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quarta-feira, 10 de setembro de 2014

San Tiago Dantas: um brasileiro incomum - Pedro Dutra (biografia)

Em setembro de 1964 faleceu precocemente um dos mais importantes intelectuais do Brasil contemporâneo - o professor San Tiago Dantas. Pergunte a qualquer estudante universitário brasileiro hoje quem foi San Tiago Dantas e talvez dois ou três saberão dizer quem foi este homem extraordinário. Talvez só tenha tido um par na história intelectual recente do Brasil - o economista Celso Furtado ( Celso e San Tiago foram os autores do Plano Trienal, tentativa frustrada de salvar o Governo Jango já em sua fase pré-agônica). Como se sabe, o Plano Trienal frustrou-se graças à incompreensão de jovens como José Serra e Betinho - então líderes da AP (Ação Popular) no comando da UNE, conjugada com lideranças sindicais e políticas fora de sintonia com a realidade - Brizola, Arraes e tantos outros. San Tiago chamou-os de "esquerda negativa", em contraposição à "esquerda positiva" de Celso Furtado e do próprio San Tiago.
Este é o primeiro volume da biografia preparada por Pedro Dutra (o segundo volume deve sair posteriormente).
Há anos ouço falar do trabalho de preparação desta biografia do grande brasileiro. O primeiro de quem ouvi falar sobre esta obra foi o meu amigo Hélio Jaguaribe, hoje na Academia Brasileira de Letras, grande amigo e admirador do San Tiago, que também aguardava ansiosamente que este trabalho fosse concluído. Do Hélio escutei o relato de um episódio que retrata magnificamente a biografia do chanceler que idealizou e pós em execução a Política Externa Independente. Certa vez o professor San Tiago foi homenageado pela Universidade de Cracóvia, na Polonia, com o título de Doutor Honoris Causa. Na cerimônia de recebimento do título, era e é usual um discurso do homenageado. Ao chegar para a cerimônia - e minutos antes que ela começasse- San Tiago foi comunicado (para sua total surpresa) que a tradição era de que o homenageado teria obrigatoriamente que ler a sua oração. Esta era a regra inflexível. San Tiago pediu alguns minutos e trancou-se na Sala da Congregação. Ao sair, tinha um molho de papéis em mãos (supostamente o texto que leria). Passando uma a uma as folhas do maço de papéis, o professor San Tiago deu prosseguimento à cerimônia, proferindo uma das mais brilhantes conferencias de toda a secular tradição da Universidade de Cracóvia. Ao final, foi aplaudido de pé. E prometeu que enviaria posteriormente o texto corrigido da sua Aula Magna.
Por suposto, os papéis que manuseara durante a Aula Magna estavam em branco, eis que o ilustre professor havia pronunciado de improviso a sua conferencia, apenas fingindo que estava lendo um texto anteriormente preparado. Que figura intelectual extraordinária !
Em um país em que temos que conviver com Paulo Coelhos, Guido Mantegas e Dilma Roussefs, que esperança no futuro me dá que nos anos 50/60, em um Brasil pré-industrializado, pudesse ter brotado do nosso solo universitário inteligência tão singular quanto a de San Tiago Dantas...

Mauricio David

 SAN TIAGO DANTAS - a razão vencida
Autor :Pedro Dutra
Páginas: 768
Editora Singular
ISBN: 978-85-86626-71-5
Ano: 2014

APRESENTAÇÃO
O homem, que muitos dizem ser o mais inteligente do Brasil, tem pressa.
Assim uma reportagem na revista O Cruzeiro, a maior do País, se referia a San Tiago Dantas em 1960. Mas quem foi, ou melhor, quem é San Tiago Dantas?
Brilhante e precoce, sem dúvida. Líder estudantil aos dezessete anos, aos vinte editor de jornal e teórico fascista, um ano depois professor de Direito, a seguir prócer integralista e crítico do nazismo; catedrático aos vinte e cinco, fundador de duas faculdades e titular de três cátedras antes dos trinta anos e ainda diretor da Faculdade de Filosofia, no Rio de Janeiro. Um ano depois, em 1942, repudia publicamente o Integralismo, defende a declaração de guerra ao Eixo, propõe a união nacional das forças políticas, reunindo os comunistas inclusive, para afirmação de um regime democrático, e em 1945 elabora parecer firmado por seus colegas professores que nega fundamento jurídico à proposta continuísta do ditador Getúlio Vargas. E, explicitamente, defende substituir a propriedade privada pelo trabalho como núcleo de uma ampla reforma social.
A acusação de oportunista não demorou a lhe ser lançada, e será renovada e ampliada dez anos depois. Então, o alvo será o jovem jurisconsulto procurado por grandes empresas nacionais e estrangeiras convertido em banqueiro, que se alia aos trabalhadores ao ingressar no partido que Getúlio criara para abrigá-los; e, no início da década de 1960, ministro do Exterior, recusa-se a sancionar o novo regime cubano e reata relações diplomáticas com a União Soviética. No começo de 1964, depois de no ano anterior tentar controlar, sem êxito, a espiral inflacionária à frente do Ministério da Fazenda, já mortalmente doente, e agônica a República de 1946, tenta sensibilizar as forças partidárias e articulá-las em uma frente ampla de apoio às reformas democráticas para resgatá-las da polarização que já engolfara a política nacional. Em vão: a direita o vê como um trânsfuga, os conservadores como um ingênuo, e a esquerda desacredita os seus propósitos.
E quase todos o veem como o manipulador, senão o malversador de seus dotes intelectuais, que, diziam seus críticos, derramavam uma luz fria, que iluminava mas não aquecia, e justificavam todas as capitulações necessárias a satisfazer a sua premente ambição política. Entre essas capitulações, servir o seu talento à causa populista de líderes sindicais cevados nos cofres públicos e a um vice-presidente, depois presidente da República, cuja inépcia e tolerância com a agitação promovida pelo seu próprio partido teriam precipitado o País no descalabro administrativo e na convulsão política que teriam fermentado o golpe militar de abril de 1964.
Mas a trajetória política de San Tiago, que ele confundiu com a sua vida, autoriza ou desmente essa afirmação? Não teria ele senão buscado imprimir racionalidade e consistência ideológica ao debate político de seu tempo, nele intervindo e empenhando desassombradamente o vigor de sua inteligência, dos dezoito anos até a véspera da sua morte, há exatos cinquenta anos?
A resposta a essa questão está na história de sua vida, encerrada, precocemente também, aos cinquenta e três anos incompletos, em plena maturidade intelectual, quando já descera, em abril daquele ano de 1964, uma vez mais, a noite das liberdades públicas no País.
Este primeiro volume da biografia de Francisco Clementino de San Tiago Dantas, nascido no Rio de Janeiro em 1911, estende-se até 1945, um ano divisor em sua trajetória e também no curto século XX. Então, o jovem ideólogo da direita radical, nutrido pela reação ao legado da Revolução Francesa acrescido pela Igreja Católica e reafirmada pelo fascismo italiano, cedera lugar ao defensor de uma social-democracia nascida da dramática experiência da Segunda Guerra Mundial. O “catedrático menino” tornara-se o mestre consumado que desprezava os títulos professorais e amava os alunos e era por eles amado. E o jurisconsulto notável, que via na ciência jurídica nativa o maior entrave à realização do Direito entre nós, já encontrara na advocacia a retribuição material ao seu tenaz aprendizado, em medida raramente alcançada
entre os seus pares.
Saber, ter e poder. Dessa tríade que San Tiago tomou para si como metro de sua trajetória, apenas o último elemento – o poder político – ele não alcançaria plenamente. Mas nesses primeiros trinta e quatro anos de vida ele se habilitou, como poucos antes ou depois, a buscar o fugidio poder político que o fascinara já ao pisar no pátio da Faculdade de Direito, aos dezesseis anos.
O aprendizado que lhe permitisse formular um projeto político consistente de reformas estruturais para o País – o saber; e o ter – a conquista dos meios que lhe possibilitassem cursar uma carreira política desembaraçada de sujeições materiais: reviver para o leitor de hoje essa saga invulgar na história da inteligência brasileira é o propósito e o desafio desta biografia que o Autor procura cumprir, com o lançamento deste primeiro de seus dois volumes.

San Tiago Dantas – A RAZÃO VENCIDA
Dar voz a San Tiago inscrevendo seus textos elegantes e precisos na narrative e situando-o em seu contexto histórico mostrou-se o método indicado a descrever, com a fidelidade possível, a sua espantosa atividade intelectual.
Nesse sentido, o recuo no tempo se impôs para identificar as suas origens familiares, cujo exemplo ele exaltava, e para mapear as matrizes ideológicas que cedo San Tiago se esforçou por dominar e o inspiraram a primeiro defender a “moderna obra da reação”: a Revolução Francesa e a reação às suas conquistas; o surgimento da nova direita no começo do século XX, precedendo as revoluções bolchevista, fascista e nazista; e, no rastro sangrento da Primeira Guerra Mundial, o embate ideológico que levaria à Segunda em 1939.
Ao jovem ideólogo somou-se o “catedrático menino” que não frequentou regularmente o ginásio e pouco frequentou a Faculdade de Direito, porém desde cedo acumulou espantosos e sucessivos “tempos de estudo” mais tarde desdobrados inclusive em aulas célebres transcritas em apostilas e ainda hoje, oito décadas depois, editadas em livro.
E sobre essas qualidades inegáveis, sobre a admiração e as controvérsias que se acenderam à sua trajetória, esse homem naturalmente grave e professoral difundia um afeto generoso e franco pela família, vendo nos sobrinhos, sempre próximos, os filhos que não pôde ter, e tendo nos amigos da escola os companheiros inseparáveis de toda a vida.
“De muitos, um”, dizia o sinete que San Tiago estampava em seus livros.
Essa síntese ele procurou retirar das ideias e viveu plenamente essa busca, aprendendo para ensinar, ensinando para esclarecer, esclarecendo para transformar.
E, no entanto, o poder político não foi alcançado. Mas San Tiago deixou a sua saga intelectual a crédito da história de seu País.

domingo, 24 de agosto de 2014

Getulio Vargas (3), o desenlace: resumo da biografia de Lira Neto

Terceiro e último volume da monumental biografia de Getúlio Vargas, por Lira Neto, sobre o atentado a Lacerda e o suicídio de Getúlio, um gesto calculado, destinado a, mesmo na derrota e no desenlace fatal, vencer seus inimigos, ganhando para si o povo, que ele manipulava como um mestre da política, mas que não gostava de fazer política, apenas de mandar.
Paulo Roberto de Almeida

Mil disfarces de Getúlio Vargas convergem num gesto de coerência
RESUMO O teatral suicídio de Getúlio, impelido pelas pressões políticas internas e externas sobre seu governo e ocorrido há 60 anos, fez com que o poder político do estadista perdurasse após sua morte. Últimos anos de sua vida são tema do terceiro e último tomo da biografia que lhe consagra Lira Neto, aqui resenhado.
OTAVIO FRIAS FILHO, 57, diretor de Redação da Folha

Os efeitos políticos do suicídio de Getúlio Vargas (1882-1954), que hoje completa 60 anos, já se dissiparam há muito tempo, mas o ato continua a reverberar pela singularidade.

Trágico, violento e irrecorrível, ele discrepa dos costumes conciliatórios vigentes desde pelo menos meados do século 19, quando se fixou o padrão das revoluções com pouco ou nenhum derramamento de sangue e das transições negociadas em que parte da velha ordem se transfere como por osmose à nova (1889, 1930, 1945, 1964, 1985). Discrepa também da personalidade do suicida, conciliador-mor que encarnou como ninguém o papel de sedutor matreiro capaz de se safar das piores encrencas. Como todo gesto extremo, terá sido preparado por uma complexa malha de causas.

É sabido que Getúlio sentia atração pelo suicídio honroso, destinado a prevenir alguma condição intolerável na eventualidade de uma derrota definitiva. Pelo menos duas vezes ele mencionou a possibilidade por escrito, quando era arrastado, em outubro de 1930, após muita hesitação, à ofensiva rumo ao Rio, sem saber que resistência encontraria pelo caminho, e em julho de 1932, quando foi surpreendido pelo ímpeto da contrarrevolução constitucionalista que irrompeu em São Paulo. Um de seus filhos viria a suicidar-se em 1977, o que parece sugerir alguma propensão inata.

Para que essa atração se convertesse em ato, porém, foi preciso que todas as portas se fechassem. Com os mandantes da tentativa de assassinar Carlos Lacerda (da qual resultou a morte de um oficial da Aeronáutica) alojados em seu palácio, com o "mar de lama" que as investigações subsequentes revelaram, Getúlio enfrentava uma avassaladora campanha pela renúncia, que logo se traduziu em ultimato militar transmitido pelo próprio ministro da Guerra (Exército). Naquela madrugada de 24 de agosto de 1954, ele ainda negociou uma licença que o manteria afastado do cargo até a conclusão das diligências. Os militares, contudo, foram irredutíveis.

Relatos da época indicam um presidente amargurado, aos 72 anos, com os desmandos na família cometidos às suas costas e, ao mesmo tempo, receoso de que ela passasse a objeto de execração pública: um irmão e um filho talvez estivessem a par da preparação do atentado; outro filho vendera uma propriedade a Gregório Fortunato, chefe da guarda pessoal do palácio e mentor do crime, pago com empréstimo bancário avalizado por João Goulart, ministro do Trabalho até a véspera e afilhado político do presidente.

Num homem tão racional e metódico, mesmo os lances da paixão foram comedidos pelo cálculo. Psicologia à parte, o extraordinário nesse suicídio é seu alcance político -num derradeiro passe de mágica o velho prestidigitador inverte a maré, derrota os inimigos quando mal haviam aberto o champanhe (conforme o relato de Lacerda sobre o fatídico amanhecer) e se consagra na memória popular, comandando seu vasto eleitorado por algumas décadas desde o além-túmulo (há indícios de que ele tencionava apoiar Juscelino e seguramente gostaria de ter visto Jango ou Leonel Brizola como sucessores).

ATENTADO
Ao contrário do suicídio, o atentado é quase inexplicável. De sua execução desastrada, Lacerda emergiu como mártir vivo (fora ferido no pé) conclamando os militares a fazer justiça ao colega de farda assassinado. Mesmo que o crime fosse bem-sucedido, porém, naquele ambiente exasperado as consequências seriam devastadoras para o governo, sobre o qual recairiam as suspeitas pela eliminação do principal inimigo de Getúlio na imprensa. Por rústicos que fossem, é estranho que os autores da trama não se dessem conta disso.

Atentado e suicídio formam o clímax do terceiro volume da biografia escrita por Lira Neto,"Getúlio - Da Volta pela Consagração Popular ao Suicídio (1945-1954)" [Companhia das Letras, R$ 49,50, 430 págs.], agora lançado, completando uma empreitada de 1.654 páginas. Ali, esse autor que gosta de explorar peripécias e lances pitorescos, mas trata seu material com exatidão escrupulosa, dá a versão dos condenados, apresentada anos depois do episódio.

As confissões teriam sido obtidas sob coação. Os dois acusados apenas seguiam Lacerda, em busca de algo que o comprometesse. Quando, na madrugada de 5 de agosto, o major Rubens Vaz estacionou na rua Tonelero e Lacerda desceu do carro para entrar no prédio onde morava, um dos réus teria se aproximado para anotar o número da placa, sendo interpelado pelo militar, que também saíra do carro. Seguiu-se uma luta entre ambos; Lacerda, que mal entrara no prédio, começou a atirar, atingindo por engano o major. Um segundo tiro, desferido pelo acusado com quem se atracava, matara o oficial. O inquérito teria sido uma fantástica farsa.

São mínimos os indícios em apoio dessa versão. Lira Neto os registra com gosto, contente por envolver acontecimento tão mítico nessas fumaças de mistério: a arma de Lacerda, que de fato disparou, não foi periciada; os boletins médicos do ferimento no pé desapareceram. Mas o biógrafo endossa a versão oficial, sustentada por todas as evidências disponíveis, entre elas o relato de três jornalistas do "Diário Carioca" que por acaso viram a cena a poucos metros de distância (um deles, o vizinho Armando Nogueira, foi o primeiro a reportá-la). É preciso uma sólida fé em teorias conspiratórias para acreditar que não houve atentado.

GUARNIÇÃO
A guarda pessoal, que na época tinha 83 integrantes, havia surgido em 1938. Numa noite de maio daquele ano, seis meses depois do golpe em que Getúlio se fez ditador, um destacamento integralista (espécie de fascismo católico-tropical) invadiu o Palácio Guanabara com o objetivo de assassiná-lo e tomar o poder. O assalto foi rechaçado pela guarnição e por auxiliares do autocrata, mas a fuzilaria se prolongou enquanto o Exército e a Polícia Especial demoravam, de forma suspeita, a enviar reforços.

Benjamin Vargas, irmão mais novo de Getúlio, teve papel crucial na defesa do palácio naquela madrugada e parece ter sido responsável pelo fuzilamento sumário, nos próprios jardins do Guanabara, de uma dezena de golpistas presos quando o ataque foi debelado ao amanhecer.

Em 1932, esse mesmo irmão se pusera à frente de um batalhão de voluntários, recrutado entre capangas e apaniguados da família Vargas em São Borja para combater os paulistas. Nesse batalhão, que numa arruaça de fronteira chegou a invadir território argentino, figurava Gregório Fortunato, o futuro Anjo Negro, a quem foi confiada, depois do assalto integralista, a missão de chefiar o bando convertido em guarda permanente dedicada à proteção do ditador.

Lira Neto narra incidentes espantosos durante a ditadura do Estado Novo em que Bejo -como o irmão atrabiliário e alcoólatra era chamado em família- provoca desafetos em boates, dá tiros a esmo, chega a ferir terceiros e continua impávido. Certa vez mandou sequestrar e espancar um jornalista; o assecla encarregado da tarefa seria mais tarde um dos dois condenados pela execução do atentado contra Lacerda. Nesse submundo provinciano em que se cruzavam compadrio e delinquência, em que o hábito caudilhesco da violência se ampliara na impunidade garantida pela ditadura, formou-se o "mar de lama" que tragou o mandato democrático de Getúlio.

CARTA-TESTAMENTO
Mas, como no movimento entre tese/antítese/síntese, atentado e suicídio somente se resolvem no terceiro elemento mítico dessa narrativa, a carta-testamento, também ela objeto de controvérsia duradoura. Existem duas versões desse texto.

A primeira, manuscrita certamente pelo próprio Getúlio, é mais curta. Seu tom é apressado, algo prosaico, e certas passagens exalam ressentimento. O autor reclama da "fraqueza de amigos que não me defenderam" e da "felonia de hipócritas e traidores a quem beneficiei". O fecho é pedestre e anticlimático: "A resposta do povo virá mais tarde...".

A segunda versão, datilografada, logo distribuída e replicada à exaustão nas rádios e jornais, foi a que passou à história. É uma magnífica exortação política, escrita com simplicidade intensa e solene. Sua qualidade literária quase faz esquecer o quanto ressoa de demagogia nacionalista e de culto à personalidade em seu teor.

"Não me acusam, me insultam, não me combatem, caluniam, e não me dão o direito de defesa." Feitas as negativas desse introito, que valem por uma refutação, o texto relembra que, depois de "decênios de espoliação", o autor se fez chefe da Revolução de 1930, instaurou "um regime de liberdade social", foi deposto e retornou ao governo "nos braços do povo".

Passa a enfrentar a resistência de grupos "nacionais e internacionais" ao aumento do salário mínimo, à restrição nas remessas de lucros para o exterior, à criação da Eletrobras. Vinha lutando "mês a mês, dia a dia, hora a hora" -o tempo da narrativa só se acelera- até concluir: "Nada mais vos posso dar, a não ser o meu sangue", o que confere uma ressonância cristã ao sacrifício feito em nome do povo e que sela sua aliança ("uma chama imortal") com o líder imolado.

Segue-se uma saraivada desconcertante de antíteses: "Ao ódio respondo com o perdão. E aos que pensam que me derrotaram respondo com minha vitória. Era escravo do povo e hoje me liberto para a vida eterna. Mas esse povo de quem fui escravo não mais será escravo de ninguém". No último parágrafo, uma série de frases curtas, sincopadas, prepara o crescendo de suspense que se desata no majestoso traslado da sentença final: "Serenamente dou o primeiro passo no caminho da eternidade e saio da vida para entrar na história".

Parece haver algum consenso entre os historiadores quanto à sequência de eventos. Getúlio faz anotações para uma carta que deixaria caso as circunstâncias o forçassem ao suicídio. Lira Neto conta que Alzira, sua filha e secretária, diz ter visto essas anotações uma semana antes entre os papéis do presidente que, interpelado por ela, desconversou, atribuindo-as a um momento de "desabafo". Essa versão já dizia que "velho e cansado, preferi ir prestar contas ao Senhor".

Em algum momento daqueles dias, Getúlio discute o assunto com o jornalista José Soares Maciel Filho, amigo e redator de seus principais discursos, a quem pede que redija uma segunda versão, como haviam feito em outras ocasiões. Maciel, que na juventude fora aluno do filósofo Benedetto Croce na Itália e depois criara um jornal no Rio para sustentar a Revolução de 30, era um ideólogo nacionalista que ocupou cargos altos na burocracia getuliana. Para tranquilizar o assessor, é plausível que o presidente tenha alegado reservar o texto para uma situação extrema que provavelmente nunca ocorreria.

CENÁRIO
Claro que todo esse cenário é apenas a condensação teatral de um drama muito maior. O raio de manobra do governo vinha se estreitando, conforme era tracionado por uma dinâmica de polarização entre forças econômicas e interesses sociais contraditórios, que Getúlio (como Jango 20 anos mais tarde) tentou conciliar enquanto conseguiu.

Como sempre, o cobertor era curto. O país precisava de recursos externos para investimentos em infraestrutura, mas a prodigalidade que os americanos haviam mostrado na Segunda Guerra e no começo da Guerra Fria, quando era prioritário manter boas relações com o Brasil, cedera lugar, a partir de 1952, a uma atitude mais dura e à exigência de que os empréstimos tramitassem menos via governos e mais via instituições privadas, o que reclamava um "ambiente de negócios", como se diria hoje, mais amigável.

O foco das tensões era o regime de câmbio, que sofreu idas e vindas no período, conforme o governo cedia às pressões estrangeiras, aos exportadores de café ou aos importadores nacionais. Programas de estabilização financeira (encetados pelos sucessivos ministros da Fazenda, Horácio Lafer e Oswaldo Aranha) eram solapados pela necessidade política do governo de ceder às demandas crescentes. A economia crescia a uma taxa média anual próxima a 6%, mas a inflação, que estivera em 8% no quadriênio anterior, chegou a cerca de 20% anuais no mandato de Getúlio.

Pelo flanco sindical, o governo era acossado por greves e pela radicalização do semiclandestino Partido Comunista, que, em mais uma reviravolta determinada por Moscou, rompera com Getúlio e adotava uma política de agitação operária. Em maio de 1954, o presidente concedeu o controvertido reajuste de 100% no salário mínimo, elevando-o a valor real próximo ao de hoje, quando a renda per capita é quase cinco vezes maior que a da época.

O governo, entretanto, mantinha controle sobre o Parlamento, onde a Câmara dos Deputados votou, em junho de 1954, um pedido de impeachment do presidente, derrotado pelo placar de 136 votos contrários e apenas 35 a favor.

A oficialidade militar, impregnada pelas divisões que cindiam a opinião pública e alvoroçada pela perda de poder aquisitivo dos soldos, ainda abrigava um setor "progressista", simpático ao nacionalismo do presidente ou ao menos apegado ao regime constitucional de 1946. O assassinato do major Vaz gerou uma catarse corporativa que fez a balança de forças pender pelo afastamento, via renúncia ou deposição.

Getúlio fora um oportunista por excelência, adotando os disfarces ideológicos que mais lhe convinham a cada conjuntura, mas seria um equívoco ignorar a linha de continuidade a estruturar essa trajetória cujas aparências parecem tão mutáveis.

Sua aversão à democracia parlamentar, sua concepção do Estado centralizado como indutor do desenvolvimento e do equilíbrio entre classes e regiões, até mesmo sua prudência em matéria fiscal e a inclinação por um regime plebiscitário que mantivesse o líder por tempo indefinido no poder - tais aspectos integram uma doutrina à qual permaneceu constante, emanada do pensamento positivista do francês Auguste Comte (1798-1857).

No final do século 19, essa doutrina, adaptada por discípulos brasileiros, desempenhou forte influência na mentalidade republicana, especialmente a gaúcha. Naquele Estado, facções positivistas e liberais chegaram a se enfrentar em duas guerras civis (1893-5 e 1923). Influência parecida aconteceu na mesma época em outros países latino-americanos, e diga-se de passagem que o recente "bolivarianismo" tem suas raízes nesse mesmo substrato.

Em linguagem marxista, as teorias de Comte refletiam na França uma parcela do pensamento burguês engajada na universalização de direitos que a Revolução de 1789 apregoou, mas intimidada pela ameaça à propriedade representada pelas insurreições operárias de 1848 e 1870. Era preciso patrocinar mudanças dentro de um curso dirigido, "racional" (a doutrina exercia peculiar fascinação sobre engenheiros e militares). Tais ideias vinham a calhar quando transplantadas ao contexto de uma elite hostil ao bacharelismo, dissidente e autoritária, reformista e conservadora, como aquela que produziu o estadista Getúlio Dornelles Vargas.

ENFOQUE
Panorama tão amplo escapa, como não poderia deixar de ser, aos propósitos do biógrafo; seu enfoque sempre minucioso está concentrado no círculo íntimo do presidente. Neste terceiro volume, o narrador utilizou os rascunhos que Alzira Vargas preparou para seu segundo livro de memórias, nunca publicado, assim como as numerosas cartas que trocou com o pai, entre 1945 e 1950, quando ele cumpria seu ostracismo como estancieiro na fazenda de São Borja e ela atuava, no Rio de Janeiro, como sua articuladora.

Além de filha devotada e secretária diligente que lhe providenciava roupas, remédios e charutos, Alzira parecia possuída, como o pai e ao contrário de certos parentes, pela paixão da política enquanto responsabilidade pública. Era também uma mulher corajosa, arguta e dotada de tino maquiavélico, o que torna a leitura da correspondência muito instrutiva.

Suas metáforas, extraídas do léxico feminino, são quase sempre tiradas divertidas nas quais ela informa o pai sobre o que se passa na corte do presidente Dutra - a famosa "copa e cozinha" - para então abrir o leque das opções a seu ver disponíveis e declarar-se à espera de ordens. Lira Neto revela que Samuel Wainer foi enviado para a famosa entrevista com Getúlio ("voltarei como líder de massas") ao que tudo indica numa manobra engendrada pela filha no Rio.

Anos mais tarde, na última reunião ministerial que Getúlio presidiu, às primeiras horas do 24 de agosto, seriam dela e de Tancredo Neves as vozes categóricas a favor de retomar pela força o mandato prestes a ser usurpado, prendendo imediatamente os generais insubordinados.

PROTAGONISTAS
Se há muito de cinematográfico no andamento dos livros de Lira Neto, não resta dúvida sobre quem são os protagonistas dessa história, que vai sendo ocupada do meio para o fim pela preciosa relação entre um pai declinante e sua filha dileta -até que o delicado fio que prende esse Lear a sua Cordélia se rompa na torrente final da tragédia.

No entanto, parece que foi faltando tempo ao autor (o trabalho inteiro consumiu cinco anos), de modo que o terceiro e o segundo volume, embora admiráveis, talvez não alcancem o nível primoroso do primeiro nem tenham sua originalidade, favorecida por tratar da fase inicial, menos divulgada, da vida do personagem.

Ele foi assunto de diversas abordagens biográficas, em geral oficiosas (a própria Alzira escreveu a sua, "Getúlio Vargas, Meu Pai", publicada em 1960). Em 1974, o criterioso historiador John W. Foster Dulles, biógrafo de Lacerda e filho do secretário de Estado norte-americano entre 1953 e 1959, publicou "Getúlio Vargas: Biografia Política". Mais recentemente, o historiador Boris Fausto lançou seu excelente e conciso "Getúlio Vargas - O Poder e o Sorriso" (2006).

Apesar desses antecessores ilustres, é provável - devido às ambições narrativas, ao rigor documental da imensa pesquisa e ao desengajamento do ponto de vista - que a biografia de Lira Neto assuma a posição de obra definitiva sobre o personagem por longo tempo, moldando a visão das próximas gerações de estudiosos, leitores e espectadores.

PRESENTE
Quanto ao leitor atual, não será ele tentado a ver analogias inquietantes entre aquele passado nem tão remoto e o presente? O PT em vez do PTB, Lula em vez de Getúlio (Dilma em vez de Dutra?), o PSDB no lugar da UDN, o PMDB no do PSD - a demagogia, a corrupção, a direita golpista -; será que estamos presos ao mesmo círculo que se repete? Mas basta ressaltar as diferenças mais importantes para concluir que essa identidade é aparente.

Em 1954, o capitalismo estava enraizado no país de modo ainda mais precário do que hoje, quando uma proporção maior da sociedade e do território foi incorporada a sua dinâmica e absorveu parte de seus benefícios. Em última análise, o sentido histórico da ditadura militar (1964-85) foi exatamente forçar pela violência uma trégua nas lutas sociais, que permitisse a acumulação destinada a completar a tarefa iniciada desde os anos 1930, a modernização capitalista.

Lamentamos as metrópoles atulhadas e a depredação da natureza, mas foi esse processo vertiginoso que trouxe a mortalidade infantil de 128 óbitos por mil nascimentos (1955), por exemplo, aos atuais 14, e a expectativa de vida dos 45 anos (1950) aos atuais 75, ambos índices objetivos de melhora nas condições coletivas de vida.

Por motivos que extrapolam esta resenha, mas que decorrem em parte do amadurecimento institucional após tantas aventuras frustradas, o Exército deixou de ser o fio desencapado da política, que potencializava os impasses até conduzi-los a soluções de força. A estrutura constitucional passou a funcionar porque a trama de interesses na economia e na sociedade se tornou mais forte e complexa. Por falta de respaldo suficiente, direita e esquerda exaltadas tiveram de abandonar há 40 anos qualquer tentativa séria de golpismo.

As relações com os Estados Unidos também evoluíram, conforme nossa dependência daquela economia se tornou menor, de maneira que uma posição nacionalista se traduziria, hoje, mais em termos de competição por mercados e tecnologias do que nos moldes tradicionais de uma resistência anti-imperialista.

O maniqueísmo ideológico dos anos 1950 se dissolveu numa espécie de centrismo tecnocrático, administrativista, no qual as alternativas, por mais encarniçada que continue sendo a luta de suas falanges pelo poder, não passam de versões um pouco mais à esquerda ou à direita - precisamente como PT e PSDB na atualidade, separados por divergências mais de grau e estilo do que de essência.

Getulio Vargas (2), o ditador: resumo da biografia de Lira Neto

O lado escuro de Getúlio Vargas
OTAVIO FRIAS FILHO, 18/08/2013

RESUMO Segunda parte da biografia de Getúlio Vargas aborda seu lado "ruim", concentrando-se nos anos que levaram à ditadura do Estado Novo. Apesar de certo tom oficialesco, livro se destaca pela narrativa da Revolução de 32 e da Intentona Comunista e ajuda a desfazer maniqueísmo ingênuo em torno da figura do líder.

Assim como o colesterol, pode-se dizer que existe um Getúlio Vargas "bom" e outro "ruim". O primeiro é o líder de uma revolução democrática, o campeão dos direitos sociais, o governante nacionalista. O segundo é o chefe da única ditadura pessoal que o Brasil conheceu e o político inescrupuloso aferrado ao exercício do poder.

Claro que esse maniqueísmo ingênuo se desfaz conforme conhecemos mais sobre personalidade tão ambígua e sua complexa inserção numa época conflagrada como os meados do século passado. Fomentar essa compreensão isenta é o maior mérito da biografia em três volumes empreendida pelo jornalista e pesquisador Lira Neto, da qual se publica agora a segunda parte, "Getúlio - Do Governo Provisório à Ditadura do Estado Novo (1930-1945)" [Companhia das Letras, 632 págs., R$ 52,50].

Nela se concentra o Getúlio "ruim", o equilibrista ardiloso que sobrenada em meio às tormentas ideológicas da década de 1930, jogando uns contra outros, sempre aliado ao adversário da véspera - chefe do governo provisório (1930), presidente eleito pela Constituinte (1934) e enfim ditador a partir de 1937.

É natural que o protagonista comande o espetáculo numa biografia; mesmo no caso de figura decisiva como Vargas, porém, é fascinante o grau em que sua trajetória foi antes comandada pelas circunstâncias. Mestre da paciência e do silêncio, ele esperava que se consolidassem à medida que tratava de se amoldar a elas.

Não eram apenas circunstâncias locais, pois os anos 1930 ilustram com nítida evidência que não existe o "nacional", no sentido de que ele é sempre uma variante particular de fenômenos mais amplos, de dimensão internacional.

Impulsionada pela catástrofe da crise econômica de 1929, por toda parte a revolução social parecia iminente. Sua ponta de lança eram os partidos comunistas, organizados sob disciplina militar e obedientes à União Soviética.

O fascismo foi, como se sabe, uma defecção nacionalista e racista desse movimento revolucionário, logo apropriada pelos setores interessados em preservar a propriedade e a hierarquia ameaçadas. Desde os anos 1920, hordas de fanáticos das duas seitas -opostas nos propósitos, iguais em método e estética- se enfrentavam em arruaças nas principais cidades do mundo.

Quando duas forças políticas se empenham num confronto violento e prolongado sem que nenhuma submeta a outra, torna-se provável um desenlace cesarista (também chamado bonapartista). Incapaz de um compromisso estável, exaurida pelas lutas intermináveis, a sociedade vê um ditador enfeixar o poder absoluto para restabelecer a ordem periclitante, ainda que sob uma retórica revolucionária.

Nada muito diverso ocorreu no Brasil da época. Mas a comparação é instrutiva porque permite isolar, quase como num experimento químico, as peculiaridades que distinguem o cesarismo tupiniquim, getuliano, do padrão mais geral.



Divulgação/CPDOC/FGV
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Getúlio Vargas após assumir a presidência do Brasil, em 1930
A mais notável, talvez, é seu caráter camaleônico. Embora formado no positivismo autoritário e reformista que fez longa escola na política gaúcha, Getúlio nunca aderiu a qualquer doutrina ideológica. Conforme as conveniências, manipulava este ou aquele aspecto de todas elas, reivindicando para si o centro de gravidade da política, afastado de ambos os extremos.

Característica psicológica da personagem? Certamente. Mas também sintoma de uma sociedade onde ideologias têm função decorativa, na qual as ideias não são levadas ao pé da letra nem sequer a sério, em que programas e compromissos são "para inglês ver".

Esse traço cultural do país responde por mazelas (sucessivas constituições, leis e orçamentos que não se respeitam, partidos de araque, política inautêntica) e também por subprodutos benfazejos (ausência de racismo politicamente articulado, tolerância religiosa e sexual, descrença em relação a dogmas).

Tortura e assassinatos políticos faziam parte da rotina da repressão policial, sobretudo após o golpe do Estado Novo, em 1937. Não podem ser quantificados porque os registros foram destruídos a tempo, mas as revoltas armadas do período deixaram um saldo reduzido de baixas.

Foram 22 mortos na Intentona Comunista (1935); ainda menos na tentativa de golpe integralista (patética versão nativa do fascismo) em 1938. Mesmo a Revolução Constitucionalista de 1932, o maior conflito armado na história republicana depois das sangrentas campanhas de Canudos e do Contestado, deixou menos de mil mortos.

Esse cômputo integra um padrão reiterado na formação brasileira, uma sociedade mais violenta do que a maioria das demais, desde logo pela extensa deformação da escravatura, mas onde a violência encontra escassa expressão política.

Cada um é livre para especular sobre esse enigma nacional. Resultado da profunda desarticulação social que é própria do legado escravocrata? Hábito adquirido da conciliação, dos acertos "pelo alto", a fim de não despertar o vulcão adormecido da desigualdade? Anemia da sociedade civil, o que deixa as forças políticas quase sempre à mercê do bloco que controla o hipertrofiado poder central? Porosidade à ascensão individual, que impede a pressão coletiva de atingir um ponto crítico?

PROTESTOS
Na opinião deste resenhista, dois episódios se destacam na narrativa de Lira Neto. O primeiro é a Revolução de 1932, a começar pela extraordinária descrição do incidente -os protestos de 23 de maio nas ruas em São Paulo- que a prenunciou. Ainda que o livro nunca abandone a perspectiva da personagem incrustada no Palácio do Catete, seu relato transmite a sensação de que a revolta se desenrola diante de nossos olhos.

Fica patente o quanto havia de reacionário no movimento, que mobilizava um sentimentalismo nostálgico da supremacia política paulista. Ao mesmo tempo, deflagrada pela elite econômica e cultural, a insurreição teve substancial apoio popular e conduziu à breve democratização de 1934, que adiou a ditadura.

Esta seria inevitável em decorrência do outro episódio proeminente, o infausto levante militar organizado no ano seguinte pelo Partido Comunista. Por volta de julho de 1935, Josef Stálin, o ditador soviético, finalmente atinou que o nazifascismo era a ameaça prioritária. Os partidos comunistas, até então instruídos a incitar a revolução armada, passaram a adotar uma política defensiva de frente ampla com as demais forças antifascistas. No Brasil, o golpe em preparação não foi abortado, em parte por causa das estimativas delirantes sobre a chance de vitória que seu líder, Luís Carlos Prestes, repassava a Moscou.

Detonada em novembro no Recife e em Natal, e dias depois no Rio, a intentona foi facilmente estrangulada pelo governo. Concebida por uma potência estrangeira, converteu-se no fantasma a ser invocado como eterno pretexto pelas duas ditaduras do século, a de 1937 e a de 1964. Foi o maior dos muitos erros de Prestes, tido por militar capaz, mas politicamente obtuso.

Seu fracasso aproximou perigosamente o Brasil do Eixo, tendência revertida para um tardio realinhamento com os Estados Unidos que só seria consumado em 1942, quando aquele país compeliu o nosso a ceder bases aéreas no Nordeste como apoio logístico para a campanha no Atlântico. Na barganha, Getúlio obteve dos americanos financiamento para a primeira siderúrgica, Volta Redonda.

Premido por manifestações populares, provocadas pelo afundamento de navios brasileiros que violavam o bloqueio naval imposto pela Alemanha à Inglaterra, o governo enviou uma força expedicionária à guerra na Itália. O engajamento com as potências democráticas desencadeou a dinâmica que levaria os militares à primeira deposição de Getúlio Vargas (1945).

Como saldo, o Estado Novo deixava um aparelho federal modernizado, uma legislação trabalhista que renderia ao getulismo dividendos eleitorais por muitos anos e incipientes processos de industrialização e urbanização que se fariam avassaladores nas décadas seguintes.

Não faltam amenidades ao livro. Desde o apreço de Getúlio Vargas por pontualidade, churrasco, cavalos, charutos, golfe e pingue-pongue até detalhes de sua estreita relação com a filha Alzira, confidente e secretária particular que organizou os arquivos do pai, esta biografia não perde o fio do pitoresco, do íntimo e do prosaico. O antiquado romance com a mulher de um hierarca do regime -a "bem-amada" que aparece nos diários secretos do presidente- é contado em tom picante.

Duas ressalvas num livro de resto admirável. A pouca familiaridade do biógrafo com temas econômicos deixa lacunosa essa importante faceta na atuação do ditador.

E as principais fontes do livro - as recordações filtradas pela devoção de Alzira Vargas e os diários mantidos pelo pai (1930-42), que mesmo ali ostenta a compostura protocolar de quem calcula sua revelação póstera- às vezes conferem uma tonalidade oficialesca ao conjunto, que não deixa de refletir, entretanto, o pesado clima cartorial da época.

domingo, 10 de agosto de 2014

Getulio Vargas: terceiro e ultimo volume da biografia de Lira Neto


Crise política fecha trilogia sobre Getúlio Vargas
ELEONORA DE LUCENA
DE SÃO PAULO
Folha.Ilustrada, 09/08/2014 


GETÚLIO (1945-1954)
AUTOR Lira Neto
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 49,50 (448 págs.)

Há 60 anos o Brasil vivia uma aguda crise política. Getúlio Vargas tinha aumentado em 100% o salário mínimo e provocara a ira de empresários e comandantes militares. Os Estados Unidos estavam incomodados com a limitação de remessas de lucros de companhias estrangeiras no país, o estabelecimento do monopólio estatal da exploração do petróleo e a recusa de envio de brasileiros para a guerra na Coréia.
No Congresso, barulhentos conservadores falavam em mar de lama no governo. Na madrugada de 5 de agosto, a notícia do atentado contra Carlos Lacerda, com a morte do major Rubens Vaz, acelerou a turbulência, que culminou com o suicídio de Getúlio, no dia 24. A comoção que tomou conta do país adiou os planos da oposição, que só conseguiu se rearticular na trama do golpe de 1964.
A narrativa desses tempos conturbados é o ápice do último livro da trilogia "Getúlio", do jornalista Lira Neto, que chega agora às livrarias, abarcando o período de 1945 a 1954. No conjunto, o autor trabalhou cinco anos na biografia do líder político. Os dois primeiros volumes venderam no total 79 mil exemplares; esse novo sai uma tiragem de 40 mil.
"Não acredito em biografias definitivas. Getúlio é ainda um território vasto a ser explorado. Ele é o personagem mais importante da história brasileira, para o bem e para o mal. Não sou louco de tentar defini-lo", diz Lira, 50, à Folha.
Para ele, Getúlio deixou um amplo legado, que extrapola a política. "Ele modernizou o Brasil, tirou o país de uma situação agrária e o conduziu para um projeto de desenvolvimento, com uma legislação trabalhista que era moderníssima para aquele momento. A pergunta que faço é quanto disso poderia ter sido conquistado com mais democracia", avalia.
Apesar de ter sido investigada em centenas de livros, a trajetória de Getúlio ainda contém aspectos nebulosos. "Há determinadas coisas que não permitem fazer uma narrativa pronta, única e acabada", diz Lira. Exemplo principal: o assassinato do major Vaz, que fazia a segurança de Lacerda, na rua Tonelero, em Copacabana.
"O que aconteceu de fato naquela noite nunca vamos saber. Lacerda contou a história de duas formas diferentes e nunca entregou a sua arma para perícia. Os interrogatórios da investigação do caso foram conduzidos, digamos, de forma pouco polida. Pessoas interrogadas [na chamada "República do Galeão] relataram, se não a tortura física, a psicológica. Sofreram ameaças. Todas as perguntas desse caso estão em aberto", afirma o autor.
Se hipoteticamente pudesse perguntar algo a Getúlio, o jornalista trataria do caso da venda da fazenda de Maneco Vargas, filho do presidente, a Gregório Fortunato, chefe da guarda e já envolvido no caso Vaz. Na visão de Lira esse escândalo foi crucial para o desfecho da crise.
"Foi o grande golpe naquele instante final de isolamento", diz. O jornalista lembra que "mesmo os antigetulistas mais ferrenhos não se arriscam a acusar Getúlio de ter se beneficiado financeiramente do poder. O homem mais poderoso da história do Brasil de todos os tempos tinha dificuldades para pagar contas. Em São Borja, seu patrimônio era quase ridículo. Por isso, naquele momento, aquela revelação o feriu".
Para além da crise final do governo, Lira trata, nesse terceiro volume, do exílio de Getúlio em São Borja, das suas articulações políticas para a volta à cena nacional, da campanha vitoriosa à presidência. Para isso, utiliza com fartura mais de 1600 páginas de cartas trocadas com a filha Alzira _"um tesouro virgem", diz o autor.
Também os originais nunca publicados de uma segunda obra de Alzira sobre o pai são importantes no texto. O período anterior a 1950 têm, relativamente, bastante espaço. Com isso, a narrativa sobre o governo propriamente dito não fica prejudicada? Lira discorda. Para ele, o livro discorre bem sobre a assessoria econômica paralela criada por Getúlio para gestar seus grandes projetos.
Chamados "boêmios cívicos", o grupo arquitetou o BNDE, a Petrobras, a Eletrobras, contornando as limitações de um ministério conservador, formado em razão de negociações políticas. "Todo esse projeto desenvolvimentista não poderia passar pelas vias tradicionais do congresso", avalia.
Lira enxerga paralelos entre as turbulências do governo de Getúlio e a situação atual. "Sessenta anos depois estamos discutindo as mesmas coisas de quando ele estava no poder: mais ou menos estado, o quanto é possível falar em mão invisível do mercado num país com tantas contradições. Isso é um sintoma até grave", analisa.
Para o biógrafo, hoje, como naquele tempo, o debate político acontece em torno de posições extremadas —"nem sempre com o mesmo brilhantismo dos polemistas daquela época". Ele próprio sentiu isso há alguns dias quando, numa rede social, apareceu uma foto sua entregando o novo livro ao ex-presidente Lula.
"Lula me convidou para um almoço. Eu não vou? É uma questão de cortesia, de educação. Mas pessoas, até amigos, disseram que eu estava mancomunado com mensaleiro, que tinha virado um 'petralha'. Uma incompreensão do ofício do jornalismo, uma reação muito raivosa".
Na semana que vem Lira pretende começar a definir seu próximo projeto. Não uma biografia, mas algo ligado à cultura do século 20.

domingo, 11 de maio de 2014

Henry Ford: o homem que inventou a era moderna (e depois a perdeu) - Richard Snow

O homem que inventou a era moderna
Autor de nova biografia de Henry Ford mostra como o empresário transformou a produção industrial e o regime capitalista
11 de maio de 2014 |
Lucia Guimarães - O Estado de S.Paulo

NOVA YORK - Num ano próximo a 1940, um adolescente conversava com Henry Ford sobre livros didáticos que considerava antiquados. Ford defendia os livros. O jovem John Dahlinger, de fato, filho ilegítimo de Henry Ford com sua amante, protestou: "Mas, senhor, vivemos novos tempos. Esta é a idade moderna e...". Ford cortou o interlocutor: "Rapaz, eu inventei a idade moderna".
A frase confirma a arrogância do pai da produção industrial do século 20, mas é um epíteto merecido, diz o autor da nova biografia de Henry Ford, o historiador Richard Snow. Em Henry Ford, O Homem que Inventou o Consumo (Ed. Saraiva, 416 páginas, R$ 44,90), nas livrarias brasileiras no dia 15, Snow não desenterra esqueletos ou revela fatos inéditos. Mas, numa narrativa com verve literária, que vai cativar leitores desinteressados nos meandros da combustão interna do histórico automóvel Modelo T, o automóvel que "todos podiam comprar" e que inaugurou a produção em massa responsável pela prosperidade americana no último século, Snow nos lembra da importância do homem que, segundo ele, teve a vida partida ao meio. Foi cativante, generoso e brilhante na primeira metade de seus 84 anos. Tirano, antissemita e megalomaníaco na metade seguinte.
O homem que dobrou o salário de todos os seus empregados, em 1913, acreditava que os judeus tinham inventado o jazz para dominar os Estados Unidos. O capitalista mais bem-sucedido do mundo há cem anos, detestava finanças e achava que acionistas não deviam receber dividendos. O empresário que inventou a produção industrial em massa, antes conhecida como "Fordismo", passou mais de uma década resistindo à inovação de sua galinha dos ovos de ouro: o Ford Modelo T, o automóvel que mudou a paisagem urbana e a economia mundial, apelidado no Brasil de Ford Bigode.
O menino da fazenda que detestava os animais gastou milhões pra montar um museu dedicado à vida rural. As contradições de Ford continuam a desafiar a compreensão do homem que em 1915 alugou um navio, encheu de escritores e jornalistas, e partiu para a Europa sob a manchete do New York Times: "Grande Guerra Vai Terminar no Natal. Ford vai Deter a Guerra". Ford não impediu o conflito. Mas continua inquietando os que se debruçam sobre sua biografia extraordinária. Em 1929, o popular ator e humorista Will Rogers disse a Henry Ford, sem o menor tom de brincadeira: "Vai demorar cem anos para sabermos se você nos ajudou ou nos prejudicou. Mas o certo é que você não nos deixou onde nos encontrou".
Estado conversou com o biógrafo Richard Snow em seu apartamento em Manhattan.
Qual a maior contribuição de Henry Ford?

Ford não era um inventor. Ele teve uma visão sobre o modo de produção que mudou o mundo. Em vez de ter um operário cumprindo 37 tarefas, decidiu que 37 operários deveriam cumprir 37 tarefas e a linha de montagem deveria passar por eles. Podemos atribuir a produção em massa a Henry Ford. Sabe que até o termo foi cunhado por ele num artigo para a Enciclopédia Britânica? Antes, os americanos se referiam a esse modo de produção como 'Fordismo'. Quando outras indústrias começaram a imitar o Fordismo, teve início a prosperidade americana que se estendeu por boa parte do século 20 e nos ajudou a sair vitoriosos na 2.ª Guerra.
O primeiro veículo experimental criado por Henry Ford, em 1896, foi o Quadriciclo, parente da bicicleta e não da carruagem.

Muitos pensam que o carro substituiu o veículo de tração animal. Mas o importante passo intermediário foi fruto da explosão da bicicleta no fim da década de 1880. A demanda por bicicletas era tal, no final do século 19, que exigia uma fabricação mais refinada. As peças de metal tinham de ser cortadas com mais precisão e os fabricantes acabaram aprendendo técnicas que não eram necessárias para as carruagens. A bicicleta permitiu a transição decisiva da tração animal para o automóvel.
O sucesso do Modelo T é atribuído a uma decisão incomum numa era em que empresários viam o automóvel como um artigo de luxo.

Quando Ford abriu sua primeira fábrica, em 1903, seus sócios imediatamente queriam aumentar o preço do Modelo T. Ele foi categórico: 'Vamos cortar preços' e virou uma noção do capitalismo ao avesso. Naquela época, o preço médio de um carro de qualidade era US$ 7 mil. Uma casa no subúrbio custava US$ 2 mil. Ford dizia que, cada vez que cortava US$ 0,50 do preço do Modelo T, atraía mais 50 mil compradores. Ele acreditava que sua máquina tinha de ser simples e barata. No final da produção, em 1927, um Modelo T custava US$ 295 e a Ford tinha vendido 15 milhões de unidades.
Quando o Modelo T começou a fazer sucesso, Ford tomou outra decisão que enfureceu os industriais.

Ford tinha 50 mil empregados. Eles ganhavam US$ 2,50 por dia, um bom salário então, numa linha de montagem. De repente, ele dobrou os salários para US$ 5,00. O Wall Street Journal o acusou de tentar destruir o capitalismo com filantropia. Ford sabia o que estava fazendo. Transformou seus empregados em compradores de automóveis. Outras indústrias se sentiram compelidas a aumentar salários e Ford inaugurou um ciclo de produção e consumo que trouxe enorme prosperidade ao país.
Como o passado de Ford, crescendo numa fazenda, pesou sobre o futuro inovador da América urbana?
Ford não suportava a rotina rural. Desde menino, ele pensava que o músculo animal era ineficiente e que a energia humana devia ser substituída pela energia mecânica. Aos 13 anos, ele já consertava relógios na área de rural de Michigan, onde morava. Ele não gostava dos animais da fazenda, tomou horror a vacas e declarava, sério: 'A vaca tem de acabar!'. Sua intimidade com máquinas era única. Colocavam 12 carburadores idênticos na sua frente e ele acertava o que funcionava mal. A ironia é que, no fim da vida, ele celebrou num museu a vida rural americana que tinha conseguido destruir mais do que qualquer outro. O museu Greenfield Village, em Michigan, é um primor. Começou com a fazenda de sua infância, mas é também um documento sobre a transição dos Estados Unidos para a modernidade. Ford comprou e instalou lá o laboratório de Thomas Edison e a oficina dos irmãos Wright, pioneiros da aviação.
O sr. acha que Henry Ford compreendeu o impacto que causava na vida dos americanos com o Modelo T?

Não acredito que ele pudesse entender inicialmente as consequências de sua inovação. Em poucos anos, foi rompido o isolamento da vida rural. O carro de produção em massa causou uma transformação profunda na forma como as pessoas se comunicavam. De repente, era possível visitar alguém a 60 quilômetros de distância e não apenas para conduzir negócios. Ford revolucionou o lazer. O carro mudou a noção de privacidade: John Steinbeck gostava de dizer que metade dos bebês americanos nos anos 20 tinham sido concebidos num Modelo T. Não era preciso mais manter várias gerações de uma família sob o mesmo teto. Criaram-se as condições para o estilo de vida suburbano. Tudo o que assumimos como natural na vida moderna do século 21 cresceu da viabilidade da produção do motor de combustão interna há 100 anos.
O sr. acredita que o Ford visionário esbarrou no Ford que não era um pensador profundo?

Sim. Ele teve uma visão e mudou o mundo com seu sistema de produção. Mas o sucesso estrondoso lhe deu a ilusão de que podia fazer tudo. O que levou a várias ideias desastrosas. Um exemplo clássico foi a Fordlândia.
Por que Ford errou tanto na aventura amazônica?

Quanto mais rico e mais bem-sucedido, menos tolerante ele ficava a limitações. Queria controlar todas as etapas de produção, ser dono das minas, das fábricas de vidro. E queria se livrar da dependência da borracha que os britânicos produziam na Ásia. Quando fechou o acordo para a Fordlândia com o governo brasileiro no final da década de 20, Ford já estava cercado de uma claque de assessores obedientes que diziam o que ele queria ouvir. Despachou engenheiros para plantar seringueiras! Com sua mania de pregar e pontificar, queria decidir como os empregados deviam trabalhar e viver. A Fordlândia acabou vendida em 1946 com prejuízo pelo neto dele, Henry Ford II, por US$ 20 milhões, mais ou menos US$ 200 milhões hoje.
Entre as decisões desastrosas, o sr. cita também a maneira como ele descartou colaboradores fundamentais.

Era um padrão estranho e profundamente destrutivo. James Couzens, o homem que ajudou Ford a montar seu império financeiro, foi uma grande perda inicial. Outra perda, com consequências trágicas para a companhia, foi a do imigrante dinamarquês William Knudsen, arquiteto da expansão da Ford na Europa. Quando diziam, é hora de inovar o Modelo T, o consumidor quer um carro mais confortável, um objeto de desejo, Knudsen ofereceu soluções para mudar a produção. Foi logo despachado, em 1921. No ano seguinte, Alfred Sloan, vice-presidente da General Motors, o contratou. O resultado foi o Chevrolet. Knudsen ajudou a GM a usurpar a liderança da Ford. Acho que Ford se livrava das pessoas como se quisesse eliminar testemunhas. Ele não se conformava com a ideia de que teria de mudar e manteve o Modelo T em produção até 1927, por muito mais tempo do que era sensato. Mesmo a introdução, do Ford Modelo A, com seu design elegante e inovações mecânicas, não podia repetir a façanha. O Modelo T já tinha mudado o mundo e o Chevrolet agora disputava a preferência dos consumidores.
Por que o sr. encerra a biografia em 1927, quando termina a produção do Modelo T?

Henry Ford era uma figura bastante incomum. Não consigo pensar num outro grande homem - penso que ele pode ser descrito como tal - cuja vida foi tão claramente partida ao meio. Na primeira metade, ele foi genuinamente produtivo, generoso e afável. Tinha um talento mágico para atrair gente talentosa. Mas, na segunda metade de vida, ele foi horrível. Ele parece ter mudado no curso de dois anos e não conheço ninguém de sua estatura que tenha mudado dessa forma. Mais do que qualquer outra decepção da vida pessoal, acho que a ideia de abandonar o Modelo T o deixou louco. O Modelo T era feio, confiável, simples e, para Ford, era perfeito, um objeto de virtude. Quanto mais ele ouviu dos próximos que era hora de mudar mais ressentido foi ficando.
Ele conseguiu se reabilitar do antissemitismo militante?

Acho que o antissemitismo o manchou para sempre. Ele comprou um jornal local de Michigan, o Dearborn Independent, que publicou uma série de 96 artigos sob o título "O Judeu Internacional". Ford era obcecado pela ideia de que os judeus queriam começar guerras para promover comércio e controlavam as finanças. Foi uma desgraça. O jornal acabou fechando em 1927, sob uma barragem de processos de difamação. Ford se desculpou alegando que não lia o que estava sendo publicado.
A quem o sr. compara Henry Ford entre empresários do século 21?

Em sua pomposa biografia de 1922, Minha Vida e Obra, Ford faz um comentário de passagem que é esclarecedor. Conta que quando estava construindo o quadriciclo experimental, não havia demanda alguma pelo automóvel. 'Claro que nunca há a demanda para um produto que não existe', dizia. Mais uma vez, virava noções ao avesso. Neste caso, a de que a necessidade é a mãe da invenção. Ele introduziu a invenção que criou a necessidade. E acho que nós não tínhamos necessidade alguma de um iPhone ou iPad, não? Ele pode ser assim comparado a Steve Jobs.
 

sexta-feira, 2 de maio de 2014

Getulio Vargas segundo John W. F. Dulles, resenhado por Voltaire Schilling


Getúlio Vargas: duas visões sobre a história do Brasil
Voltaire Schilling 01.05.14.
Vargas (centro) e apoiadores em Itararé, São Paulo, a caminho da Revolução de 30
Foto: Claro Jansson / Wikicommons / Wikimedia
Escrever a biografia política de Getulio Vargas é, guardadas as devidas proporções, descrever boa parte da história brasileira do período 1930/54.
A figura de Vargas vem fascinando há tempos os “brazilianists” cujas pesquisas se intensificaram nos últimos anos. A primeira obra sobre esta marcante figura data de 1942, realizada pelo muito citado Karl Lowenstein (Brazil under Vargas, N. York, Mcmillan) que terminou sendo uma obra isolada por mais de vinte anos. O jejum foi rompido, tendo aparecido ultimamente três obras de importância, as quais procuram lançar luzes sobre a Era de Vargas. O primeiro a ser editado, causando relativo impacto, foi o trabalho de Thomas Skidmore (Brasil: de Getúlio a Castelo) editado pela Saga em 1969. No ano que passou fomos brindados por duas traduções: a de John Wirth (A política de desenvolvimento na Era de Vargas, Rio de Janeiro, Fundação Getúlio Vargas) e a de John W. F.Dulles, filho do falecido secretário de Estado do governo Eisenhower. FosterDulles (Getúlio Vargas: Biografia Política, Rio de Janeiro, Renes) editada com seis anos de atraso. Por sua vez a nossa historiografia não ficou marcando passo. Hélio Silva, como é de conhecimento geral, vem editando desde 1964 uma série de documentos referentes a Era de Vargas, os quais já atingiram o décimo segundo exemplar, muito deles já em segunda edição.
O que se segue é uma analise da obra de John Watson Foster Dulles sob dois aspectos: primeiramente de maneira como ela é apresentada ao leitor, seu arcabouço. Em segundo lugar, faremos uma crítica à visão histórica de Dulles, apontando as omissões intencionais ou ingênuas daí decorrentes.
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A obra é dividida em onze livros titulados de maneira inteligente, não se desviando nenhum do que realmente foi importante na Era de Vargas. É um impressionante painel narrativo. Cada livro por sua vez é dividido em capítulos numerados, cada um possuindo de duas a três páginas e meia de extensão. A bibliografia contida em dezenove páginas atinge quase quatrocentas obras, das quais trinta e uma são de autores americanos. As novidades estão nos memorandos e relatórios enviados pelos diplomatas americanos ao Departamento de Estado, material de difícil acesso ao historiador brasileiro.
O que nos impressiona são as entrevistas, todas elas realizadas no período de 1963 a 65. Um material de fazer inveja. Nada menos de oitenta e três personalidades do mundo brasileiro ou a ele ligadas, como no caso deembaixadores americanos que aqui serviram, são arrolados como testemunhas ou participantes dos principais acontecimentos da Era Vargas.
Em sua relação constam dois ex-presidentes da República: Dutra e Café Filho; quatro governadores ou interventores estaduais: Adhemar de Barros, Cordeiro de Farias, Juraci Magalhães e Benedito Valadares; ministros civis e militares, tais como Francisco Campos, Vasco Leitão da Cunha, Eduardo Gomes, Amauri Kruele Juarez Távora; o ex-chefe de polícia do Estado Novo, Filinto Muller; político como Clemente Mariani, Tancredo Neves, Raul Pilla; o dirigente integralista Plínio Salgado; o líder do PC brasileiro, Luís Carlos Prestes; entre a intelectualidade destacamos Pedro Calmon, Caio Prado Júnior, Hélio Silva, Gilberto Freyre, Austregésilo de Athayde e Tristão de Athayde, assim como Afonso Arinos e Mello Franco. É de se perguntar se falta alguém!
A Visão Histórica De Dulles
Quanto a esta, apresenta os tradicionais defeitos do neo-positivismo (ideologia dos scholars americanos). Aliás, os mesmos defeitos apresentados pelos seguidores da doutrina econômica neoclássica, exacerbadamente criticados por John Galbraith, isto é, de analisar de maneira particular, isoladamente, os fenômenos estruturais da sociedade, sem fazer a devida interação entre eles. John W. F. Dulles é um ortodoxo. Para ele, a política é uma atividade executada por um determinado número de elementos humanos para tal capacitados, fechados em gabinetes, assembléias, palácios governamentais ou em reuniões conspiratórias. Aparentemente estas figuras “eleitas” por algum desígnio não especificado pelo autor representam suas funções tais como os heróis da tragédia grega, isolados em suas dores e poucas alegrias, cabendo ao resto da Nação o papel passivo de um coro que lamenta e aplaude as decisões dos heróis. O sr.Dulles parece ignorar os últimos trabalhos da moderna historiografia em relação às biografias políticas. Não conta com os levantamentos sociais e econômicos que tanto enriqueceram a história nos tempos mais recentes, entre as quais o trabalho de Boris Fausto sobre a Revolução de 1930 serve de modelo.
Para J.W. F. Dulles, a política é entendida no seu sentido vulgar, como “arte de governar” ou, como propunha Maquiavel, de se “manter no poder”. Não aentende como uma atividade muito mais ampla, que transcende a limitação da palavra, isto é, uma atividade onde todos os elementos da sociedade se dizem presentes, e se encontram representados e materializados no político.
Uma biografia política adquire maior dimensão quando consegue revelar o biografado em toda sua amplitude histórica. Que forças representam? A que tendência obedece? Quais as que lhe opõem? Pois todo indivíduo representa uma “categoria” de interesses que atuam na sociedade. Categorias essas “sociais e econômicas” que agem através dele, sobre ele e muitas vezes, como no caso de Vargas, contra ele. O sr. Dulles simplesmente emudece e este respeito. Não sabe aliar, por exemplo, as manifestações do Tenentismo (a revolta do Forte de Copacabana, de 1922, a Revolta de Isidoro em São Paulo em 1924, A coluna Prestes - Miguel Costa no período de 1924/27, e a própria revolução de 1930) a crescente clima de insatisfação reinante entre a classe média brasileira, marginalizada em suas tentativas de escolher “legalmente” seus representantes, no seu desejo de modernizar um país cujas estruturas políticas pouco se haviam alterado desde a deposição de D. Pedro II. Não vê os interesses de uma burguesia nacional, ainda que fraca, mas em ritmo de franco progresso, lutando por protecionismo e mais atenção dos “donos do poder”, a oligarquia “café com leite”.
Podemos dizer que Dulles cria uma imagem simpática de Vargas (afinal, Vargas aliou-se aos EUA na IIGM e cedeu uma base aeronaval para os americanos em Natal, no RGN). O autor louva-lhe a habilidade política, a transigência, a profunda reflexão que antecede qualquer tomada de decisão, o caráter contemporizador, o humanitarismo. Por outro lado, reconhece uma ponta de “maquiavelismo” em seu trato com inimigos, mas principalmente com os amigos (Borges de Medeiros, Flores da Cunha, Lindolfo Collor, João Neves da Fontoura e outros). Associa Vargas ao processo de modernização do país a uma maneira digna e séria no trato da “coisa pública”, característica, aliás, que herdou da tradição castilhista fortemente implantada no Rio Grande do Sul.
Além da crítica a ser feita em sua visão de história, devemos destacar outras falhas ou omissões de ordem estrutural que suspeitamos serem naturais num professor norte-americano. No jogo de interesses, dos quais os Estados Unidos fazem parte de forma leonina, o autor recorre aos despachos e memorandos da Embaixada Americana, fazendo-nos crer ser ela a única representante dos interesses do seu país. Não revela quais outras “categorias” representavam esses interesses, “categorias” pertencentes à própria estrutura de classes da sociedade brasileira.
Para dar ideia dessa omissão no do que ocorre no terreno dos acontecimentos econômicos e sua ação política, dedica o autor duas linhas e meia à crise de 1929 – o crash.
Dulles publicou esta biografia em um tempo que os documentos dos arquivos nacionais estavam bloqueados aos pesquisadores brasileiros. Na época do regime militar (1964-1985) nossa história era mais fácil de ser escrita por um acadêmico estrangeiro do que por um graduado nas nossas universidades

domingo, 9 de junho de 2013

Quem diria? O chefe da quadrilha era tambem um agente de uma ditadura...

Dirceu — A Biografia (livro de Otavio Cabral) e relatos de tortura e morte. Ou: Quem conta a verdade possível é a sociedade
Reinaldo Azevedo, 9/06/2013

Quem conta a verdade possível, em matéria de história, é a sociedade: seus pesquisadores, historiadores, jornalistas, comentadores. Por mais honestos que sejam os narradores sobre os fatos, as narrativas serão necessariamente distintas. E não apenas em razão do estilo de cada um. Haverá aquele a enxergar relação de causa e efeito onde outro vê ou mera correlação ou não mais do que um acidente. Ao ordenar os eventos, reconstruímos a realidade segundo o nosso entendimento. Onde, então, está a verdade — sempre partido do princípio de que todos são fiéis aos fatos, de que não existe mentira deliberada? Está nesse conjunto diverso de vozes e de entendimentos da realidade.
Assim se fazem as coisas nas sociedades livres. Instituir, pois, uma comissão estatal da verdade para definir a “versão oficial” dos fatos é mero exercício de truculência política, de vigarice intelectual e de pilantragem filosófica. A razão é simples: os elementos meramente fáticos, destituídos do contexto que lhes dá sentido, em vez de esclarecer o mundo, servem para obscurecê-lo ainda mais. Quando essa dita “comissão da verdade” pretende instituir uma “moral da história”, aí já estamos no terreno do mais asqueroso oportunismo. Por que essas considerações? O editor de VEJA Otávio Cabral acaba de lançar pela Editora Record o livro “Dirceu — A Biografia” (364 págs; R$ 39,90). Ali se narram verdades que, para escândalo do bom senso, não são do interesse daquela comissão instituída por Dilma Rousseff, embora essa também seja uma história de tortura de morte.
O fio condutor do livro é a vida de José Dirceu, personagem central do maior escândalo político da história brasileira, articulador do que foi muito bem definido por ministros do Supremo como uma tentativa de golpe nas instituições democráticas e republicanas. Ora, uma personagem com esse vulto, com todas as características evidentes do anti-herói, que força a própria estereotipia para entrar na galeria dos vilões, merece ter a vida esmiuçada. E Cabral se dedicou, então, a uma pesquisa detalhada para reconstruir a trajetória do chefão do PT. Como informa Thaís Oyama em reportagem na VEJA desta semana sobre o livro, o autor analisou 15 mil páginas de documentos, distribuídas em nove arquivos, e entrevistou 63 pessoas. É… O Dirceu do mensalão, chamado pela Procuradoria-Geral da República de “chefe de quadrilha”, não se fez por acaso. Cabral decidiu investigar o pântano em que nasceu tal flor e escreveu um livro que, acreditem, traz revelações surpreendentes. Eu diria que Dirceu é ainda mais Dirceu do que se supunha…
Se já conhecíamos, por exemplo, aspectos de sua biografia pessoal que pareciam pouco recomendáveis para consumo humano, o livro se encarrega de evidenciar que Dirceu não enganava pessoas apenas por necessidade; ele também o fazia por gosto. Volto a esse ponto mais tarde. Dentre as muitas revelações do livro, dou destaque a duas porque dizem muito sobre a personagem e também nos remetem à tal “Comissão da Verdade”.
José Dirceu, o homem condenado a 10 anos e 10 meses por corrupção ativa e formação de quadrilha, segundo o depoimento de uma das testemunhas da história, participou do assassinato de um sargento da Polícia Militar de São Paulo, em 1972. A morte ocorreu em uma das ocasiões em que ele voltou do exílio em Cuba — era um protegido de Fidel Castro —, em companhia de outros membros do grupo Molipo (Movimento de Libertação Popular), uma tentativa de movimento armado criado por exilados brasileiros em Cuba, financiado por Fidel. Lembro que o destino do Molipo ainda hoje gera especulações à boca miúda. Todos os dirigentes foram mortos pelas forças de segurança. Só Dirceu escapou.
Há uma outra revelação chocante: Dirceu comandou, segundo relato da época, o sequestro e sessões de maus-tratos de um jovem chamado João Parisi. Leiam trecho do livro:
O soldado da Força Pública Paulo Ribeiro Nunes e o estudante do Mackenzie João Parisi Filho, membro do CCC [Comando de Caça aos Comunistas], descobertos enquanto se passavam por militantes do movimento estudantil, foram levados vendados ao Conjunto Residencial da USP, o Crusp, onde os apartamentos 109, 110 e 111 do bloco G eram utilizados como uma “delegacia informal” da turma de Dirceu. Lá, foram interrogados e mantidos em cárcere privado (…) A Parisi, porém, foi dado tratamento de inimigo de guerra, segundo relato do delegado do DOPS Alcides Cintra Bueno Filho, em documento de 18 de agosto de 1970:
“Por determinação do ex-líder estudantil Jose Dirceu de Oliveira e Silva, concretizou-se o sequestro do então universitário João Parisi Filho, da Universidade Mackenzie. João Parisi Filho foi levado para o Conjunto Residencial da Universidade de São Paulo, onde permaneceu em cárcere privado por vários dias, submetido a sevicias. Nesse conjunto residencial, Parisi foi conduzido vendado e algemado, onde foi submetido a interrogatório, sob ameaça de morte. A vítima permaneceu presa durante dias, em condições desumanas. Após ter passado por esses atos de atrocidade, o estudante Parisi foi conduzido de olhos vendados para a copa do quinto andar do pavilhão G, onde foi trancafiado por uma noite e dois dias, permanecendo nesse local todo esse tempo deitado, com as mãos algemadas e presas ao cano da pia daquela dependência. Nessa situação, foi encontrado por duas empregadas que fazem a limpeza”.
Voltei
Pois é… São apenas duas de muitas histórias um tanto estarrecedoras sobre o Zé. Mais uma vez, temos uma medida do Paraíso na Terra que teria sido o Brasil se “eles” tivessem vencido a batalha. Não por acaso, Dirceu foi tomar lições sobre o que fazer em Cuba — e continua a defender até hoje com unhas e dentes a ditadura que o abrigou. Eis aí algumas contribuições importantes para a verdade sem crachá, para a verdade que não depende de comissão oficial.
Aqui e ali já se contou a história do Dirceu que viveu clandestinamente no Paraná, com o nome de Carlos Henrique Gouveia de Mello, casado com Clara Becker — que é a mãe do hoje político Zeca Dirceu. Muito bem! Veio a Anistia, e o homem não teve dúvida: revelou à mulher que, bem…, ele não era ele e se mandou. Ela ainda tentou salvar o casamento, mas foi inútil. Muitos já tentaram livrar a cara de Dirceu nessa história: “Ele só estava se protegendo e protegendo a sua família…”. É mesmo? Pediu, por acaso, licença à mulher, à mãe do seu filho, para usá-la como disfarce? Não, é claro! A biografia revela agora que Dirceu não enganava apenas por necessidade, mas também por gosto. Tinha uma outra mulher em São Paulo, chamada Miriam Botassi. Clara, assim, era enganada duas vezes: pelo militante político José Dirceu e pelo marido que julgava ter, Carlos Gouveia. Dirceu, como se vê, mudava de nome, mas não de caráter.
Que vida venturosa, não?
No livro, Cabral demonstra que, a partir de um determinado ponto, as trajetórias de Lula e Dirceu se imbricam. As relações nem sempre foram as mais pacíficas, e houve um momento em que o Zé encostou a faca do pescoço de Lula. Em troca do silêncio sobre a forma como o partido captava recursos para campanha, exigiu a presidência do PT e plenos poderes. Levou o que quis.
Eis aí: “Dirceu — A Biografia” ilumina a trajetória de uma figura central na construção e realização do projeto de poder petista. É a verdade sem crachá. É a verdade escrachada.