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sexta-feira, 17 de novembro de 2017

Rubens Ricupero e a diplomacia brasileira: Casa Thomas Jefferson (Asa Sul), 20/11, 19hs


Rubens Ricupero recebe na Casa Thomas Jefferson para um debate informal, seguido de coquetel, em torno de seu livro: A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017), que estará disponível na ocasião.


Todos são bem vindos.



quinta-feira, 16 de novembro de 2017

Rubens Ricupero: um intelectual na diplomacia - Paulo Roberto de Almeida


Rubens Ricupero: um intelectual na diplomacia


Paulo Roberto de Almeida
Diplomata e professor (www.pralmeida.org)

Desconcertado com o tom “muito pessimista” das palavras do orador da turma do Instituto Rio Branco que se formava em meados de 1961, como observou rapidamente ao final de uma alocução que ameaçava a todos com o aniquilamento nuclear, o presidente Jânio Quadros, escolhido paraninfo da turma, tentou improvisar argumentos um pouco mais otimistas em seu discurso no velho Palácio Itamaraty do Rio de Janeiro. Tal se deu em reação à mensagem central transmitida pelo jovem diplomata a colegas, superiores e familiares, provavelmente também chocados com a crueza do alerta: “Nós, os que hoje temos vinte anos... não sabemos se nos será dado o tempo de ler os grandes livros, ouvir a música dos Mestres,... explorar a multiforme beleza do mundo... numa época em que a variação do humor dos estadistas ou a distração dos operadores de radar  pode, a qualquer momento, precipitar o Apocalipse.”
Não sabemos se a plateia se recompôs, ou se o presidente conseguiu insuflar algum entusiasmo nos diplomatas que então iniciavam sua vida profissional, numa conjuntura em que a crise dos mísseis soviéticos em Cuba ainda não tinha colocado o mundo à beira do precipício, ou em que, no próprio cenário político brasileiro, adensavam-se as nuvens sombrias da crise política que surpreenderia a todos logo adiante. Menos de dois meses depois, Jânio Quadros renunciava, deixando o país mergulhado no estupor de um grave impasse institucional, agregando, portanto, aos temores já provocados pela confrontação entre os Estados Unidos e a União Soviética.
Assim foi o início da carreira diplomática de Rubens Ricupero, escolhido orador da turma de 1960 pelas suas qualidades naturais de arguto analista e de sintetizador refinado das complexidades e matizes das relações internacionais e da posição do Brasil no sistema bipolar. Trabalhando no gabinete do ministro San Tiago Dantas, numa fase em que o parlamentarismo temporariamente vigente não conseguia encaminhar os problemas de desequilíbrio econômico externo e os desafios representados pelo clima de Guerra Fria, então no seu auge, o jovem Ricupero teve, por assim dizer, o seu batismo de fogo, naqueles anos em que o Brasil ensaiava um experimento de política externa independente, em meio às pressões americanas por uma postura mais alinhada.
O realinhamento ocorreu, de fato, a partir de abril de 1964, quando o jovem diplomata – Cônsul de Terceira Classe, segundo a denominação vigente na época – já tinha sido deslocado para o seu primeiro posto, Viena, aliás, um dos cenários clássicos da Guerra Fria. Promovido a Segundo Secretário em outubro daquele ano, Ricupero voltou ao anticomunismo da periferia em 1996, quando foi removido para Buenos Aires, onde os militares seguiam o exemplo de seus colegas brasileiros e também derrubavam um presidente civil, democraticamente eleito. As etapas seguintes de ascensão na carreira foram todas por merecimento, e de forma brilhante: Primeiro Secretário em setembro de 1970, quando já estava em Quito; Conselheiro em janeiro de 1973, quando era chefe da Divisão de Difusão Cultural; deslocado a Washington, entre 1974 e 1977, de onde voltou para chefiar, até 1980, a Divisão da América Meridional-II (países do Cone Sul), mas já promovido a Ministro de Segunda Classe, o penúltimo degrau, desde abril de 1978.
Americanista confirmado, e dotado de amplos conhecimentos históricos e sociológicos sobre toda a região, exerceu-se então como chefe do Departamento das Américas durante toda a primeira metade dos anos 1980, tendo sido promovido a Ministro de Primeira Classe (embaixador) em junho de 1982. Foi como diplomata experiente, portanto, que assistiu ao declínio do regime militar no Brasil e à transição ao regime democrático, sob a liderança de Tancredo Neves, de quem foi assessor especial e a quem acompanhou numa viagem internacional pré-posse, que talvez tenha precipitado sua doença e desenlace fatal. Como assessor internacional de José Sarney, de 1985 a 1987, Ricupero participou, e foi um dos mentores decisivos, do processo de aproximação do Brasil com seus vizinhos, tendo ajudado a costurar alguns dos grandes tratados de cooperação regional, em especial a montagem da integração no Cone Sul, que desembocaria no Mercosul. Desde o final da década anterior, também ministrou diferentes matérias no curso de relações internacionais da UnB, o único então existente no Brasil, além das aulas de política externa brasileira no Instituto Rio Branco.
Quando ingressei no Itamaraty, no final de 1977 – por concurso direto e não através do Rio Branco –, sua palestra sobre a diplomacia americana do Brasil foi uma das duas únicas que me impressionaram favoravelmente, no mar de platitudes burocráticas que foi então servido aos recém admitidos. Foi para mim um prazer, portanto, tê-lo como chefe na Delegação junto aos organismos internacionais em Genebra, entre 1987 e 1990, ao início da Rodada Uruguai do Gatt, da qual iria resultar a criação da OMC, alguns anos depois. Ricupero já estava servindo no posto mais importante da diplomacia brasileira, a embaixada em Washington (1991-92), de onde o presidente Itamar Franco o retirou para servir como ministro extraordinário da Amazônia legal e dos recursos hídricos, em homenagem a seu brilhante desempenho durante a Conferência das Nações Unidas sobre Meio Ambiente e Desenvolvimento, realizada pouco antes no Rio de Janeiro.
Daí a assumir o cargo de Ministro da Fazenda, em abril de 1994, no momento mais crucial do agônico esforço que o Brasil empreendia para uma estabilização há muito esperada no plano macroeconômico, foi o reconhecimento natural de suas qualidades de comunicador tranquilo e de talentoso operador da introdução do Plano Real, em julho desse ano. Uma moeda, mais até do que a expressão de um valor, é antes de qualquer outra coisa, uma questão de confiança, uma forma da identidade nacional, algo que Ricupero soube inculcar com grande maestria na psicologia de um povo já frustrado por diversos planos fracassados de combate à inflação. Sua figura, de certo modo franciscana, como introdutor do real, tem muito a ver com o sucesso desse processo de estabilização, implementado em meio a muitas dúvidas, no Brasil e no exterior: o FMI, por exemplo, não o apoiou, e o PT torcia pelo seu fracasso, chamando-o de “estelionato eleitoral”.
Sua saída inesperada da Fazenda, em setembro de 1994, na sequência de palavras impensadas antes de uma entrevista televisa, representou um “ponto fora da curva”, numa carreira de outro modo brilhante, que o conduziu ainda à embaixada do Brasil na Itália, terra de seus ancestrais, e à direção geral a Unctad – a Conferência das Nações Unidas sobre comércio e desenvolvimento – novamente em Genebra, por dois mandatos. Foi ele que conseguiu realizar no Brasil – em São Paulo, em 1997 – a única conferência desse órgão criado em grande medida pelos esforços da diplomacia brasileira, em 1964.
Aposentado, voltou às lides acadêmicas – das quais, na verdade, nunca se afastou, já que sempre esteve à frente do Instituto Fernand Braudel de Economia Mundial – desta vez na direção da Faculdade de Economia da FAAP-SP, que também abriga um curso de relações internacionais. A aposentadoria tampouco o eximiu de se exercer em tarefas de consultoria internacional, em órgãos intergovernamentais, junto a empresas multinacionais ou em fundações de corte intelectual, como os chamados think tanks. Desde os primeiros prêmios obtidos por seus resultados brilhantes no Instituto Rio Branco, Ricupero também acumulou, ao longo da vida profissional, um número expressivo de honrarias e de ordens nacionais, no Brasil e em diversos outros países, aos quais esteve ligado, diplomaticamente ou afetivamente.
Independentemente, porém, de todos os cargos, funções e missões em que se desempenhou, o que mais distingue Ricupero, como a poucos de seus colegas, é a sua qualidade de pensador e de formulador de posições diplomáticas. O Itamaraty, por certo, é conhecido por abrigar inúmeros intelectuais: escritores, artistas, personalidades refinadas que abrilhantaram as letras e as artes do Brasil (e algumas vezes do mundo, como alguns poetas, músicos e até ensaístas). Mas são poucos os que verdadeiramente integram o pequeno círculo de intelectuais reflexivos que podem, facilmente, desmentir uma antiga expressão que dizem existir nessa carreira disciplinada e hierárquica: “Você só assina artigos quando não mais os escreve” (o que significa que muitos secretários são os que de fato escrevem os textos, como eu mesmo fiz no curso inicial de minha carreira, que depois são publicados sob a assinatura de embaixadores). Basta olhar de relance a lista de suas publicações para constatar a riqueza e a diversidade de sua produção intelectual: só na Biblioteca do Itamaraty, em Brasília, são mais de quarenta entradas sob o seu nome, o que não inclui, por certo, as dezenas, ou centenas, de artigos de imprensa – na Folha de São Paulo, por exemplo – escritos em linguagem límpida e compreensível aos leigos, eventualmente coletados em alguns dos livros que publicou, como, por exemplo, Esperança e Ação (Paz e Terra, 2002).
Muito requisitado para todo tipo de pronunciamento conjuntural e de demandas práticas, vindas de todos os lados, Ricupero ainda assim conseguiu produzir alguns textos de referência no pensamento diplomático ou mesmo no terreno historiográfico. São bem, conhecidos, por exemplo, seus ensaios sobre a inserção mundial, sobre o relacionamento hemisférico do Brasil e sobre o comércio internacional– vários recolhidos na coletânea Visões do Brasil: ensaios sobre a história e a inserção internacional do Brasil (Record, 1995) – e sobre os dilemas do Brasil na globalização – título, aliás, de um dos seus livros (Senac, 2001) –, além dos seus artigos dominicais, na Folha, e até um livrinho editado por esse jornal, sobre o projeto americano da Alca (2003).
Menos conhecidos são os seus trabalhos de maior fôlego em termos de pesquisa histórica, em especial sobre: a diplomacia brasileira ao longo do século XX (em grande medida sobre as relações americanas), vários dos quais compilados na coletânea acima indicada; sobre o Barão do Rio Branco, uma referência obrigatória na vida de todo diplomata, mas uma fonte de fecundas reflexões comparativas para este pensador de visão larga; um bem fundamentado ensaio comemorativo sobre o problema da “abertura dos portos”, que aliás se estende aos tratados de 1810, em livro coletivo homônimo, (Senac-SP, 2008); e o mais recente estudo sobre o Brasil no mundo ao início do século XIX, no qual Ricupero traça um panorama dos desafios colocados ao “império”, um gigante com pés de barro, na conjuntura da independência, publicado no primeiro volume – Crise Colonial e Independência, 1808-1830 (Fundación Mapfre-Objetiva, 2011) – de uma coleção sobre a História do Brasil Nação, 1808-2010, numa série dedicada à América Latina na história contemporânea.
Em 2017 ele publicou sua obra síntese, A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017), que não é uma simples história diplomática, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão sobre seu processo de desenvolvimento. O núcleo central da obra é composto por uma análise, profundamente embasada no conhecimento da história, dos grandes episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante política pública, cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das educacionais – pode ser considerado como exitoso.
O que justamente distingue a escrita refinada e elegante de Ricupero é sua “fascinação metodológica com a História”, como bem apontou no prefácio à coletânea Visões do Brasil o embaixador Gelson Fonseca. Isso no plano formal; no terreno substantivo é certamente sua angústia com os problemas do Brasil – a injustiça, a pobreza, a desigualdade – e o empenho em vê-lo emergir no cenário internacional como um interlocutor de peso na definição de soluções aos grandes problemas da humanidade. Uma atitude humanista, no sentido propriamente renascentista, ou iluminista, da palavra, combinada a uma vocação de pensador da inserção internacional do Brasil. De fato, Ricupero é um dos poucos intelectuais do Itamaraty que merece, legitimamente, essa designação!

Brasília, 27 de setembro de 2017.

Rubens Ricupero: A Diplomacia na Construcao do Brasil: IRel-UnB, 20/11, 14h30


Aproveito para divulgar a minha resenha deste livro:

“Construindo a nação pelos seus diplomatas: resenha do livro de Rubens Ricupero”, Brasília, 27 setembro 2017, 3 p. Resenha de A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017). Encaminhada ao Estado de S. Paulo. Publicado, sob o título “O Brasil segundo a diplomacia”, na versão impressa, no jornal O Estado de S. Paulo (domingo, 8 de outubro de 2017, p. , Caderno Aliás-Política; sob o título, na versão digital, de História da diplomacia no Brasil tem novo livro definitivo”, em 7/10/2017; link: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,historia-da-diplomacia-no-brasil-tem-novo-livro-definitivo,70002030739). Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/09/cesse-tudo-o-que-musa-antiga-canta.html); novamente, depois de publicada, no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/10/resenha-do-livro-do-ricupero-publicada.html).


Construindo a nação pelos seus diplomatas: o paradigma Ricupero

Paulo Roberto de Almeida


Em meados do século XX, os candidatos à carreira diplomática tinham uma única obra para estudar a política externa brasileira: a de Pandiá Calógeras, publicada em torno de 1930, equivocadamente intitulada A Política Exterior do Império, quando partia, na verdade, da Idade Média portuguesa e chegava apenas até a queda de Rosas, em 1852. Trinta anos depois, os candidatos passaram a se preparar pelo livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil, publicado uma única vez em 1959 e durante muitos anos desaparecido das livrarias e bibliotecas. No início dos anos 1990, passou a ocupar o seu lugar o livro História da Política Exterior do Brasil, da dupla Amado Cervo e Clodoaldo Bueno. Finalmente, a partir de agora uma nova obra já nasce clássica: A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017, 780 p.), do embaixador Rubens Ricupero, ministro da Fazenda quando da introdução do Real, secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento nos anos 1990, atualmente aposentado.
O imenso trabalho não é uma simples história diplomática, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão sobre seu processo de desenvolvimento tal como influenciado, e em vários episódios determinado, por diplomatas que se confundem com estadistas, aliás desde antes da independência, uma vez que a obra parte da Restauração (1680), ainda antes primeira configuração da futura nação por um diplomata brasileiro a serviço do rei português: Alexandre de Gusmão, principal negociador do Tratado de Madri (1750). Desde então, diplomatas nunca deixaram de figurar entre os pais fundadores do país independente, entre os construtores do Estado, entre os defensores dos interesses no entorno regional, como o Visconde do Rio Branco, e entre os definidores de suas fronteiras atuais, como o seu filho, o Barão, já objeto de obras anteriores de Ricupero.
O Barão do Rio Branco, aliás, é um dos poucos brasileiros a ter figurado em cédulas de quase todos os regimes monetários do Brasil, e um dos raros diplomatas do mundo a se tornar herói nacional ainda em vida. Ricupero conhece como poucos outros diplomatas, historiadores ou pesquisadores acadêmicos a história diplomática do Brasil, as relações regionais e o contexto internacional do mundo ocidental desde o início da era moderna, professor que foi, durante anos, no Instituto Rio Branco e no curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Formou gerações de diplomatas e de candidatos à carreira, assim como assessorou ministros e presidentes desde o início dos anos 1960, quando foi o orador de sua turma, na presidência Jânio Quadros.
Uma simples mirada pelo sumário da obra confirma a amplitude da análise: são dezenas de capítulos, vários com múltiplas seções, em onze grandes partes ordenadas cronologicamente, de 1680 a 2016, mais uma introdução e uma décima-segunda parte sobre a diplomacia brasileira em perspectiva histórica. Um posfácio, atualíssimo, vem datado de 26 de julho de 2017, no qual ele confessa que escrever o livro foi “quase um exame de consciência... que recolhe experiências e reflexões de uma existência” (p. 744). Ricupero concluiu o texto principal pouco depois do impeachment da presidente que produziu a maior recessão da história do Brasil, e o fecho definitivo quando uma nova crise “ameaça engolir” o seu sucessor. O núcleo central da obra é composto por uma análise, profundamente embasada no conhecimento da história, dos grandes episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante política pública cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das educacionais – pode ser considerado como plenamente exitoso.
A diplomacia brasileira começou por ser portuguesa, mas se metamorfoseou em brasileira pouco depois, e a ruptura entre uma e outra deu-se na superação da aliança inglesa, que era a base da política defensiva de Portugal no grande concerto europeu. Já na Regência existe uma “busca da afirmação da autonomia” (p. 703), conceito que veio a ser retomado numa fase recente da política externa, mas que Ricupero demonstra existir embebido na boa política exterior do Império. A construção dos valores da diplomacia do Brasil se dá nessa época, seguido pela confiança no Direito como construtor da paz, o princípio maior seguido pelo Barão do Rio Branco em sua diplomacia de equilíbrio entre as grandes potências da sua época. Vem também do Barão a noção de que uma chancelaria de qualidade superior devia estar focada na “produção de conhecimento, a ser extraído dos arquivos, das bibliotecas, do estudo dos mapas” (p. 710). Esse contato persistente, constante, apaixonante pela história, constitui, aliás, um traço que Ricupero partilha com o Barão, o seu modelo de diplomata exemplar, objeto de uma fotobiografia que ele compôs com seu antigo chefe, o embaixador João Hermes Pereira de Araujo, com quem ele construiu o Pacto Amazônico, completando assim o arco da cooperação regional sul-americana iniciada por Rio Branco setenta anos antes.
O livro não é, como já se disse, uma simples história diplomática, mas sim um grande panorama de mais de três séculos da história brasileira, uma vez que nele, como diz Ricupero, “tentou-se jamais separar a narrativa da evolução da política externa da História com maiúscula, envolvente e global, política, social, econômica. A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo” (p. 738-9). O paradigma diplomático já foi oferecido nesta obra; falta construir o da nação.

[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de setembro de 2017]

quinta-feira, 19 de outubro de 2017

Minha homenagem a Oswaldo Aranha - Paulo Roberto de Almeida

        Por ocasião do lançamento, no Itamaraty e na Casa Thomas Jefferson, na Asa Sul de Brasília, de dois livros apresentando uma iconografia quase completa, e uma coletânea de textos escritos, entrevistas e discursos de Oswaldo Aranha, preparei um texto em homenagem ao grande estadista, ao chanceler brasileiro, o maior no século XX, depois de Rio Branco.
De fato, Oswaldo Aranha foi, depois do Barão do Rio Branco, o maior chanceler brasileiro em todo o século XX, segundo uma frase, que figura nos dois livros aqui apresentados, do embaixador Rubens Ricupero, ele mesmo autor de um outro monumento à inteligência nacional, que é o seu livro recém publicado, A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017). 

Não há nenhuma dúvida a esse respeito, como justamente testemunham os dois livros agora lançados: Oswaldo Aranha: uma fotobiografia, de Pedro Corrêa do Lago, ajudado por seu irmão Luiz Aranha Corrêa do Lago, bem como a coletânea Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro, em dois volumes, publicada pela Fundação Alexandre de Gusmão, um trabalho de coleta, organização e refinamento editorial, por funcionários do Instituto de Pesquisa de Relações Internacionais, da Funag, dos textos mais significativos de Oswaldo Aranha. 

As duas obras prestam uma justa homenagem à personalidade ímpar e à ação política e diplomática excepcionais, ao longo de nossa história, entre os anos 1930 e 1960, do famoso político gaúcho, um dos líderes, senão O Líder, da Revolução liberal de 1930, seguidamente ministro da Justiça e ministro da Fazenda no governo provisório de Getúlio Vargas (entre 1931 e 1934), logo depois embaixador em Washington (de 1934 a 1937), cargo a que renunciou imediatamente após, e em protesto ao golpe do Estado Novo, em novembro de 1937, finalmente chanceler do Brasil, de 1938 a 1944, num dos períodos mais decisivos do século XX, e um dos mais dramáticos na história do Brasil, quando ele soube corajosamente ancorar o Brasil junto ao bloco das Nações Aliadas que resistiam à fúria militar, devastadora e tirânica, das potências agressoras nazifascistas. Aranha também foi, mais uma vez e finalmente, ministro da Fazenda no governo constitucional de Getúlio Vargas, de meados de 1953 até o suicídio do ex-ditador, em agosto de 1954, quando novamente ele salva o Brasil de graves ameaças em sua economia e balanço de pagamentos, como já tinha feito nos anos 1930.
As duas obras se completam, se complementam, em suas vocações respectivas, ao oferecer um painel ricamente ilustrado, por imagens e textos, sobre o homem, o político, o estadista que, mais do que qualquer outro em nossa história, soube preservar, nos anos sombrios da depressão e das ameaças totalitárias nos anos 1930, os valores democráticos da nação brasileira e as melhores tradições da nossa diplomacia mais do que centenária, bissecular.
A Fotobiografia, uma obra extremamente rica, inédita em toda a nossa história editorial, oferece, graças aos esforços de pesquisa e trabalho, durante mais de duas décadas, dos dois irmãos Aranha aqui presentes, mais de 600 imagens e cerca de 500 depoimentos sobre o grande homem que foi Oswaldo Aranha. Os dois volumes agora publicados pela Funag conseguiram coletar, por sua vez, a partir de uma enorme massa de material primário, até aqui dispersa em arquivos diversos e publicações avulsas, tudo o que de mais importante Oswaldo Aranha escreveu ou falou entre 1930 e 1959, deixando infelizmente de lado suas atividades da primeira fase, já examinadas em obra historiográfica de Luiz Aranha Corrêa do Lago, que examina a sua carreira até a Revolução de 1930.
A atenção dos dois volumes da Funag esteve focada na obra diplomática de Oswaldo Aranha, e ele merecia esta homenagem no ano em que comemoramos os 70 anos da sessão da Assembleia Geral da ONU, por ele presidida, em 1947, que votou pela partilha da Palestina, até então sob mandato britânico, determinando a criação de dois estados independentes na região. Oswaldo Aranha, obviamente, merece esta homenagem por bem mais do que isso, já que ele foi um dos mais extraordinários modernizadores e construtores do Brasil tal como o conhecemos hoje, plenamente democrático e inserido na economia mundial, exibindo valores e princípios já defendidos desde o início do século XX por estadistas como o Barão do Rio Branco e Rui Barbosa, dois homens, dois pensadores, dois historiadores e diplomatas aos quais Oswaldo Aranha devotava incontida admiração e apreço.
Cabe justamente recordar que Oswaldo Aranha, quando jovem estudante na Faculdade de Direito do Rio de Janeiro, como registrado na importante biografia que dele fez o brasilianista Stanley Hilton, publicada no ano do seu centenário, em 1994, fez um discurso de homenagem a Rui Barbosa, em 1916, quando este retornava de Buenos Aires, na condição de representante diplomático do Brasil nas comemorações do primeiro centenário da República Argentina, em cuja capital ele tinha pronunciado o célebre discurso sobre “os deveres dos neutros”, motivado pela invasão da Bélgica, neutra, por tropas do Império alemão. Ele retomou o mesmo discurso, e as mesmas invectivas de Rui contra a Alemanha, quando suas tropas novamente romperam e violaram a neutralidade da Bélgica, nas horas mais sombrias da Segunda Guerra Mundial, relembrando ao ditador Getúlio Vargas que ser neutro não significava ser imparcial ante o crime e a injustiça. Ele soube, assim, mais adiante, na conferência extraordinária dos chanceleres americanos, realizada no Rio de Janeiro em janeiro de 1942, depois do traiçoeiro ataque japonês em Pearl Harbor, interromper a neutralidade brasileira em face da guerra europeia, e romper as relações diplomáticas do Brasil com as potências agressoras, no momento em que a guerra se tornava mundial.
Graças em grande medida aos esforços de Oswaldo Aranha, o Brasil soube fazer uma escolha decisiva num dos momentos mais cruciais de sua história, como ainda nos lembra o embaixador Rubens Ricupero, em seu livro de história diplomática, colocando nosso país do lado não apenas vencedor na contenda global, mas do lado mais justo e mais legítimo, o das nações democráticas, defensoras dos direitos humanos e das liberdades. Este foi o  chanceler Oswaldo Aranha, e a ele devemos nossas justas homenagens, como agora se faz com o lançamento destas duas obras de valor.

Oswaldo Aranha: um estadista brasileiro 
Sérgio Eduardo Moreira Lima; Paulo Roberto de Almeida; Rogério de Souza Farias (organizadores); 
Brasília: Funag, 2017; 
disponível na Biblioteca Digital da Funag: 
volume 1, 568 p.; ISBN: 978-85-7631-696-1; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=913
volume 2, 356 p.; ISBN: 978-85-7631-697-8; link: http://funag.gov.br/loja/index.php?route=product/product&product_id=914

segunda-feira, 16 de outubro de 2017

Nesta sexta-feira, 20 de outubro, o CEBRI realizará o seminário 
"A Diplomacia na construção do Brasil", 
para lançamento do livro do Ministro Rubens Ricupero. 
O evento ocorrerá na Academia Brasileira de Letras, localizado n
Av. Presidente Wilson, 203,  das 10h às 12h.
Você pode se inscrever clicando na imagem abaixo.
 

segunda-feira, 9 de outubro de 2017

Resenha do livro do Ricupero publicada: OESP, 8/10/2017

Meu artigo mais recente publicado, na verdade a resenha do livro do Ricupero: 

Addendum intrometido: Programa Roda Viva com o Embaixador Ricupero, em 9/10/2017, neste link: https://www.youtube.com/watch?v=f7JGDD2POTo


1266. “O Brasil segundo a diplomacia”, [Resenha de A diplomacia na construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal Editores, 2017)], O Estado de S. Paulo (domingo, 8 de outubro de 2017, p. E2, Caderno Aliás, Política, sob o título ““História da diplomacia no Brasil tem novo livro definitivo”, em 7/10/2017, link: http://alias.estadao.com.br/noticias/geral,historia-da-diplomacia-no-brasil-tem-novo-livro-definitivo,70002030739).  Divulgado no blog Diplomatizzando (link: http://diplomatizzando.blogspot.com.br/2017/09/cesse-tudo-o-que-musa-antiga-canta.html). Relação de Originais n. 3168.


Transcrevo o texto, já postado neste espaço, para melhor leitura dos interessados:


Construindo a nação pelos seus diplomatas: o paradigma Ricupero

Paulo Roberto de Almeida 

Em meados do século XX, os candidatos à carreira diplomática tinham uma única obra para estudar a política externa brasileira: a de Pandiá Calógeras, publicada em torno de 1930, equivocadamente intitulada A Política Exterior do Império, quando partia, na verdade, da Idade Média portuguesa e chegava apenas até a queda de Rosas, em 1852. Trinta anos depois, os candidatos passaram a se preparar pelo livro de Carlos Delgado de Carvalho, História Diplomática do Brasil, publicado uma única vez em 1959 e durante muitos anos desaparecido das livrarias e bibliotecas. No início dos anos 1990, passou a ocupar o seu lugar o livro História da Política Exterior do Brasil, da dupla Amado Cervo e Clodoaldo Bueno. Finalmente, a partir de agora uma nova obra já nasce clássica: A Diplomacia na Construção do Brasil, 1750-2016 (Rio de Janeiro: Versal, 2017, 780 p.), do embaixador Rubens Ricupero, ministro da Fazenda quando da introdução do Real, secretário-geral da Conferência das Nações Unidas para o Comércio e Desenvolvimento nos anos 1990, atualmente aposentado.
O imenso trabalho não é uma simples história diplomática, mas sim uma história do Brasil e uma reflexão sobre seu processo de desenvolvimento tal como influenciado, e em vários episódios determinado, por diplomatas que se confundem com estadistas, aliás desde antes da independência, uma vez que a obra parte da Restauração (1680), ainda antes primeira configuração da futura nação por um diplomata brasileiro a serviço do rei português: Alexandre de Gusmão, principal negociador do Tratado de Madri (1750). Desde então, diplomatas nunca deixaram de figurar entre os pais fundadores do país independente, entre os construtores do Estado, entre os defensores dos interesses no entorno regional, como o Visconde do Rio Branco, e entre os definidores de suas fronteiras atuais, como o seu filho, o Barão, já objeto de obras anteriores de Ricupero.
O Barão do Rio Branco, aliás, é um dos poucos brasileiros a ter figurado em cédulas de quase todos os regimes monetários do Brasil, e um dos raros diplomatas do mundo a se tornar herói nacional ainda em vida. Ricupero conhece como poucos outros diplomatas, historiadores ou pesquisadores acadêmicos a história diplomática do Brasil, as relações regionais e o contexto internacional do mundo ocidental desde o início da era moderna, professor que foi, durante anos, no Instituto Rio Branco e no curso de Relações Internacionais da Universidade de Brasília. Formou gerações de diplomatas e de candidatos à carreira, assim como assessorou ministros e presidentes desde o início dos anos 1960, quando foi o orador de sua turma, na presidência Jânio Quadros.
Uma simples mirada pelo sumário da obra confirma a amplitude da análise: são dezenas de capítulos, vários com múltiplas seções, em onze grandes partes ordenadas cronologicamente, de 1680 a 2016, mais uma introdução e uma décima-segunda parte sobre a diplomacia brasileira em perspectiva histórica. Um posfácio, atualíssimo, vem datado de 26 de julho de 2017, no qual ele confessa que escrever o livro foi “quase um exame de consciência... que recolhe experiências e reflexões de uma existência” (p. 744). Ricupero concluiu o texto principal pouco depois do impeachment da presidente que produziu a maior recessão da história do Brasil, e o fecho definitivo quando uma nova crise “ameaça engolir” o seu sucessor. O núcleo central da obra é composto por uma análise, profundamente embasada no conhecimento da história, dos grandes episódios que marcaram a construção da nação pela ação do seu corpo de diplomatas e dos estadistas que serviram ao Estado nessa vertente da mais importante política pública cujo itinerário – à diferença das políticas econômicas ou das educacionais – pode ser considerado como plenamente exitoso.
A diplomacia brasileira começou por ser portuguesa, mas se metamorfoseou em brasileira pouco depois, e a ruptura entre uma e outra deu-se na superação da aliança inglesa, que era a base da política defensiva de Portugal no grande concerto europeu. Já na Regência existe uma “busca da afirmação da autonomia” (p. 703), conceito que veio a ser retomado numa fase recente da política externa, mas que Ricupero demonstra existir embebido na boa política exterior do Império. A construção dos valores da diplomacia do Brasil se dá nessa época, seguido pela confiança no Direito como construtor da paz, o princípio maior seguido pelo Barão do Rio Branco em sua diplomacia de equilíbrio entre as grandes potências da sua época. Vem também do Barão a noção de que uma chancelaria de qualidade superior devia estar focada na “produção de conhecimento, a ser extraído dos arquivos, das bibliotecas, do estudo dos mapas” (p. 710). Esse contato persistente, constante, apaixonante pela história, constitui, aliás, um traço que Ricupero partilha com o Barão, o seu modelo de diplomata exemplar, objeto de uma fotobiografia que ele compôs com seu antigo chefe, o embaixador João Hermes Pereira de Araujo, com quem ele construiu o Pacto Amazônico, completando assim o arco da cooperação regional sul-americana iniciada por Rio Branco setenta anos antes.
O livro não é, como já se disse, uma simples história diplomática, mas sim um grande panorama de mais de três séculos da história brasileira, uma vez que nele, como diz Ricupero, “tentou-se jamais separar a narrativa da evolução da política externa da História com maiúscula, envolvente e global, política, social, econômica. A diplomacia em geral fez sua parte e até não se saiu mal em comparação a alguns outros setores. Chegou-se, porém, ao ponto extremo em que não mais é possível que um setor possa continuar a construir, se outros elementos mais poderosos, como o sistema político, comprazem-se em demolir. A partir de agora, mais ainda que no passado, a construção do Brasil terá de ser integral, e a contribuição da diplomacia na edificação dependerá da regeneração do todo” (p. 738-9). O paradigma diplomático já foi oferecido nesta obra; falta construir o da nação.

[Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de setembro de 2017]

sexta-feira, 6 de outubro de 2017

Ricupero: crise economica, instabilidade política, corrupcao - livro

Ricupero: dinâmica da política no país tem sido a mesma do câncer

Em novo livro, o embaixador Rubens Ricupero faz uma reflexão sobre os desafios da política e a história das relações exteriores do Brasil

“Desde a queda do Estado Novo, em 1945, até nossos dias, o Brasil passou, em pouco mais de 72 anos, por três regimes políticos: o da Constituição de 1946, o dos militares (1964-1985) e o da Constituição de 1988. No primeiro deles, de 18 anos, apenas dois dos cinco presidentes (Dutra e Juscelino) começaram e terminaram o mandato nas datas previstas. Dos três outros, um se matou (Getúlio, 1954), o segundo renunciou (Jânio, 1961), e o terceiro foi deposto (Jango, 1964). Passemos por cima dos quase 21 anos do regime militar. Agora o atual regime político já passou dos 32 anos, quase o dobro do primeiro. Dos sete presidentes, um chegou ao fim do mandato só Deus sabe como (Sarney, 1990); dois sofreram impeachment (Collor, 1992; Dilma, 2016); dois cumpriram mandatos duplos (Fernando Henrique e Lula); um completou o termo de Collor (Itamar); e o outro (Temer) tenta fazer o mesmo com o de Dilma. A primeira e inescapável conclusão é que os governos não se tornaram mais estáveis. A taxa de instabilidade e ruptura continua intoleravelmente alta, ainda que agora os afastamentos sejam feitos não por golpes militares.
Debaixo da volatilidade política está uma enorme oscilação na economia. Desde os choques do petróleo e da crise da dívida externa dos anos 80, o Brasil perdeu a capacidade de crescer a taxas altas por períodos prolongados. Não foi possível garantir estabilidade de preços, crescimento e equilíbrio do orçamento e do balanço de pagamentos ao mesmo tempo. Quando se avançou num dos campos, quase sempre houve desequilíbrio nos outros, culminando, em 2015, com o pior dos mundos: recessão, inflação e um déficit alarmante no orçamento.
Há, no entanto, uma diferença para o passado: mesmo nas horas mais difíceis, não se perdeu por completo o controle da inflação e, desta vez, evitou-se o estrangulamento externo. Outro progresso no período foram o nível de consciência a respeito da dívida social e a adoção de políticas públicas eficazes para eliminar a indigência, reduzir a pobreza, diminuir a desigualdade, melhorar a saúde, a educação e o meio ambiente, emancipar as mulheres, combater o preconceito contra as diferenças de sexualidade, reconhecer e promover os direitos de negros e indígenas com ações afirmativas e corretivas, facilitar o acesso à terra, instituir o respeito aos direitos humanos. Resumindo: integrar à sociedade os que vivem à sua margem. O desafio no futuro será manter e ampliar os avanços em um círculo virtuoso pelo qual democracia, prosperidade e melhoria social reforcem uns aos outros.
Rubens Ricupero: ele foi secretário-geral da Unctad, um dos principais órgãos das Nações Unidas | Ana Paula Paiva/Valor/Folhapress
Alguns cientistas políticos costumam afirmar que nada há de essencialmente errado com o sistema político brasileiro, que cumpriria sua função principal de produzir decisões. Nem o presidencialismo de coalizão nem a fragmentação partidária e outros vícios impediriam o Executivo de obter do Legislativo e do Judiciário as decisões necessárias para governar. Superficialmente, pode parecer verdade. Afinal, a Constituição de 1988 registra nada menos que 93 emendas em 29 anos desde a promulgação (5 de outubro de 1988) — a Constituição dos Estados Unidos ostenta 27 em 228 anos.
O que a análise dos números não mostra é a qualidade e o preço das decisões. Um dos defeitos de minimizar os problemas do sistema político reside em sua suposta neutralidade em matéria de valores. Outro consiste na miopia que leva a enxergar apenas o imediato, sem avistar as consequências mais distantes. Fotografa-se o funcionamento do sistema político num momento, sem assinalar que o sistema é dinâmico, e seus custos, cada vez mais altos em termos éticos e econômicos, terminam por torná-lo disfuncional.
A dinâmica do regime político brasileiro tem sido a mesma do câncer: cresce mediante a proliferação de células até ocasionar a sua morte. O aspecto que melhor ilustra isso (nem de longe o único) é a formação dos partidos. Na época de Geisel/Figueiredo, havia dois partidos, passando a cinco ou seis na abertura democrática. O número foi crescendo até atingir os atuais 35. Há outros 125 com pedidos de aprovação na Justiça Eleitoral! Fora do Brasil, qualquer pessoa que tomasse conhecimento das cifras pensaria que somos um país de insensatos. E, no entanto, em 2006, os sensatos membros do Supremo Tribunal julgaram a cláusula de barreira inconstitucional.
POLÍTICOS DE ALUGUEL
Cria-se um partido para ganhar acesso aos recursos do Fundo Partidário, convida-se um palhaço, uma estrela de TV, um craque de futebol a liderar a chapa de deputados e, com os votos, arrastam-se mais três, quatro ou cinco eleitos, graças ao quociente partidário. Forma-se um pequeno bloco na Câmara ou nas assembleias, e começa aí o ‘negócio da governabilidade’: a troca de votos por verbas, nomeações, propinas. Se, com seis partidos, o custo já é elevado, imagine-se com 30! Nos tempos da escandalosa corrupção política americana, na máquina democrata de Tammany Hall, que dominou a política municipal de Nova York de 1854 a 1934, o conceito de político honrado (honorable politician) era o de alguém que ‘uma vez comprado, permanecerá comprado’ (once bought will stay bought). O problema é que, hoje, alguns políticos já não se vendem mais; alugam-se a cada votação pelo melhor preço.
Malas de Geddel: a Lava-Jato é a reação do sistema imunológico da nação | Divulgação
Juntando a negociação à fragmentação partidária e à impossibilidade de um só partido adquirir maioria própria, não há  dinheiro que seja suficiente. O sistema político transformou-se em mecanismo insaciável da transferência de recursos da economia para os partidos, para os políticos e para uma multidão de intermediários. Até empresas riquíssimas como a Petrobras viram-se quase destruídas pela extorsão. Conquistas que, em circunstâncias normais, fortaleceriam a empresa, como as descobertas do pré-sal, serviram para mudar a escala da corrupção, que saltou dos milhões aos bilhões de dólares. A Operação Lava-Jato é, no fundo, a reação saudável do que resta do sistema imunológico da nação, demonstrando que a maioria dos cidadãos não aceita o intolerável custo ético do funcionamento de um regime político irremediavelmente corrompido.
Pode um tal regime sobreviver aos sinais de esgotamento? Só se for capaz de cortar na própria carne e levar avante uma reforma significativa das distorções escancaradas pela crise do impeachment e da Lava-Jato. Os vícios e as doenças do sistema estão diagnosticados e não existe mistério quanto à cura. As reformas indispensáveis têm sido exaustivamente debatidas e só não foram adotadas em razão da resistência dos interesses, não devido a uma insuperável (e falsa) complexidade das soluções. Sem as reformas cruciais, a ruptura se tornará, cedo ou tarde, inevitável. Os países que dão certo são aqueles onde as instituições se revelaram capazes de se autorreformar no grau necessário e na hora adequada. Estará o Brasil entre eles? A resposta vai depender não do fado ou das estrelas, e sim do que acontecer a partir de agora. Nada, nem o sucesso nem o fracasso, está predeterminado ou garantido.