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sábado, 13 de abril de 2024

A marcha da insensatez (o embate STF-X) - Fernando Schüler (Veja)

A marcha da insensatez

Vivemos em um país onde os cidadãos não podem defender uma mudança nas leis? Defender, por exemplo, algo similar à Primeira Emenda americana?

Por Fernando Schüler

 VEJA, 13 abril 2024

 

“Para que tanta censura?”, começou perguntando Elon Musk. Depois o caldo entornou. A bronca de Musk vem na sequência da revelação dos Twitter Files, pelo jornalista Michael Shellenberger, e das denúncias que todos de algum jeito conhecemos. O Estado brasileiro querendo dados de usuários, para saber quem divulga esta ou aquela hashtag, censura a parlamentares, desmonetização e apagamento de contas, e por aí vai. Os temas envolvidos são políticos, os personagens são políticos, e não há muita novidade aí. A área jurídica da rede disse que “não havia indício de ilegalidade” naquelas opiniões. Mas obviamente o conceito do que é legal ou ilegal se tornou bastante flexível, ao menos por aqui, nos últimos tempos. O direito “líquido”, me disse um colega, bem-humorado, por estes dias. E quem sabe nesse ponto resida boa parte do problema.

SENSATEZ - Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte: “Livre mercado de ideias”SENSATEZ - Oliver Wendell Holmes, da Suprema Corte: “Livre mercado de ideias” (Bettmann/Getty Images)

 

O imbróglio, nesta confusão toda, não é Musk. Ronaldo Lemos matou a charada ao dizer que não cabia ao Estado brasileiro fazer todo esse alarde com as declarações de Musk. Bastaria agir na forma da lei, caso a empresa de fato cometer uma ilegalidade. O problema é que as perguntas, alertas e denúncias de Musk incomodam. Ele faz o papel daquele vizinho que, em um dia qualquer, diz que “está acontecendo alguma coisa estranha naquela casa”. Sejamos claros: o que ele diz sobre censura prévia e controle de opinião, no país, basicamente já sabemos. E fomos empurrando com a barriga. A diferença é que agora a coisa toda foi jogada em um imenso ventilador. Xingar o Musk, chamar de “menino mimado”, “drogado”, “extremista de direita” e os impropérios de sempre, pode ser um bom divertimento, mas não passa muito de um truque. As perguntas que realmente importam dizem respeito a nós mesmos e à nossa democracia. E nós sabemos quais são: há ou não censura prévia no Brasil? Há devido processo? Acesso de advogados aos autos? E o que vamos fazer com os famosos inquéritos, que já vão para mais de cinco anos? Há uma fila de perguntas, e nada disso tem a ver com Elon Musk, nem será resolvido por ele.

O que me fascina, nessa confusão toda, é o choque entre duas histórias e duas culturas jurídicas. De um brilhante jurista, escutei que “Musk faz isso porque sabe que está protegido pela Primeira Emenda”. Bingo. É porque está sob a guarda das instituições da mais antiga democracia do planeta que Musk pode dizer o que pensa e dormir tranquilo. Ele sabe que fala ancorado em uma tradição que vem de Madison e Jefferson, do Bill of Rights de 1791, atualizada por gerações de juízes da Suprema Corte americana. Do lado de cá, nós também temos a nossa tradição. Nossas sete constituições, nossas duas longas ditaduras, no século XX. E aquela frase de Sérgio Buarque sobre nosso estranhamento com a ideologia “impessoal” do liberalismo, que “jamais se naturalizou entre nós”.

Choque de culturas significa o seguinte: não há “delito de opinião”, na tradição americana. Diferentemente do que acontece por aqui. Vimos isso ainda agora, quando a Justiça americana negou a extradição do blogueiro Allan dos Santos. Depois de assistir a vídeos do sujeito, levados pela turma do lado de cá, o funcionário americano (imagino que um tanto entediado), foi claro: “São apenas palavras”. E encerrou a questão. É o mesmo caso do youtuber Monark. Em uma conversa meio sem nexo, na internet, ele resolveu “achar” que qualquer agremiação política, mesmo um partido nazista, deveria ter direito à expressão. Foi o que bastou. Banimento, processo, pedido de multa milionário. Do seu jeito tosco, ele defendeu o mesmíssimo princípio consagrado no direito americano. O direito afirmado em decisões históricas, como a tomada pela Suprema Corte em 1978, autorizando uma passeata nazista em Skokie, comunidade judaica, perto de Chicago. O que o youtuber sugeriu, na prática, foi uma mudança na lei brasileira. Da qual discordo, o que é irrelevante. A pergunta é: vivemos em um país onde os cidadãos não podem defender uma mudança nas leis? Defender, por exemplo, algo similar à Primeira Emenda americana? É este o país em que nos transformamos?

É exatamente aqui que entra um novo personagem: Oliver Wendell Holmes. Veterano da Guerra Civil Americana e depois juiz da Suprema Corte, foi ele quem formulou o famoso critério do “risco claro e imediato” para definir os limites da liberdade de expressão. O caso tratava de um líder socialista da Filadélfia, Charles Schenck, que havia soltado panfletos contra o recrutamento obrigatório na Primeira Grande Guerra. O critério de Holmes era claro: o direito à expressão não deveria depender de interpretações abertas sobre os riscos de uma opinião. O critério deveria ser objetivo: o risco imediato da violência. Meses depois, Holmes julgaria um caso envolvendo ativistas comunistas, em Nova York, contrários à interferência americana na Revolução Russa. Um deles era Jacob Abrams, judeu e militante de esquerda. Holmes agiu com base naquele princípio. E o fez na forma de um voto dissidente. Absolveu Abrams e seus colegas, e colocou seu próprio nome na tradição dos direitos e da democracia liberal.

Holmes argumentou que, se há algo que podemos aprender com a tradição moderna, é que não há forma mais segura de nos aproximarmos da verdade do que o “livre mercado de ideias”. E que esta era, em última instância, a “teoria da nossa Constituição”. É um “experimento”, ele diz, “como toda a vida é um experimento”. Sempre me surpreendo com essas palavras. Da ideia da Constituição como um “experimento”. Holmes havia lido muito Adam Smith, e de alguma forma transfere para o mundo das ideias e do próprio direito o princípio que Smith tão bem compreendeu para a economia. A lógica simples de que respeitar a regra do jogo, mantendo-se sempre aberta a praça do mercado à livre competição de ideias, é uma ótima maneira de viver. Onde todos ganham, ainda que isso nos custe o preço de muitas péssimas ideias, no curto prazo. O custo, por exemplo, de ideias “perigosas” como aquelas que Abrams e seus amigos espalhavam em uma noite qualquer de Nova York.

Por vezes as pessoas me sugerem que não há muito sentido em falar da tradição americana. Que somos brasileiros e que por aqui temos outra visão sobre a liberdade de expressão. Discordo. Não me consta que teríamos sido feitos para o cangote. E, tanto lá como aqui, as leis vedam a censura prévia e não reconhecem o delito de opinião. Também nós temos uma teoria de nossa Constituição, filha dos anos 80 e de seu desejo de garantir a liberdade e limitar o poder. De consagrar uma sociedade aberta, não a democracia de tutela em que vamos nos convertendo. A estranha democracia feita de agentes de Estado bisbilhotando conversas no rádio, vídeos no YouTube, contas no Twitter e bate-papos no WhatsApp. Se esse será nosso destino ou se andamos apenas num desvio de curso é a pergunta a que devemos responder. Talvez nos falte um Holmes ou um Madison, lá atrás. Ou, quem sabe, uma grande tradição liberal. Não sei. O fato é que nossa marcha da insensatez já foi longe demais. São sobre isso, no fundo, os alertas que nos são dados, por estes dias, aos quais deveríamos prestar atenção.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper


terça-feira, 23 de janeiro de 2024

A irracionalidade da luta contra as desigualdades - Fernando Schüler (Veja)

 Soma variável

Fernando Schüler

Veja (20/01/2024)


“Ninguém deveria ter 1 bilhão de reais!”, leio de um ativista. Achei curioso. De onde vem uma ideia dessas? Conheço uma empreendedora que abriu uma empresa, investiu, muita gente apostou, conquistou uma clientela enorme, e em poucos anos suas ações valiam mais de 1 bilhão. O que ela deveria fazer? Vender tudo que passasse da quota de 1 bilhão? Se ela ficasse com o dinheiro, não ia adiantar. Ela poderia doar. O valor das ações passou de 1 bilhão, ela vende e doa o dinheiro. Ou alguém do governo vai lá e confisca. A pergunta previsível, neste caso, seria “mas então por que eu iria continuar trabalhando, correndo risco?”. Por esporte? E se as ações caírem, depois do confisco? Deixa pra lá…

Em um desses “relatórios” sobre a desigualdade, li coisas interessantes. Uma era a “denúncia” de que a riqueza dos cinco mais ricos do mundo “dobrou desde 2020”. Malandragem estatística escolher exatamente o ano de queda abrupta dos mercados, com a pandemia. Mas ok. Um desses ricos malvados é o Jeff Bezos. O self-made man que trocou um bom emprego para abrir a Amazon. Sou um de seus clientes. Não pela cor dos seus olhos, que aliás desconheço. Compro lá porque a Amazon me vende livros a bom preço e entrega rapidinho. Porque a empresa do Bezos torna minha vida mais fácil. Aumenta minha “produtividade”, se alguém quiser um termo mais elegante. Os investidores sabem disso. E é por isso que o “patrimônio” do Bezos dobrou, desde a baixa de 2020. Assim como ele melhora a minha vida, ele faz isso com milhões de pessoas, do sacrossanto ponto de vista de cada um.

Não há nenhum jogo de soma zero funcionando aí. A soma é variável: ele ganha porque seus clientes e investidores também ganham. Valendo o mesmo para as incontáveis ONGs que a MacKenzie Scott, ex-­esposa de Bezos, ajuda, distribuindo incríveis doações. E é precisamente isso que parece não entrar na cabeça de nossos ativistas.

Me lembro quando li O Capital no Século XXI, de Thomas Piketty. Em um certo momento, ele diz que “as desigualdades, a partir de um certo ponto, ameaçam os valores básicos da democracia”. Fiquei curioso para saber qual seria exatamente aquele “ponto”. Seria quando o 1% abocanhasse 25% da riqueza? (De “quem”, exatamente?) Ou quem sabe 20%? Ou 30%? À época, adquiri o hábito de perguntar às pessoas qual era a distribuição da riqueza favorita de cada um. Até colecionava os números, que iam da “igualdade total”, ao “padrão nenhum”. Depois desisti. Agora voltei a ler coisas assim. De um economista, li que era um “absurdo” que nosso top 5% “concentrasse” um terço da renda. Inútil perguntar qual seria sua distribuição “não absurda”. Sugestão mais objetiva tive do Joseph Stiglitz, cuja distribuição favorita seria “os 10% mais ricos não podem ter mais do que os 40% mais pobres”. Só Deus sabe qual a “ciência” usada aí. Nossos ativistas embarcaram: “Ganhou o Nobel, sabe das coisas”, devem ter pensado. Me fez lembrar da turma correndo atrás do Forrest Gump. Mas isso é outra história.

Em qualquer matéria sobre “desigualdade”, o que oferece consistência ética ao problema é o fato da pobreza. Ninguém perde uma hora de sono preocupado com a diferença entre o que chamamos de “classe média alta”, que na verdade são os 5 ou 7% de maior renda, e os mais ricos. O que efetivamente nos toca é o fato de que 90% da população disponha de uma renda mensal inferior a 3 208 reais (dados do IBGE). A pobreza, no Brasil, é um oceano. E é nisso que deveríamos focar. Na pobreza que atinge 49% das crianças de 0 a 14 anos, danificando suas chances de vida. Tudo isso é sabido. Mas mobiliza muito pouco o ativismo ideológico e a política profissional. Por que isso? Por que achamos tão mais excitante falar mal do valor das ações do Jeff Bezos do que focar em como melhorar a vida real dos mais pobres? A maior razão, intuo, é política. A retórica em torno da desigualdade é uma pauta de “combate”. É discurso “contra” essa gente da lista da Forbes. O foco na pobreza supõe um discurso “a favor”. É chato, exige buscar eficiência em políticas públicas, demanda soluções de mercado, com resultados de longo prazo. E dá menos ibope. Bom mesmo é “denunciar as desigualdades”, jogar isso na cara daqueles bilionários, em Davos, entre um e outro jantar bacana.

Indermit Gill, do Banco Mundial, tem uma sugestão simples, se queremos mudar o disco: aprender com as economias mais bem-sucedidas na redução da pobreza. Países asiáticos, como a Coreia do Sul, Singapura, Tailândia, Malásia, China, Indonésia e Vietnã. Todos contam a mesma história: sucesso capitalista e forte investimento em educação. Rigorosamente nada a ver com “combater os bilionários”. Ao contrário. A pobreza foi de 28% para 8,5%, no plano global, desde 2000, enquanto o número de bilionários saltou de 400 para 2 600. O país que mais ganhou bilionários foi exatamente aquele que mais reduziu a pobreza: a China. Logo atrás, a Índia. E isso não acontece porque “bilionários reduzem a pobreza”. Acontece porque a redução da pobreza e o aumento da riqueza são duas faces da mesma moeda: o crescimento econômico combinado a instituições “inclusivas”. Abertura de mercado, aumento da produtividade, capacitação de pessoas, ética pública, racionalidade no gasto governamental, bom ambiente de negócios. Caminho perfeitamente inverso ao da Venezuela, que conseguiu levar a pobreza a 90% da população e expulsar os poucos bilionários que havia por lá.

Há 35 anos, o prestigiado IMD, International Institute for Management Development, avalia o grau de competitividade, ou “ambiente de negócios”, em escala global. Ano passado, em um ranking de 64 países, o Brasil ficou na 60ª posição. Só à frente de países como a Venezuela e a Argentina (antes do Milei). Detalhe: em “eficiência governamental”, ficamos na 62ª posição. Se alguém estiver mesmo interessado em reduzir a pobreza, é nisso que deveria prestar atenção. Qual educação estamos oferecendo, nas últimas posições no Pisa? Que vias de inclusão ao mercado abrimos aos dependentes do Bolsa Família? Qual a qualidade do gasto público? O que significa 4,5% do PIB em incentivos fiscais, sem avaliar seriamente a relação custo-benefício? E os 5 bilhões de reais no “fundão eleitoral”? A Justiça e o Legislativo entre os mais caros do mundo, enquanto os espertos pedem mais carga tributária? E o que se passa quando abrimos mão de reformas cruciais? Não precisamos ir longe, aqui. Mario Covas nos falou sobre um “choque de capitalismo”, na campanha de 1989, mas nunca conseguimos produzir um consenso em torno disso, no Brasil. E talvez seja este, ano após ano, nosso desafio.

Fernando Schüler é cientista político e professor do Insper.

segunda-feira, 7 de agosto de 2023

A tragédia do ensino fundamental no Brasil - Cristovam Buarque (Veja)

PRIMEIRO, O ALICERCE

Cristovam Buarque

Veja, 5/08/2023

A EDUCAÇÃO DE BASE deve oferecer o conhecimento do mapa necessário para cada pessoa caminhar na busca da felicidade individual e participar da construção do país. Sem isso, asfixiamos a juventude no analfabetismo e sufocamos a universidade por falta de alunos bem preparados. Mas a política educacional nas últimas décadas se caracterizou por uma espécie de neoliberalismo social orientado para atender à demanda de alguns por diploma universitário, ignorando a necessidade de educação de base para todos. Entre 1995 e 2020, multiplicamos por 5 o número de alunos no ensino superior, e apenas por 2 o número de concluintes do ensino médio, sem melhorar a qualidade do que eles aprendiam.

Com a promessa de oferecer o teto, o Brasil abandonou a construção do alicerce e degradou o edifício da educação. Tratada como um bem de consumo, não como ferramenta para cada pessoa orientar-se na vida e construir o país. Com o slogan “Universidade para todos” passamos a ilusão de que o futuro da pessoa e do país depende do diploma universitário, mesmo sem conhecimento, nem emprego nem renda. Apesar do positivo salto no número de universitários, há vinte anos o Brasil tem o mesmo número de 10 milhões de adultos analfabetos; apenas 50% de nossos jovens concluem o ensino médio, no máximo metade desses com a qualificação que se espera para enfrentar as dificuldades da vida social. Estima-se que menos de 10% dos que ingressam na universidade são proficientes em português e matemática, raros em inglês. O resultado é um imenso exército com dezenas de milhões de jovens analfabetos para a contemporaneidade e sem preparo para um curso superior. Por isso, em 2011, a evasão nas universidades foi de 2,5 milhões de alunos, 36,6% do total de matriculados no ensino superior; dos que conseguiram concluir, grande parte se graduou em cursos sem qualidade, nem chance de empregabilidade e renda.

Essa visão chega a tal ponto que no Brasil os três anos posteriores ao ensino fundamental não se chamam “conclusivo da educação de base”, mas “médio”, visto como degrau para o superior. Não é boa estratégia, mas tem sido promovida para seduzir eleitores que preferem a ilusão de comemorar o ingresso no ensino superior, mesmo em um curso sem perspectiva, do que comemorar a conclusão da educação de base, em um curso que prepare para o futuro.

A educação brasileira, inclusive nas universidades, estaria melhor se tivéssemos dado mais atenção à educação de base, oferecendo ensino fundamental sólido e a etapa conclusiva de qualidade. Todos alfabetizados para a contemporaneidade: sabendo falar e escrever bem o idioma português; ser fluente em pelo menos um idioma estrangeiro; conhecer os fundamentos da matemática, ciências, geografia, história, artes; debater com competência os temas de filosofia, política, antropologia e sociologia relacionados aos principais temas do mundo moderno; saber usar as ferramentas digitais; dispor de pelo menos um ofício que permita emprego e renda. Prontos para a vida e o país, de modo a seguirem estudando em curso superior, conforme a vocação e os conhecimentos adquiridos. Mas isso exige colocar a solidez do alicerce na frente da ilusão do teto, o que é uma boa estratégia para o futuro do país, mas não para a próxima eleição.


sábado, 5 de agosto de 2023

Justiça pode estar matando a democracia em nome da defesa da democracia - Fernando Schüler (Veja)

 Anatomia de um instante

Fernando Schüler, Revista Veja (05/08/2023)

Ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituição

Sempre gostei das histórias malditas, dos personagens improváveis, que por alguma razão se perdem por aí. Um desses personagens é um comediante chamado Bismark Fugazza, e sua história nos dá um flash do transe brasileiro atual. Fugazza e um colega haviam denunciado o ministro Alexandre de Moraes à Corte Interamericana de Direitos Humanos, por violar os “direitos de liberdade de expressão” no país, com “várias prisões” e “multas desproporcionais” sem o devido processo legal. Foi preso no Paraguai, com direito a uma operação internacional e a fechar por alguns minutos a Ponte da Amizade, e passou três meses em cana. O motivo é o de sempre, as “ameaças à democracia” e coisas afins. Na cobertura do caso, quase nenhuma, o carimbo “influenciador bolsonarista” parece resumir a questão. O relatório da Polícia Federal sobre o seu caso foi taxativo: “Não foi possível evidenciar, de maneira minimamente razoável, que Fugazza tenha promovido atos atentatórios às instituições democráticas no 8 de Janeiro”.

Casos como este se tornaram a mais perfeita banalidade por aqui. Um dos mais curiosos foi o do youtuber Monark, banido das redes sociais por espalhar “desinformação” sobre o processo eleitoral. “A gente vê o TSE censurando gente”, disse ele, “e impedindo a transparência das urnas? Você fica desconfiado. Que maracutaia está acontecendo nas urnas ali?”. Foi banido, e logicamente é inútil perguntar se há alguma lei no país tipificando um crime de “desconfiança”. Monark simplesmente deu sua opinião, na forma de uma pergunta perdida em meio a uma conversa fiada, ademais perfeitamente irrelevante, com a qual cada um pode ou não concordar.

Não faço ideia se alguém seriamente acredita que reprimir essas pessoas atende a algum imperativo de “defesa da democracia”. Desconfio que não. As eleições já vão longe, há um certo cansaço disso tudo, e de certa forma o ministro Barroso matou a charada naquele discurso sem muitos rodeios, no Congresso da UNE. “Derrotamos o bolsonarismo.” Ponto. Difícil ir mais longe nesta análise. A esta altura do jogo, não acho que valha muito a pena fazer longas considerações sobre o sentido do estado de direito, sobre o quanto é absurdo e inaceitável que a Justiça tome partido, que direitos individuais sejam tão escrachadamente violados, que a censura prévia seja banalizada, e tudo o que todos estão cansados de saber. Ainda por estes dias lia um belo texto referindo-se à visão do grande Isaiah Berlin sobre o sentido da liberdade, no mundo político. A ideia de que “só ela era capaz de respeitar nossas almas divididas e o conflito sem fim entre nossos objetivos e valores”. Berlin fala do aprendizado moderno que vem de Montaigne, de John Locke, e cuja síntese é: não concordamos com as ideias uns dos outros, nossos deuses se opõem e nossos valores são frequentemente incompatíveis entre si. E, apesar disso, precisamos viver juntos. O que só é possível se a regra do jogo for dada pela liberdade, pelo respeito à regra imparcial, pelo mais amplo direito à expressão. Do contrário, resta a violência. Resta ficar prendendo comediantes e palpiteiros por aí, como em uma máquina que subitamente ganha vida própria.

Diante do estado de coisas a que chegamos, há diferentes atitudes. A primeira é dos entusiastas. A turma que saliva por entre os caninos a cada inimigo banido, preso, seja o que for. Dias atrás li um desses. “Não é hora de recuar”, berrava, abusando dos pontos de exclamação. É difícil saber o tamanho exato dessa turma, mas ela parece majoritária, nos meios de opinião. Para essas pessoas, coisas como “estado de direito” ou “tipificação legal” não passam de conversa pra boi dormir, como escutei de um ativista, em um dia nervoso. Desde que o mundo é mundo, a paixão militante soube justificar qualquer coisa. Não conheço um só episódio, na história, em que se praticou a censura em nome da censura. Os motivos sempre foram os melhores. A nação, a liberdade, a própria democracia. Não há propriamente originalidade no caso brasileiro.

A segunda atitude é a do medo. Quando um deputado é banido das redes, por uma decisão de ofício, qual o efeito que isso produz em seus pares? Quando os constituintes criaram o estatuto da imunidade parlamentar, era exatamente para que um deputado pudesse falar sem medo. Vale o mesmo para o jornalismo, e para qualquer cidadão, que ganhou o poder de palpitar em uma rede social. Nos tornamos a democracia do chilling effect, o “efeito inibidor”. O jurista ilustre para quem você liga lhe dá uma visão bastante crítica sobre todos esses temas, mas ao final diz, algo constrangido, “só não me cite, por favor”.

Ainda outra atitude, cada vez mais comum: a indiferença. A agressão a direitos, em um primeiro momento, causa indignação. Sua repetição, porém, nem tanto. Torna-se status quo, e vamos nos ajustando. Isso é comum em longas ditaduras. Alguém por acaso dá bola para presos políticos cubanos? Acompanho seu drama, em sites precários, aos quais ninguém mais presta muita atenção. Em democracias que deslizam para o iliberalismo, isto não é muito diferente. Baniram o Guilherme Fiuza? Aquele que escreveu Meu Nome Não É Johnny? E daí? Pois é. Isto tem lá sua racionalidade. Bancar o herói, numa época difícil, pode ser uma atitude de risco. Melhor ficar escondido, por aí, nos grupos de WhatsApp, mudando de assunto, apostando em alguma forma de autoengano.

Há ainda uma última atitude, dada pela insistência calma em certos princípios. Não é preciso ser nenhum herói para fazer isso. Basta fica de pé. Resistir ao frenesi militante e suas bizarrices, e a toda forma de abuso de poder. Sobre isso há uma lição magistral de Javier Cercas, em seu Anatomia de um Instante, que durante bom tempo foi meu livro de cabeceira. O livro é uma crônica da política espanhola dos anos 1980, época de transição, depois da ditadura franquista. Em um dado momento, há uma tentativa de golpe. Seu líder é o coronel Antonio Tejero, um tipo que parece saído de uma novela de Vargas Llosa. Ele invade o parlamento e mantém sua pantomima por uma madrugada inteira, até se entregar, no dia seguinte. Cercas escreve seu livro a partir de uma fotografia feita no exato instante em que Tejero invade o parlamento e abre fogo contra os deputados. A imensa maioria se esconde embaixo das cadeiras. Permanecem imóveis apenas três parlamentares, entre eles Adolfo Suárez, sentado, calmo e impassível, na primeira fila. “Não achei que ficaria bem para um líder de governo atirar-se para baixo de uma cadeira”, ele diria, depois, recusando-se a atribuir a si qualquer traço de heroísmo.

É uma boa metáfora para o Brasil de hoje. Tanto lá, como aqui, não precisamos de heroísmo algum, apenas de pessoas que se disponham a ficar no mesmo lugar. Permanecer impassíveis, em meio ao transe coletivo, nos lembrando que a lei deve ser preservada, que a opinião, detestável que seja, deve ser livre, que ninguém está acima dos direitos inscritos na Constituição, que o juiz não pode entrar em campo para derrotar este ou aquele lado do jogo. Coisas elementares que definem uma boa democracia, e das quais definitivamente não deveríamos abrir mão.

terça-feira, 1 de agosto de 2023

República dos compadres - Fernando Schüler (Veja)

PAÍS DOS COMPADRES

Por Fernando Schüler, na Veja nº 2852, de 2 de agosto de 2023

DIAS ATRÁS lia o artigo de um jornalista cuja síntese era a seguinte: é preciso haver mais impostos. O texto era meio obsessivo. Em coisa de duas páginas, o sujeito repetia umas seis vezes que “é preciso aumentar impostos”. O curioso foi ler, na mesma semana, uma pesquisa feita pelo UOL mostrando que metade dos juízes brasileiros, isto é, mais de 12 000 magistrados, recebe mais do que os 41 600 reais, que é o vencimento dos ministros do Supremo e teto do funcionalismo. Ou ao menos deveria ser. Achei engraçado. Duas matérias que dão a síntese da falência brasileira. De um lado, o Estado esbanjador, forrado de privilégios, com a maior carga tributária da América Latina, 4,5% do PIB em benefícios fiscais; de outro, nossa intelligentsia clamando por mais impostos. De outro jornalista li que sacar mais do “topo da pirâmide” faria melhorar nossa “distribuição de renda”. Ele parece achar que drenar mais dinheiro dos contribuintes para a máquina estatal produzirá justiça. Que o país tenha o judiciário mais caro, que sejamos o país que mais distribui dinheiro para políticos, com 34 bilhões de reais em emendas parlamentares alocados à moda “dinheiro pelo ventilador”. Ou que nossos parlamentares custem 528 vezes a renda média do brasileiro comum, tudo parece perfeitamente irrelevante. Precisamos adicionar mais 1% ou 2% a nossa carga tributária que já vai a 34% do PIB. Reformar o Estado? Cortar privilégios, aprovar coisas como a “PEC dos Penduricalhos”, que obriga a respeitar o teto constitucional? Besteira. Talvez tenhamos cansado. Trocamos a lógica de fazer perguntas difíceis sobre a racionalidade do gasto público pela lógica fácil do Estado caça-níqueis.

Por que cargas d’água o governo e o Congresso resolveram colocar na conta do contribuinte perto de 4 bilhões de reais, até 2026, em incentivos fiscais para o setor aéreo? Me lembrei disso quando paguei quase 3 000 reais para ir e voltar de Porto Alegre, enquanto lia, no aeroporto, que aquela generosidade toda deve aumentar em 40 ou 50 milhões de reais ao mês o lucro das maiores empresas aéreas. Achei legal, sempre tento celebrar o sucesso alheio. Só me ficou uma pergunta: qual a lógica? O governo já tinha dado meio bilhão de reais à indústria automotiva, vinculado a um descontinho para nossa alegre classe média comprar seu carro zero. Nesse caso, nada. Posso estar enganado, e até sugiro que os leitores deem uma passada no balcão da sua companhia, perguntando se há algum cupom ou promoção, por conta da medida aprovada no Congresso. Pensei em fazer isso, naquele dia, mas achei que o funcionário iria me achar com cara de maluco. E com razão. Vale o mesmo para o mundo do funcionalismo público.

“Vai ter uma nova leva de concursos”, diz a ministra da Gestão, Esther Dweck. “Mais umas 8000a10000 vagas”, afirma ela, que já mandou abrir8 146 vagas neste ano.

“Os ministérios estão vazios”, reclamou Lula, segundo a ministra, lamentando que “alguns deles sequer tem um secretário-executivo adjunto”. Não deixa de ser curioso. O Tesouro atualiza o déficit para 145 bilhões de reais, neste ano, e o governo, nos seis primeiros meses, autoriza mais concursos do que nos cinco anos anteriores. Tudo em um país que já gasta 13,2% do PIB em funcionalismo, acima de países como a Alemanha, e seu welfare state. E que na verdade entrega muito pouco, ocupando a vergonhosa 122ª posição no “índice de efetividade governamental”, do Banco Mundial, atrás de países como Peru e Senegal. Algum sinal de regulamentação da avaliação de desempenho dos servidores, determinada pela Constituição? Zero. Sinal da reforma administrativa, que Arthur Lira diz estar “pronta para votar”? A agenda de reformas foi substituída pela agenda de crescimento da máquina pública, aumento de impostos e concessão de benefícios setoriais. Algo que leva ao “cansaço das velhas fórmulas”, na expressão que escutei. Raspando um pouco a camada de tinta da exasperação política de todos os dias, é este o sentido da época em que vivemos: na epiderme, a “vitória da democracia”; um pouco abaixo, o velho e bom populismo a fogo brando.

Sobre nossa dificuldade com o “espírito de reforma”, me vem à mente as palavras duras de Maquiavel, em O Príncipe. “Nada mais difícil”, ele diz, “do que a instituição de uma nova ordem”. Pois quem o tenta irá receber “a inimizade de todos os beneficiados pela velha ordem, e será defendido apenas timidamente pelos que ganham com a nova ordem”. A sentença sempre me soou como um presságio da condição brasileira. Ainda me lembro de FHC saindo de seu governo politicamente derrotado, e amaldiçoado nos livros didáticos, após a ousadia de um ciclo positivo de reformas, nos anos 1990. No caso brasileiro, Marcos Mendes fez um esforço para entender o porquê de nossa dificuldade com as reformas. Elas seriam mais complicadas em países grandes, menos interessados na abertura externa, com elites numerosas orbitando em torno do Estado, em uma economia fechada como a nossa. Tudo isso em um quadro de dispersão partidária, que dificulta consensos, e numa sociedade marcada pela baixa confiança interpessoal. De minha parte, gosto de pensar no crescimento da máquina estatal e seus privilégios como um processo de retroalimentação. A lógica foi amplamente desenvolvida por Buchanan e os teóricos da Teoria da Escolha Pública, e funciona mais ou menos assim: em algum momento dos anos 1950, alguém tem a ideia de criar a Zona Franca de Manaus. Junto com ela, forma-se imediatamente uma coalizão de grupos de interesse. Empresas com benefícios fiscais, fornecedores, sindicatos e políticos eleitos para sua defesa. Resultado? A Zona Franca imune à reforma tributária e prorrogada até 2073. O Brasil está forrado desses exemplos. De uma estatal ineficiente como a Ceitec, resgatada às vésperas da privatização, até as férias de sessenta dias de nossos magistrados. Uma vez criado o benefício, ele será defendido bravamente pelos que dele se beneficiam. E por aí viramos o país dos compadres. E quando alguém disser que aumentar ainda mais os impostos “reduzirá a desigualdade” ou promoverá a “justiça”, lembre dos exemplos mencionados aqui, que são apenas a ponta de um imenso iceberg.

“É possível mudar este quadro?”, me perguntam. “É claro”, respondo. Em última instância, são “escolhas da sociedade”, como diz meu amigo Samuel Pessoa. No dia a dia da política, são escolhas de quem comanda o jogo, em Brasília. Dos “donos do poder”, na expressão de Raymundo Faoro. Na hora de votar outra exceção, na reforma tributária, ou enfiar numa gaveta a reforma administrativa, quem manda não são os contribuintes ou usuários do SUS, mas as corporações de dentro e fora da máquina estatal. Mas, em última instância, a chancela é da sociedade. Dos cidadãos, nas redes, do mundo da opinião, da sociedade civil e dos eleitores, a cada quatro anos. E por aí estamos dançando. Por quanto tempo? Não faço a menor ideia.


sexta-feira, 12 de maio de 2023

Entre conselhos e controvérsias, Celso Amorim dá as cartas no Itamaraty - Ricardo Ferraz (Veja)

 Entre conselhos e controvérsias, Celso Amorim dá as cartas no Itamaraty


Assessor especial e amigo de Lula é ideólogo da diplomacia 'ativa e altiva'. A polícia externa, no entanto, vem ostentando mais pisadas na bola do que gols

Por Ricardo Ferraz 
Veja, 12 Maio 2023

Depois de encarar uma viagem de avião a Varsóvia, deslocar-se de lá para a fronteira da Ucrânia e percorrer de trem 700 quilômetros até Kiev — idêntico trajeto trilhado, sob segurança máxima, pelo americano Joe Biden e pelo francês Emmanuel Macron, entre outros —, o diplomata Celso Amorim, assessor especial da Presidência da República, foi conduzido, na quarta-feira 10, direto da estação para um encontro com o presidente ucraniano Volodymyr Zelensky, em lugar não revelado. Na bagagem, levava um plano de ação sabidamente incômodo para o anfitrião: decretação de cessar-fogo, seguida de abertura de negociações, de efeito imediato, com as tropas de Vladimir Putin ainda ocupando um naco do território ucraniano. A efetividade da proposta, que vem sendo repetida há meses pelo presidente Lula, é duvidosa, mas a reunião em Kiev deixa claros dois pontos vitais da política externa brasileira: o Brasil quer conquistar o protagonismo perdido no cenário internacional e Amorim é o idealizador deste e de outros movimentos d finidores no Itamaraty, e com pleno aval do presidente.

O encontro não resultou em avanços concretos nem se esperava que o fizesse. “Eu enfatizei que o único plano capaz de deter a agressão russa na Ucrânia é a Fórmula Ucraniana para a Paz”, postou nas redes o presidente Zelensky. “O diálogo foi positivo, de criação de confiança, visando explicar nossos objetivos para a paz”, declarou Amorim. Ou seja: continua tudo como está.

No papel de comandante de fato dos assuntos externos, Amorim busca implementar o que chama de “diplomacia ativa e altiva”, conceito que desenvolveu como ministro das Relações Exteriores nos dois mandatos anteriores de Lula. No caso da guerra na Ucrânia, essa política se traduz em uma posição ambígua: o Brasil condena a invasão promovida pela Rússia, uma agressão deliberada e injustificada, mas insiste em que, como diz Lula, “alguém precisa pensar na paz”. De preferência, ele, Lula. “É complicado dizer onde termina a esperteza e começa a ingenuidade”, alfineta um diplomata com posição de destaque no Itamaraty. Insere-se no clima geral de desconfiança dos reais interesses brasileiros o fato de o governo querer incluir os cinco integrantes dos Brics em um seleto grupo de nações encarregadas de “facilitar” um cessar-fogo, sem levar em conta que três deles — África do Sul, Índia e China — estão entre os 35 países que se abstiveram na votação da resolução da ONU que condenou a guerra (o quarto é a própria Rússia). Em vez de inspirar neutralidade, a iniciativa causa má impressão ns Estados Unidos e União Europeia, aliados relevantes do Brasil.

Na cruzada por protagonismo e liderança no cenário internacional, a política externa brasileira tocada por Amorim ostenta mais pisadas na bola do que gols. No começo do governo, navios militares do Irã, país boicotado por quase todo mundo, tiveram autorização para ancorar no Porto do Rio de Janeiro. O assessor especial de Lula esteve em Moscou há um mês para reuniões com altos funcionários e Putin em pessoa abriu espaço na agenda para recebê-lo. Lula, por sua vez, recepcionou o ministro das Relações Exteriores russo, Sergey Lavrov, no Palácio do Planalto. Em outra ocasião, responsabilizou os países ocidentais que ajudam a Ucrânia militarmente pela continuidade da guerra — uma declaração desastrada, reflexo de conversas ao pé do ouvido com Amorim, que foi considerada “um deslize fora de tom” pelo próprio Itamaraty e rendeu protestos nas escalas seguintes, Portugal e Espanha (Lula, como se sabe, não tira o pé da estrada desde que assumiu a Presidência). Aproveitando a recente estadia em Londres, para a coração de Charles III, o presidente gastou saliva justificando as posições brasileiras junto ao primeiro-ministro Rishi Sunak. Sem sucesso. O premiê britânico não tocou no assunto publicamente.

A visão de que o Brasil não deve “falar fino” com as potências mundiais, partilhada por Lula e Amorim, tem reflexo nas questões regionais. O presidente enviou seu ex-chanceler para reabrir a embaixada brasileira na Venezuela, fechada por Jair Bolsonaro, e Amorim aproveitou para estreitar as relações com Nicolás Maduro, em um encontro revelado pelo ditador em uma postagem nas redes sociais comemorando os “acordos de união e solidariedade” entre os dois países. “A busca por marcar diferenças com o governo anterior tem gerado controvérsias desnecessárias. O Brasil consegue se colocar como ator neutro trabalhando nos bastidores, sem precisar aparecer de maneira excessiva”, critica Leandro Lima, analista da consultoria Control Risks.

Lula e Amorim tiveram dois encontros casuais antes de serem devidamente apresentados, no início do primeiro mandato, em 2003, pelo então assessor da Presidência Marco Aurélio Garcia. Três outros diplomatas foram sondados para assumir o Itamaraty, mas o presidente se decidiu por Amorim por motivos vários, inclusive alguns prosaicos: os dois compartilhavam a inconveniência de caspas no couro cabeludo. E rindo se aproximaram ainda mais. Na ocasião, Amorim era filiado ao PMDB e ex-chanceler do presidente Itamar Franco, mas, 139 viagens depois, tornaram-se amigos próximos. Uma delas foi a missão no Irã, em 2010, quando o Brasil anunciou haver convencido Teerã a produzirenergia nuclear só para fins pacíficos. Pelo feito, Lula chegou a acreditar que ganharia o Nobel da Paz (o que, aliás, teria virado uma obsessão incansável), mas o tal pacto foi desfeito em menos de 24 horas pelos Estados Unidos. A amizade se consolidou de vez quando Amorim, que quase não bebe, se rendeu a uma dose de uísque e, língua destravada, queixou-se de não poder chamar o presidente de Lula, simples assim. Ele prontamente concedeu a intimidade, que só é usada, a bem da verdade, quando estão a sós.

Neste governo, Amorim indicou dois de seus ex-chefes de gabinete para posições centrais do Itamaraty: Mauro Vieira assumiu a pasta e Maria Laura da Rocha é secretária executiva. Indicações internas para embaixadas também passam por sua mesa, onde nomes já aprovados pelo chanceler têm sido riscados. Apesar da concentração de poder em mãos alheias, Vieira garante não sentir desconforto. “Eu e o Celso costumamos rir sempre que tentam criar intrigas entre nós. São especulações recicladas, que aparecem de tempos em tempos, ao longo de quarenta anos de amizade”, diz Vieira. Quando perguntado como quer ser tratado, Amorim recorre, em tom de brincadeira, a uma resposta irônica do ex-secretário de Estado americano Henry Kissinger: “Excelência serve”. Quem o conhece sabe que a piada tem lá seu fundo de verdade.


quarta-feira, 31 de agosto de 2022

A horrível política externa de Bolsonaro: já brigou com meio mundo - José Casado (Veja)

 Bolsonaro já atacou governos de 26% da população do planeta


Em 44 meses no Palácio do Planalto, ele provocou confusão com governantes de 15 países

Por José Casado Atualizado em 31 ago 2022, 07h44 - Publicado em 31 ago 2022, 06h00 

No mundo de Jair Bolsonaro política externa se faz à base de caneladas. Na contabilidade da diplomacia, em 44 meses no Palácio do Planalto ele já atacou governos de 15 países.

A mais recente ofensiva foi contra o governo do Chile, no debate eleitoral do início da semana. Em protesto, Gabriel Boric, presidente chileno, retirou seu embaixador de Brasília.

Diplomatas brasileiros listaram por região alguns episódios de agressões, quase todas gratuitas: na América do Sul, foram Chile, Argentina, Uruguai, Colômbia, Bolívia e Venezuela; na América do Norte, os Estados Unidos sob Joe Biden; na Europa, Espanha, Portugal, França, Reino Unido, Noruega, Holanda e Alemanha; e, na Ásia, China.

Nessa conta não entrou o Vaticano. Foi esquecimento, dizem no Itamaraty. Em 2019, Bolsonaro criticou a hierarquia da Igreja Católica e o governo tentou infiltrar espiões no Sínodo da Amazônia, que mobilizou o clero de nove países da região.

Os países listados somam 2,1 bilhões de habitantes. Significa que nos atritos provocados por Bolsonaro já envolveram governos de 26% da população do planeta. Um recorde na história da diplomacia verde-amarela.

https://veja.abril.com.br/coluna/jose-casado/bolsonaro-ja-criou-confusao-com-governos-de-26-da-populacao-do-planeta/

quinta-feira, 11 de novembro de 2021

Eleições 2022 (11/11/2021): Thomas Traumann: Moro arrasa com candidaturas tucanas (Veja)

Dou início, com esta postagem, a uma série de matérias exclusivamente dedicadas às eleições presidenciais, e gerais, de 2022, com a qual pretendo fazer um seguimento estreito da mais importante decisão a ser tomada pelos eleitores brasileiros em muitos anos, talvez a mais relevante de nossa história, pois o próximo presidente terá de reconstruir o Brasil, depois do furacão dos novos bárbaros.

Sempre colocarei o indicativo "Eleições 2022" e nessa rubrica caberão tanto matérias de terceiros, quanto análises minhas sobre o cenário político e econômico do processo eleitoral.

Concordo com Thomas Traumann: Moro pode liquidar (em todos os sentidos da palavra) com quaisquer outras candidaturas dessa confusa 3a via, e pode facilitar a vitória de Lula.

Paulo Roberto de Almeida

 . Thomas Traumann  Jornalista e consultor de comunicação, é autor de "O Pior Emprego do Mundo", sobre o trabalho dos ministros da Fazenda. Escreve sobre política e economia

Doria e Moro: articulação do ex-ministro para a eleição em 2022 descarta Senado até segunda ordem

Moro arrasa com candidaturas tucanas

  • Pesquisa mostra que com ex-juiz na disputa, Lula vence no primeiro turno
Pesquisa Genial/Quaest divulgada nesta quarta-feira, 10, mostra que a candidatura a presidente do ex-juiz da Lava Jato e ex-ministro do governo Bolsonaro, Sergio Moro, arrasa com as chances do PSDB e de outros pré-candidatos da chamada terceira via, tira votos do presidente Jair Bolsonaro e, indiretamente, amplia o favoritismo do ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva.

Nos dois cenários pesquisados, a entrada de Moro reduziu os pré-candidatos tucanos João Doria a 2% e o Eduardo Leite a 1%, e o senador Rodrigo Pacheco (PSD) a 1%. Moro se filiou hoje ao partido Podemos para disputar a Presidência. As duas simulações mostram Lula na frente a ponto de vencer no primeiro turno, entre 47% e 48% dos votos votais (o que daria 54% dos votos válidos). O presidente Jair Bolsonaro vem em segundo, com 21%; depois Moro com 8% e o ex-ministro Ciro Gomes com 6% ou 7% dependendo do cenário.

Todas as pesquisas presidenciais até agora mostram que existe espaço para três ou no máximo quatro candidatos viáveis: Lula e Bolsonaro já asseguraram seu lugar. Ciro Gomes tem um público fiel. O último candidato deve vir da centro-direita e Moro largou na frente.

Ironicamente, a chegada de Moro amplia a vantagem de Lula no primeiro turno por ele tirar votos de Bolsonaro e impede a viabilização de um candidato tucano. O ex-ministro da Justiça toma votos do presidente nos principais redutos do bolsonarismo: os mais ricos (entre os que ganham acima de cinco salários mínimos, ele alcança 11% das intenções de voto contra 32% de Bolsonaro e 34% de Lula) e na região Sul (Moro tem 12%, Bolsonaro 22% e Lula 45%). Em compensação, Moro é mais fraco onde Lula é mais forte, o Nordeste (ele cai a 4% ante 60% do ex-presidente) e os que ganham menos de dois salários mínimos (Moro tem 5% e Lula 61%).

Mas não será uma operação simples. Depois de Bolsonaro, Moro é o candidato mais rejeitado na pesquisa da Quaest: 61% dos eleitores dizem que o conhecem e não votariam nele, fruto do seu desgaste com as irregularidades na Operação Lava Jato e do rompimento com o bolsonarismo.

Além disso, Moro é um candidato de uma nota só, o combate à corrupção, tema que deixou o topo das preocupações dos brasileiros. Em agosto, 32% dos brasileiros diziam que a economia era o maior problema do país; agora, são 48%. 73% dos entrevistados acham que no último ano a economia piorou. Perguntados qual seria o principal problema econômico do Brasil, 23% respondem crescimento; 14% desemprego; 11% inflação e 10% miséria. Enquanto não tiver o que dizer a esses eleitores, Moro seguirá tendo um teto para crescer. 

sexta-feira, 24 de setembro de 2021

O discurso que deveria ter sido e não foi: subsídios do Itamaraty para o discurso na AGNU, expurgados na PR - Matheus Leitão (Veja)

 O discurso que o Itamaraty vazou e Bolsonaro não fez

Circula entre empresários brasileiros a versão moderada do discurso que o presidente faria. Para que tentar melhorar a imagem? Chanceler fez “arminha” 
Por Matheus Leitão | 23 set 2021, 10h54

Após o discurso pária do presidente Jair Bolsonaro nas Organizações das Nações Unidas, o Itamaraty resolveu tentar melhorar a sua imagem, como numa contenção de danos, vazando trechos do que seria a ideia original do discurso do chefe da nação brasileira na ONU.

Segundo a coluna apurou, o Ministério das Relações Exteriores fez circular esses trechos até entre empresários. Essa versão do discurso não lido, pode ser uma espécie de Porcina, porque ele também foi sem nunca ter sido.

Geralmente é assim. Em um evento como o da ONU, a Presidência recebe do Ministério das Relações Exteriores propostas iniciais e normalmente a assessoria direta do presidente altera certas palavras, acrescenta algum ponto. Às vezes muda para pior. Neste caso específico, não só piorou muito como adicionou mentiras, como quando disse que no último 7 de setembro os brasileiros fizeram a maior manifestação da história do país.

Um ponto que o ministro Carlos França queria passar era o ambiental e climático, já que haverá a reunião do Clima em Glasgow em dezembro. Mas o trecho foi muito distorcido.

Esta coluna escreveu sobre isso em reportagem com o título “Na batalha da ONU, Bolsonaro massacrou o Itamaraty”, mostrando até trechos que seriam do Ministério das Relações Exteriores e os que seriam de Bolsonaro.

A ideia agora de vazar “o discurso que não foi” faz parte de uma tentativa de mostrar que o Itamaraty seria uma força moderadora no governo Bolsonaro.

O único problema é que esse movimento da pasta é em vão, já que o atual ministro das Relações Exteriores, Carlos França, conseguiu destruí-lo em um só gesto, ao fazer o sinal de arminha a manifestantes brasileiros contrários ao governo em Nova York.

Qualquer outro ministro poderia fazer o gesto ridículo, tão repetido pelo presidente Jair Bolsonaro há anos, já que a democracia brasileira escolheu eleger um governo armamentista. Mas, Carlos França não.

Desde cedo aprende-se no Itamaraty que os diplomatas defendem os interesses do Estado e não de um específico governo. Isso tem que ser a máxima de qualquer diplomata. É o primeiro ensinamento da diplomacia.

Quando ele faz a arma, França aderiu ao bolsonarismo. Defendeu o bolsonarismo. E não os interesses do estado brasileiro.

Na verdade, a tentativa de melhorar a imagem do Ministério das Relações Exteriores, vazando o discurso porcina, não resolve o problema, senhor chanceler.

Recolha as armas, ou as arminhas, porque o senhor fez um gesto que demonstra o que escolheu: representar um grupo político e não país como um todo.

https://veja.abril.com.br/blog/matheus-leitao/o-discurso-que-o-itamaraty-vazou-e-bolsonaro-nao-fez/

domingo, 11 de julho de 2021

Para 70% dos brasileiros, há corrupção no governo Bolsonaro - Veja

 Datafolha: Para 70% dos brasileiros, há corrupção no governo Bolsonaro

Para 70% dos brasileiros, há corrupção no governo de Jair Bolsonaro. O percentual é de pesquisa Datafolha divulgada neste domingo, 11, que mostra que 63% acham que há corrupção também no Ministério da Saúde e que outros 64% acreditam que Bolsonaro sabia da existência dessa prática. Os resultados surgem após uma série de outras pesquisas mostrarem que o presidente passa por seu pior momento desde o início do mandato. O levantamento foi feito entre os dias 7 e 8 de julho e foram ouvidas 2.074 pessoas com mais de 16 anos. A margem de erro da pesquisa é de dois pontos percentuais para mais ou menos.

Segundo o Datafolha, entre os que reprovam o governo, 92% acham que há corrupção na gestão Bolsonaro. Na sequência, os maiores percentuais registrados nos grupos estratificados foram entre moradores do Nordeste, jovens (ambos com 78%) e mulheres (74%). O resultado mais favorável ao presidente está entre os empresários, grupo no qual 50% acham que há malfeitos no governo.

Os que acham que não há corrupção no governo federal correspondem a 23% dos entrevistados na pesquisa. Nesse grupo, essa crença é maior entre moradores das regiões Norte e Centro Oeste (31%), evangélicos (30%), pessoais com mais de 60 anos (29%) e homens (28%). Entre os que aprovam o governo, o percentual de quem acha que não há corrupção é de 60% — no caso dos que confiam na palavra de Bolsonaro, o percentual é de 74%.

O Datafolha também perguntou aos entrevistados qual a percepção que eles tinham em relação à prática de corrupção no Ministério da Saúde. A resposta foi afirmativa para 63% deles, enquanto 25% disseram que não e 12% não souberam responder. As suspeitas da existência de corrupção são maiores entre quem tem curso superior (68%) e, de acordo com as respostas, 64% dos entrevistados acreditam que Bolsonaro sabia dos problemas — 25% não acreditam nisso e 11% não opinaram.

Os maiores percentuais que registrados para o conhecimento presidencial estão entre os jovens de 16 a 24 anos (72%) e os nordestinos (71%), enquanto os menores estão entre os que têm remuneração de 5 a 10 salários mínimos (36%) e os empresários (44%).

Os resultados mostram a percepção da população em relação a suspeitas de cobranças de propinas na compra de vacinas pelo Ministério da Saúde e sobre as acusações de que o presidente teria sido avisado, mas não teria tomado nenhuma providência. Os casos vieram à tona no âmbito das investigações da CPI da Pandemia.


terça-feira, 4 de maio de 2021

As novas faces do ateismo, livro de John Gray - resenha de Marcelo Marthe (Veja)

 Filósofo inglês John N. Gray examina as facetas do ateísmo em novo livro

É famosa a frase atribuída ao inglês G. K. Chesterton segundo a qual “quando um homem deixa de acreditar em Deus, ele não passa a acreditar em nada – passa a acreditar em qualquer coisa”. Em certo sentido, o mais recente livro do filósofo John N. Gray, Sete Tipos de Ateísmo (Record), é um registro interessante das coisas em que os seres humanos são capazes de acreditar no lugar da religião e de Deus. Como afirma Gray, o livro não tem o propósito de converter ninguém ao ateísmo – muito menos, de conduzir quem quer que seja a alguma fé. Trata-se, isso sim, de mais um elegante e prazeroso ensaio do autor de Cachorros de Palha(2002) e Missa Negra (2007), livros com os quais o erudito professor de Filosofia Política na Universidade de Oxford e, posteriormente, na London School of Economics tornou-se um best seller mundial, alcançando um tremendo público que seus excelentes trabalhos acadêmicos nunca teriam sido capazes de alcançar.

O livro “Sete tipos de ateísmo”, de Gray, John, publicado pela Editora Record

É nesse espírito de diálogo com o grande público que Sete Tipos de Ateísmo chega ao leitor brasileiro. Com agilidade e clareza jornalísticas, Gray apresenta os ateísmos que pretende analisar: o “novo ateísmo” militante de nomes como Richard Dawkins e Sam Harris; o “humanismo secular”; o ateísmo que transforma a ciência em religião; as religiões políticas modernas (do jacobonismo ao nazismo e comunismo); o ateísmo dos que odeiam Deus (exemplificado pelo Marquês de Sade, entre outros); o ateísmo de Joseph Conrad, que rejeita a ideia de um Deus criador; e, por fim, o ateísmo místico do pensador alemão Arthur Schopenhauer.

Ao se lançar à escrita para o grande público, saindo dos círculos mais estritos da academia, Gray levou consigo algumas importantes marcas do trabalho como filósofo político que tinha realizado durante mais de 20 anos nas prestigiadas universidades inglesas. Discípulo do grande pensador Isaiah Berlin (a respeito de quem escreveu uma excelente biografia), interlocutor muito próximo de Michael Oakeshott (de cuja obra é grande conhecedor), o autor de O Silêncio dos Animais estudou meticulosamente a política da Europa moderna, isto é, dos últimos 400 anos – em suma, a política que nos legou as democracias liberais, constitucionais e representativas, mas também as grandes ideologias totalitárias do nazi-fascismo, à direita, e do comunismo, à esquerda. E se há um elemento que Gray soube identificar na política moderna é seu caráter de sucedânea da fé em Deus e das religiões reveladas instituídas, centrais na vida espiritual, mas também na vida pública, política, da Europa até poucos séculos atrás – tema presente em inúmeros de seus livros e ensaios para a imprensa, sobretudo em Missa Negra. Sai Deus, entra o “progresso humano”.

Não por acaso, o melhor do livro Sete tipos de Ateísmo está justamente no capítulo 4, aquele em que Gray se dedica a analisar o quarto tipo de ateísmo de sua lista de sete: “As religiões políticas modernas, do jacobinismo ao liberalismo evangélico contemporâneo, passando pelo comunismo e pelo nazismo”. Reconhecendo o perfil de fanatismo crédulo e inclinado à violência em nome da doutrina que todas essas variedades de movimentos políticos compartilham, Gray vê na raiz desse modo de compreensão da política o milenarismo:

“Os movimentos revolucionários modernos são continuações do milenarismo medieval. O mito de que o mundo humano pode ser refeito em uma reviravolta cataclísmica não morreu. Mudou apenas o autor desse fim dos tempos transformador do mundo. Nos velhos tempos, era Deus. Hoje, é a humanidade”.

Da “Ordem de Enforcamento” de Lenin, de agosto de 1918, em que o revolucionário russo instruía os bolcheviques a executar por enforcamento os camponeses que resistissem à política de confisco de grãos, “para que a população possa ver e temer”, à delirante convicção do artista Kazemir Malevich, para quem “a morte de Lenin não é morte, ele está vivo e é eterno”, é difícil não reconhecer as similaridades com a religião na estrutura de pensamento e nas práticas políticas historicamente comprovadas. Entretanto, pouco do que vem nesta análise é novo, e o leitor dos livros anteriores de Gray sairá com a sensação do déjà-lu.

Entre os sete tipos de ateísmos analisados por John Gray, o que há de mais recente é também o mais banal, esquemático e superficial. Sua análise do “Novo Ateísmo” de Dawkins e Harris, por exemplo, é provocadora e suficientemente convincente ao menos para relativizar o alcance da argumentação dos novos ateus. Um exemplo: ateu ou não, o leitor certamente deverá pensar duas vezes ao deparar com as afirmações de Sam Harris, que deseja “uma ciência do bem e do mal”, uma “ética científica”. Como afirma Gray, “não é por acaso que nem ele [Sam Harris] nem qualquer dos novos ateus promovem a tolerância como valor fundamental. Se a ética pode ser uma ciência, não há necessidade de tolerância”. Gray despacha esses ateus sem voltar a eles ao longo do livro.

Algumas modalidades de ateísmo, é claro, saem-se melhor na foto tirada por John N. Gray – ele próprio um cético bastante distante de qualquer variedade de fé religiosa. Por diversas vezes o ateísmo de certas escolas filosóficas da antiguidade helenística é mencionado como exemplar em sua moderação. No geral, contudo, vale a máxima chestertoniana: como espécie, parecemos inclinados a acreditar em qualquer coisa quando deixamos de aceitar um sistema de crenças espirituais altamente ordenado como o são as religiões tradicionais.

Os exemplos divertem, mas também chocam. Entre os adeptos do Humanismo Secular, o segundo tipo de ateísmo examinado por Gray, temos Karl Marx. Esse humanismo secular deveria ter substituído os males pregressos da humanidade, entre os quais se encontrava a religião – a grande opressora! –, e conduzido o gênero humano à salvação pela História. Os males humanos, contudo, seguiram os mesmos, ou até piorados, com esses seculares salvadores da espécie como Marx, que em seu profundo “humanismo” é capaz de escrever esse trecho torpe sobre Ferdinand Lassalle, dirigente socialista judeu alemão:

“Agora está perfeitamente claro para mim, como provam a forma da sua cabeça e o crescimento do seu cabelo, que ele [Lassalle] descende de negros que se juntaram à marcha de Moisés na saída do Egito (se é que sua mãe ou sua avó não se acasalaram com um crioulo). E esta combinação de judaísmo e germanismo com uma substância básica negroide deve gerar um produto peculiar. A agressividade do sujeito também é característica de crioulos.”

Como se vê, não é só o messianismo inerente ao marxismo que envelheceu mal. E na artilharia de Gray, não há seita que escape. Veja-se, por exemplo, o que diz sobre a curiosa figura de Ayn Rand, emigrada russa, escritora e líder de uma seita que prosperou nos Estados Unidos, contando com adeptos até hoje (e mesmo no Brasil):

“O culto de Rand se destinava a governar cada aspecto da vida. Como grande fumante que era, seus seguidores eram instruídos a fumar também. (…) Não foi à toa que os ultraindividualistas que se tornaram discípulos de Rand passaram a ser conhecidos no movimento como ‘o Coletivo’. A escolha dos parceiros de casamento também era controlada. Na sua visão das coisas, seres humanos racionais não devem se associar aos que são irracionais. Não poderia haver pior exemplo disso do que duas pessoas unidas em casamento simplesmente pela emoção, e assim os oficiantes do culto tinham poderes para aproximar discípulos de Rand apenas de outros que também abraçassem a fé. Da cerimônia de casamento constava um juramento de devoção a Rand, seguido da abertura de ‘A Revolta de Atlas’ em uma página aleatória para leitura de um trecho do texto sagrado.”

Os exemplos bem o demonstram: a humanidade é capaz de acreditar em qualquer coisa. Felizmente, algumas dessas coisas são apenas aberrações patéticas, como é o caso da seita de Rand. Outras seitas já foram capazes de exterminar dezenas de milhões, como o nazismo e o comunismo.

Espantoso, mesmo, é que todas essas seitas sigam com ativos seguidores em toda parte ainda hoje.


quarta-feira, 25 de novembro de 2020

Bolsonaro e a diplomacia da estupidez - Thomas Traumann (Veja)

 Bolsonaro e a diplomacia da estupidez

O Brasil briga com a China, com a União Europeia, com a Argentina e vai sentir o calor do novo governo Biden 

Thomas Traumann

Veja, 25/11/2020

https://veja.abril.com.br/blog/thomas-traumann/bolsonaro-e-a-diplomacia-da-estupidez/


Meu pai me contava que bastava uma lata de tinta para reconhecer um schmuck (idiota em ídiche). “Peça que ele pinte o chão de um quarto. O schmuck vai começar pela porta e, ao final, ficará preso em um canto cercado de tinta fresca por todos os lados”, dizia. A política externa brasileira é igualzinha ao estúpido da anedota. 

O governo da China parabenizou hoje o presidente eleito dos Estados Unidos, Joe Biden, pela vitória, transformando o Brasil no único país que ainda acha que Donald Trump venceu a eleição de novembro. Não que isso tenha mais importância. Nesta semana, Biden indicou que o ex-veterano da guerra do Vietnã, ex-senador e ex-secretário de Estado John Kerry como seu czar do Meio Ambiente.  A função de Kerry será recolocar os Estados Unidos como signatário do Acordo Climático de Paris e incomodar os países que estão descumprindo a agenda mínima de proteção ambiental.  Ganha uma motosserra novinha quem adivinhar qual o primeiro país da lista de Kerry. 

Mas os Estados Unidos não são o único país do mundo. Tem a China. Na segunda-feira, o filho do presidente e deputado federal Eduardo Bolsonaro postou um tuíte propagando que a China pretende usar a tecnologia 5G para espionar outros países. “Isso ocorre com repúdio a entidades classificadas como agressivas e inimigas da liberdade, a exemplo do Partido Comunista da China”, escreveu. A resposta da Embaixada China foi ameaçadora. “Instamos essas personalidades a deixar de seguir a retórica da extrema direita norte-americana, cessar as desinformações e calúnias sobre a China e a amizade sino-brasileira e evitar ir longe demais no caminho equivocado tendo em vista os interesses de ambos os povos e a tendência geral da parceria bilateral. Caso contrário, vão arcar com as consequências negativas e carregar a responsabilidade histórica de perturbar a normalidade da parceria China-Brasil”, afirmou a embaixada. A China responde hoje por um terço das exportações brasileiras, sendo a maior compradora de ferro, soja e fundamental para o agro. 

Com a União Europeia, a relação é ainda pior. Jair Bolsonaro e Paulo Guedes já ofenderam a mulher do presidente da França, atacaram a Noruega e a Alemanha. A retórica de botequim da família Bolsonaro, Guedes e o ministro das Relações Exteriores, Ernesto Araújo, paralisou as conversas sobre o acordo comercial Mercosul-União Europeia, resultado de anos de tratativas dos diplomatas dos governos Lula, Dilma e Temer. 

Nem com os vizinhos a diplomacia da estupidez consegue conviver. Bolsonaro rompeu com a Argentina desde a eleição de Alberto Fernández, apoiou o golpe na Bolívia, atacou a ex-presidente do Chile e rompeu as pontes que faziam do Brasil um negociador para uma saída institucional para a Venezuela. O Brasil, que desde a volta da democracia era um ator relevante no cenário global, virou um pária. 

Em tese, o shmuck da anedota pode sair do quarto quando a tinta secar. Em tese ainda, na próxima vez ele pode começar a pintar pelos cantos e deixar a saída para o fim. Só em tese. É mais fácil Bolsonaro aumentar os ataques à China e piorar as relações com o mundo. Shmucks não aprendem. 


domingo, 8 de novembro de 2020

O que o agronegócio deve esperar de Joe Biden? - Marcos Jank (Veja)

 Amigos,

É com grande satisfação que informo sobre o lançamento da coluna AGRO GLOBAL no site de VEJA, que trará análises exclusivas sobre agronegócio, comércio e sustentabilidade realizadas pela equipe do centro Insper Agro Global e convidados, sob a nossa coordenação. Segue abaixo o primeiro artigo da coluna.

Abraço,

Marcos

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O que o agronegócio deve esperar de Joe Biden?

Coluna AGRO GLOBAL no site de VEJA, 07/11/2020. 

Marcos Sawaya Jank*

Impacto do governo Biden no comércio agrícola, China, Amazônia e políticas climáticas. 

Joe Biden venceu as eleições dos EUA e esse é o tema do 1º artigo da nova coluna AGRO GLOBAL do site de VEJA. Vamos analisar o impacto do novo governo sobre agronegócio, comércio, clima e Amazônia, mostrando porque Biden é a melhor escolha para o agro brasileiro.

 

A primeira grande mudança da gestão Biden nas relações internacionais será o resgate da liderança que os Estados Unidos sempre exerceram na coordenação multilateral do mundo, que se inicia já na independência dos EUA com a ação diplomática de Benjamin Franklin e os demais Founding Fathers contra o colonialismo europeu.

 

Para entender o papel histórico dos EUA no mundo, vale ler um livro magnífico que acaba de ser lançado: America in the World: A History of U.S. Diplomacy and Foreign Policy, de Robert Zoellick, que foi representante de comércio dos EUA (USTR) de 2001 a 2005 e depois Presidente do Banco Mundial. O livro analisa o papel que Franklin, Hamilton, Jefferson, Adams, Lincoln, os Roosevelts, Woodrow Wilson, Cordell Hull, Kennedy, Reagan, Bush e outros “líderes pragmáticos” tiveram na construção da diplomacia e da política externa dos EUA. A obra merece ser lida nesse momento crucial e conflitivo da democracia americana.

 

No final da 2ª guerra, o mundo pedia maior coordenação multilateral em temas como garantia da paz, comércio, finanças, desenvolvimento e outros. Os Estados Unidos assumiram posição central na criação de diversas organizações internacionais para promover paz, direitos humanos e solução de conflitos (ONU), finanças e desenvolvimento (FMI e Banco Mundial), comércio (o acordo do GATT, que depois virou a OMC - Organização Mundial de Comércio), saúde pública (OMS - Organização Mundial de Saúde) e muitas outras.

 

O momento turbulento e polarizado que vivemos hoje exige o aprimoramento da capacidade de coordenação dos países em novos temas como meio ambiente, mudança do clima, segurança biológica (contenção de pandemias), saúde pública, segurança cibernética, migração, anticorrupção, transparência e outros.

 

Com o America First, Trump deu as costas para o mundo e abandonou o papel histórico de concertação dos EUA. Em comércio, para agradar o seu público interno Trump propôs medidas enérgicas para “zerar” os principais déficits comerciais que os EUA mantinham no mundo, iniciando negociações país a país como se o comércio fosse um jogo de soma zero, que não é.

 

Pouco a pouco, Trump retirou os EUA da Parceria Transpacífico (TPP), um extraordinário acordo comercial ligando 12 países americanos e asiáticos do Pacífico. A seguir, repaginou o NAFTA à sua maneira, enfraqueceu a OMC ao se recusar a nomear juízes para o órgão de solução de controvérsias e retirou os EUA da Convenção do Clima. Trump se voltou para dentro do país, confrontando não apenas os novos inimigos do Oriente, como a China, mas também os seus vizinhos e aliados mais tradicionais do Ocidente. Na minha opinião, não deu certo.

 

Não há dúvida que Joe Biden vai seguir priorizando os interesses domésticos americanos acima de tudo, começando pela recuperação econômica do país. Mas, ao contrário de Trump, ele construirá a sua política externa a partir das medidas internas que serão adotadas, reduzindo o tensionamento e aumentando a concertação internacional.

 

É neste contexto que enxergo a possibilidade de novas formas de diálogo entre os EUA e a China. Com certeza a rivalidade EUA-China veio para ficar e não vai terminar com a eleição de Biden, até porque a China continuará crescendo rápido e ameaçando a hegemonia americana. Ao final de 2021, a economia chinesa estará 10% maior do que logo antes da pandemia. Os EUA estarão menores.

 

No agronegócio, não há dúvida que o Brasil se beneficiou da guerra comercial EUA-China, que começou logo após as eleições de Trump em 2017, e pode ser prejudicado por um acordo tácito entre as duas maiores potências do planeta. Mas comemorar guerras e disputas hegemônicas nunca foi uma boa ideia para quem só atua em campos laterais. Prefiro acreditar que a construção de regras multilaterais que valem para todos continua sendo a melhor opção do planeta. Podemos perfeitamente incrementar nossas parcerias estratégicas com os EUA e com a China, rejeitando a política de “comércio administrado” proposta por Trump que, espero, não será seguida por Biden.

 

Dentre as políticas de Biden, a que mais deve impactar o Brasil é uma nova postura dos EUA em relação ao tema da mudança do clima, radicalmente diferente da linha seguida por Trump. Meio ambiente, mudança do clima, promoção de fontes renováveis de energia e taxação de carbono estarão no centro da agenda de Biden. Os EUA vão retornar ao Acordo de Paris, colocando o tema da mudança do clima no centro da sua política externa, comercial e de segurança nacional, o que certamente incluirá uma forte pressão para reduzir o desmatamento no Brasil.

 

Muitos dirão que essa é uma agenda negativa para o Brasil. Eu prefiro acreditar que, na toada das pressões comerciais que o agro já vem sofrendo na região Norte, a eleição de Biden apenas reforça a necessidade de completarmos a “lição de casa” que estamos devendo para o mundo há décadas.

 

Estima-se que 95% do desmatamento brasileiro seja ilegal e, portanto, associado ao descumprimento da legislação brasileira. É nossa obrigação resolver esse problema, que começa com a necessidade de regularização fundiária das regiões norte e nordeste do país, que já dura décadas. Segue-se o problema da regularização ambiental, que ainda não foi efetivada, a despeito de o Código Florestal já ter completado o seu 8º ano de vida.

 

A verdade é que a agricultura brasileira é ao mesmo tempo vilã, vítima e solução no tema da mudança do clima. “Vilã” por estar associada ao desmatamento ilegal, que já atinge mais de 10 mil km2 por ano no Brasil. “Vítima” porque a agricultura vem sofrendo com eventos extremos e grandes instabilidades climáticas, como vimos esse ano no país. “Solução” porque acumulamos grandes ganhos de produtividade e dispomos de uma matriz energética limpa e diversificada - composta por diversos tipos de biocombustíveis e energias renováveis - fazemos 2 a 3 safras por ano e muitas outras conquistas qualificam a nossa agricultura como de “baixo carbono”.

 

A pecuária de corte será o setor mais pressionado pela eleição de Biden, pelo fato de que a cria de bezerros é a primeira ocupação agropecuária em áreas recém desmatadas do bioma Amazônico. Mas os biocombustíveis brasileiros, como o etanol de cana-de-açúcar e o biodiesel de oleaginosas, podem ganhar bastante espaço na agenda internacional com a adesão dos EUA ao Acordo de Paris e a renovada pressão pela substituição de energias fósseis por energias renováveis, tema amplamente vocalizado por Biden durante a campanha. Vale lembrar que 73% das emissões de gases de efeito estufa responsáveis pela mudança do clima vem do setor de energia e transportes, e menos de 7% de desmatamentos e mudanças no uso da terra.

 

Em suma, creio que a eleição de Biden levará o governo brasileiro a abrir novos canais de interlocução com o governo americano. Deveria, também, buscar uma equidistância mais prudente da sua política comercial com os EUA e com a China, fortalecendo as nossas duas maiores parcerias estratégias. Apesar de os EUA serem os nossos principais concorrentes no agronegócio global, há muito espaço para ampliar a cooperação com aquele país em temas como segurança alimentar global, inovação, bioenergia e no reforço da coordenação multilateral.

 

Creio que a principal lição que deveríamos aprender com o retorno dos Democratas ao poder nos EUA é parar de insistir em ver o mundo como “cruzadas maniqueístas”, de uma luta permanente do bem contra o mal entre supostos poderes opostos e incompatíveis. Em vez de louvar amigos e atacar inimigos imaginários, melhor faríamos em identificar claramente os nossos interesses externos e desafios imediatos. Se fizermos isso, veremos que o nosso maior desafio é simplesmente fazer direito a “lição de casa”. Isso vale para as reformas internas prometidas, e ainda não realizadas. Vale também para os problemas ambientais e fundiários do bioma Amazônia, que agora terão de ser resolvidos, para o bem ou para o mal.

 

(*) Marcos Sawaya Jank é professor de agronegócio global do Insper.