecer um consenso quanto às etapas viáveis positivas para reduzir o crescente fluxo de imigrantes, e do seu interesse na deportação forçada. Mas a questão do desejo por uma melhoria no ensino não pode ser tirada do quadro. A questão da restauração do foco em sistemas públicos de qualidade em todo o país não é trivial, seja para o ensino dos jovens ou daqueles em idade universitária.

Por outro lado, os americanos quase pobres fracassaram feio em acompanhar os ricos, beneficiados por impostos muito mais baixos. Eles não receberam novo treinamento para desenvolver habilidades para novas ocupações. É claro que se trata de um problema desafiador, mas uma questão que pouco preocupou Trump.

Em quarto lugar, sua incapacidade de compreender a necessidade de uma política coerente de saúde remonta ao seu ódio em relação ao Obamacare. O nome em si era suficiente para irritá-lo profundamente e provocar sua insistência em substituir o programa por algo menos caro e infinitamente melhor. Mas há claramente um problema. Atualmente, os EUA gastam cerca de 18% do PIB em atendimento de saúde, muito mais do que outros países desenvolvidos. Mas os americanos não têm cobertura universal.

Mudanças são necessárias. Se não ocorrerem, o gasto seguirá aumentando conforme a média etária continua subindo. O mesmo vale para novos arranjos para o financiamento dos pagamentos de seguridade social, situação na qual, seguindo a mesma mudança demográfica da média etária, o sistema será incapaz de garantir o pagamento de benefícios cada vez maiores. Em ambos os casos, Trump (e o Partido Republicano) jamais chegaram sequer a apresentar um plano convincente.

Em quinto lugar e, talvez, resumindo os demais pontos, a visão de Trump do poder presidencial como janela de oportunidade para ganhos materiais para seus parentes mais próximos não é a qualidade de liderança executiva exigida. Sua insistência maníaca nas mentiras - a contagem oficial já passou de 20 mil - sugere a necessidade de tratamento psiquiátrico, e não de uma reeleição.

O Brasil também terá pela frente uma eleição no mês que vem, mas envolvendo o nível municipal e um terço do Senado. Como Bolsonaro decidiu criar um novo partido no ano que vem, seu envolvimento tem sido modesto, porém crescente nas semanas mais recentes. Após a conclusão do pleito, certamente haverá mudanças no nível federal como preparativos para 2022.

Bolsonaro reteve (e até melhorou) sua aprovação popular em pesquisas recentes. A maioria das estimativas para o ano que vem no Brasil mostram a expectativa de um crescimento de 3% a 4% do PIB - muito melhor do que os 5% de declínio previstos para este ano. Mas, para tanto, pode ser necessário um desempenho melhor na Europa e nos EUA, coisa que as novas quarentenas motivadas pelo retorno do coronavírus talvez impeçam. China e Índia certamente crescerão bastante.

Será que o desempenho econômico melhorado servirá como alavanca para as esperanças de Bolsonaro quanto à sua reeleição? Não necessariamente. Muito vai depender do quanto essa melhoria for parte de uma estratégia articulada de prazo mais longo, ou apenas uma recuperação cíclica seguida por crescimento medíocre. Ainda sabemos pouco a respeito de quem vai dirigir a transformação do comércio encolhido para o comércio expandido, do consumo para o investimento, da expansão em novas áreas de investimento coordenado como parte da globalização. Por outro lado, o nível de endividamento e os déficits fiscais funcionarão como novas distrações.

Cada vez mais, essas questões virão para o primeiro plano conforme a atividade se recupera mais plenamente e a doença alcança possíveis novos patamares com o público correndo para as praias e a primavera se transformando em verão. Há uma vaga aberta para uma liderança de credibilidade. /

 

Tradução de Augusto Calil

Economista e cientista político, professor emérito nas universidades de Columbia e da Califórnia em Berkeley. 

 

segunda-feira, 13 de julho de 2020

‘Brasil virou pária do investimento internacional’ - Entrevista Persio Arida

‘Brasil virou pária do investimento internacional’
Para economista, governo Bolsonaro tem feito uma “política ambiental horrenda, na contramão do mundo”
Entrevista com Persio Arida, economista
Adriana Fernandes, O Estado de S. Paulo
12 de julho de 2020 | 05h00

Para o economista  Persio Arida, presidente tem feito uma “política ambiental horrenda”  
Foto: FOTO: HÉLVIO ROMERO/ESTADAO

política ambiental do governo Bolsonaro transformou o Brasil em pária do investimento internacional e poderá trazer sérios problemas econômicos para o País, avalia o ex-presidente do Banco Central (BC), Persio Arida. Um dos signatários da carta de ex-ministros da Fazenda e do BC em defesa de uma retomada econômica “verde”, que será lançada no dia 14, Arida observa que o presidente tem feito uma “política ambiental horrenda” e na contramão do mundo.
Um dos formuladores do Plano Real, Arida avalia, em entrevista ao Estadão, a resposta do governo à pandemia da covid-19, fala sobre as prioridades para a retomada econômica e responde à crítica recente do ministro da Economia, Paulo Guedes, ao programa de controle da inflação que completa esse ano 26 anos: “Ressentimento e inveja são assuntos para divã de psicanalista.”
Veja abaixo os principais trechos da entrevista:
O sr. assinou uma carta de ex-presidentes dos BC e de ministros da Fazenda com alertas para o risco da política ambiental do governo Bolsonaro. O problema se agigantou para a economia?
Meu primeiro artigo sobre o tema, chamado Pensando a Destruição da Natureza, tem quase 40 anos. Ignorar os efeitos do aquecimento global é praticar roleta-russa seguidas vezes porque nós somos parte da natureza. Diferentemente da covid-19, o processo de degradação do meio ambiente é uma catástrofe em câmera lenta. O que mudou subitamente de um ano e meio para cá foi a postura governamental. As queimadas e o desmatamento da Amazônia, com a desconstrução dos controles ambientais, mostram um governo na contramão do mundo e da história. O governo Bolsonaro fez do Brasil um pária do investimento internacional.
O governo insiste na tese que é pressão geopolítica por interesses comerciais do agronegócio.
É uma tese errada. O agronegócio brasileiro não precisa desmatar para ser competitivo. Entidades internacionais e países mais avançados nos pressionam porque a preservação do meio ambiente é um problema global. Eles estão certos, mas nós devemos cobrar deles o respeito aos objetivos de emissão de gases poluentes.

Quais os riscos do isolamento do Brasil por conta da política ambiental de Bolsonaro?
O investimento corporativo no mundo todo é crescentemente orientado pela preocupação com o meio ambiente e as desigualdades sociais. É uma política horrenda com o meio ambiente e extremamente prejudicial à economia.
O governo Bolsonaro vai reagir à pressão com mudanças efetivas na política atual?
Eu nada espero desse governo. Que dizer de um governo que desrespeita a ciência, se mostra incapaz de coordenar uma política nacional de saúde, incapaz de escolher um ministro da Educação que mereça esse nome ou elogie um secretário da Cultura nazista.
No início da pandemia, o senhor escreveu, em um artigo, que nenhuma sociedade tolera seguir com a vida econômica como se nada estivesse acontecendo, enquanto pessoas morrem na fila de espera do hospital. Passados quatro meses, como avalia o resultado do caminho que o governo tomou no combate à pandemia, com a justificativa de preservar a economia?
A tese de que é necessário escolher entre economia e saúde é mais uma tese errada. Quem controla a epidemia mais cedo e com mais determinação se sai melhor do ponto de vista da economia também.
Como avalia a resposta do ministro Paulo Guedes no enfrentamento dos efeitos da pandemia sobre a economia?
Evoluímos muito desde que o ministro disse que, com R$ 5 bilhões, o problema da saúde seria resolvido. Mas a implementação foi falha. Boa parte do dinheiro da saúde não saiu do papel. Os programas de apoio às empresas não funcionaram ou ficaram aquém do necessário. No caso das pessoas físicas, o auxílio de R$ 600 foi mal focalizado. Numa reencarnação da Dilma, o governo deu o monopólio da distribuição do auxílio à Caixa. Obviamente, para se apropriar politicamente dos R$ 600, mas também para a Caixa conseguir ter um amplo cadastro digital de clientes e ficar um pouco mais competitiva. Inacreditável. Em contraste, o Banco Central foi muito rápido e eficaz em aumentar a liquidez na economia. E está tocando bem a agenda de reduzir o spread bancário e aumentar a competição no setor financeiro.
Cresceu a pressão para mudanças no teto de gastos. Ele deve mudar no pós-covid para ajudar na retomada?
teto de gastos deve ser mantido após a epidemia. O que não devemos fazer é aumentar impostos. A carga tributária já é muito alta e nossa história mostra que aumentos de impostos acabam abrindo espaço para um novo round de gastos. Da década de 90 para cá, a carga tributária foi de 23% para 33% do PIB e o déficit é maior agora do que era antes.

O que é prioridade na agenda para a retomada?
Uma coisa é a recuperação cíclica que sempre acontece, até porque não há recessão que dure para sempre, outra coisa é a mudança estrutural no patamar de crescimento. Para sair de forma sustentada do patamar de 1% a 2% ao ano, temos de abrir a economia, fazer uma reforma administrativa para dar eficiência à máquina pública, privatizar para valer, aprovar a reforma tributária e melhorar o aprendizado nas escolas públicas. Nada disso avançou no governo Bolsonaro. Com o fim do bônus demográfico, temos de aumentar a produtividade para crescer.
O que acha do “Renda Brasil” que o governo quer implementar para substituir o Bolsa Família?
Um dos poucos legados positivos da epidemia foi colocar o tema da renda mínima universal na agenda política. Há ótimas propostas já prontas. Infelizmente não há como gastar mais do que já gastamos, mas unificar e focalizar melhor vários dos programas sociais existentes é um passo importante para reduzir a pobreza. O risco é a apropriação política da renda mínima para fins eleitorais.
O ministro Paulo Guedes criticou o Plano Real ao afirmar que, se ele se fosse tão extraordinário, o PSDB não teria perdido quatro eleições. Como um dos formuladores do Plano, como recebeu essa declaração?
Ressentimento e inveja são assuntos para divã de psicanalista. O plano foi de um extraordinário sucesso. O presidente Fernando Henrique foi eleito duas vezes no primeiro turno. Na esteira do plano, foram aprovadas as bases de funcionamento do Brasil moderno: Lei de Responsabilidade Fiscal, tripé macroeconômico, montagem das agências regulatórias, as grandes privatizações, o alongamento da dívida do Tesouro etc. A lição que fica é que, quando há uma liderança política capaz de unir o País em torno de uma visão de futuro, capaz de criar uma base parlamentar sólida e montar uma boa equipe, é possível mudar o Brasil.