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terça-feira, 12 de janeiro de 2021

Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer, por vezes despencar, literalmente? - Paulo Roberto de Almeida

Quão baixo, quão fundo, uma sociedade pode descer, por vezes despencar, literalmente?

  

Paulo Roberto de Almeida

(www.pralmeida.orghttp://diplomatizzando.blogspot.com)

[Objetivoreflexões sociológicasfinalidadedebate público]

  

Nós, os incluídos, os supostamente iluminados, esclarecidos e informados, gostamos de pontificar, sobre isto e mais aquilo, sobre o sentido da História e sobre os destinos do mundo. Gostamos de dar lições, sobre isto e aquilo, apreciamos que outros apreciem nossa sapiência, nossas certezas, nossas conclusões inteligentes e nossos julgamentos definitivos, como uma espada de Dâmocles, como a guilhotina certeira, alinhada com a Deusa da Razão. 

Estamos certos de atravessar, neste momento, a mais horrível experiência de governança em 130 anos de República, em 200 anos de Estado independente, em 520 anos de povo, no prelúdio da nação. Não ousamos imaginar que pudéssemos ter um governo tão ruim, tão horroroso, tão inepto, tão ignorante, tão calhorda, tão mentiroso, tão sem noção, sem destino, sem projeto, sem sentido, sem nada. 

Pensávamos, até pouco tempo atrás, que já tínhamos visto tudo, experimentado tudo em matéria de mediocridade, arrogância e desfaçatez, com relação aos princípios elementares da adesão aos valores democráticos e de respeito aos princípios de direitos humanos, ou de simples humanidade. 

 

E, no entanto, mirando retrospectivamente, somos obrigados a reconhecer que, num passado não muito remoto, de horrores e de opressão, sob ditaduras expressas, mesmo a noção de governança, de sentido de direção nas políticas públicas, de construção de estruturas e de patrimônio — inclusive cultural — não se perdeu, em meio aos estertores da liberdade, da luta pela livre expressão, do próprio arbítrio e prepotência do Estado, da arrogância dos donos do poder. No negrume do Estado Novo, na repressão da ditadura militar, tínhamos a opressão dos poderosos, e vinha junto todo um programa de construção de um país, de certa ordem na economia, de certo sentido de direção, de algum esforço institucional, ainda que von Oben, pelo alto, aquela organização prussiana, que colocava o Estado no centro de tudo, e que expressava, de alguma forma, certa racionalidade intrínseca ao projeto que autoritariamente nos era oferecido, ou melhor, imposto.

Racionalidade, ordem, sentido de direção, construção institucional ou material, progresso (à maneira de cada etapa), tudo isso é o que menos temos atualmente. Estamos no meio do pântano, levados a esmo por um psicopata perverso, expostos aos risos do mundo por um outro maluco e suas alucinações exteriores, alguns poucos técnicos setoriais que machucam suas biografias ao servirem uma patota de medíocres e incompetentes, civis e militares, mandarins do Estado ou eleitos oportunistas, todos eles prolongando essa agonia de dois anos, e que pode se prolongar por mais dois, preservando, ou até ampliando, as duas grandes tragédias corrigíveis que temos: a não educação e a corrupção política. Temos outras tragédias, sistêmicas ou estruturais, como as desigualdades sociais, a baixa inovação e uma produtividade também medíocre, todas essas coisas que não serão resolvidas agora, sequer encaminhadas, e que podem ainda ser agravadas, no mar de incultura, de estupidez, de calhordice que nos é oferecido atualmente pelo déspota eleito por uma dessas surpresas da História. 

Acho que nunca imaginamos que poderíamos descer tão baixo no horror da mediocridade política, do retrocesso cultural, na promoção da ignorância, com demonstrações públicas da bestialidade do psicopata perverso que nos desgoverna. 

 

E no entanto, no entanto, se deixarmos para trás nossas experiências de ditaduras tecnocráticas, veremos que ainda não somos, não fomos, talvez não sejamos o povo mais infeliz de um planetinha redondo — mas fragmentado — que já conheceu horrores bem mais bárbaros em diversos episódios de um longo itinerário de ódios, guerras, massacres, tiranias assassinas.

 

Sem remontar muito longe, vamos começar pela destruição do segundo templo do povo judeu, que deu início a uma diáspora que ainda não terminou; vamos continuar por invasões de hordas de bárbaros literais, destruindo impérios e nações dotadas de civilidade; passemos ao empreendimento insano das cruzadas, que não só deram continuidade aos massacres de judeus em seu caminho, como também impuseram à história mundial uma oposição entre cristianismo e islamismo que não precisaria, não deveria ter ocorrido e que prolonga seus péssimos efeitos até a atualidade; e as guerras de religião na Europa, e as conversões forçadas disfarçadas de “catequese” que os europeus “judaico-cristãos” impuseram a maior parte do mundo conquistada e dominada durante cinco séculos?; e o nefando crime da escravidão africana e todos os horrores do tráfico transcontinental durante quatro séculos pelo menos?; os pogroms que continuaram contra o povo judeu, em vários redutos da supostamente humanitária religião cristã; e o novo expansionismo colonialista europeu, que assistiu à primeira criação de campos de concentração por iniciativa da liberal Grã-Bretanha?; o nacionalismo e o racismo ascendentes, que levaram a Europa a uma segunda guerra de trinta anos, arrastando o resto do mundo a uma sanha destruidora jamais vista desde quando exércitos conquistadores simplesmente eliminavam os prisioneiros homens e reduziam as mulheres a servas ou escravas; o fascismo totalitário começou na Itália, mas foi na Alemanha de Goethe e de Wagner que ele foi levado à exacerbação tirânica sob o comando do psicopata Hitler, partindo da Noite dos Cristais para caminhar para os campos de extermínio “científico”; não esquecer tampouco o fascismo expansionista e militarista japonês, que perpetrou barbaridades na China equivalentes ou até piores que os nazistas cometeram na Europa central e oriental; antes e depois disso ainda tivemos  o Gulag soviético com seu cortejo de “eliminados como inimigos do povo e do Partido”, sob as ordens do psicopata do Stalin, logo seguido pelo maoísmo demencial, acumulando mortos aos milhões, no Grande Salto para a frente, ou na Revolução Cultural; vamos falar também dos “killing fields” do Camboja e de massacres balcânicos ou africanos, levando dezenas ou centenas de milhares à morte pelo fuzil ou pelos machetes. 

 

Não, não somos o povo que mais sofreu na Terra, como se pode constatar, depois de relembrar todo esse cortejo de horrores ao longo de dois mil anos de história; mas não precisa ir muito longe: o nazismo hitlerista perpetrou os crimes mais bárbaros de toda a história da humanidade menos de 80 anos atrás, três gerações apenas. Nos anos 90 sérvios e hutus estavam trucidando concidadãos; e no Oriente Médio, na África, em outras paragens, nas favelas do Rio de Janeiro outros crimes bárbaros são cometidos, além do número inaceitável de feminicídios e crimes contra homossexuais e transgêneros. Não, ainda não nos livramos da barbárie, e parece que ainda vai demorar um pouco.  

 

Não querendo ser leniente com a realidade dos retrocessos no Brasil atual, o fato é que atravessamos um mau momento de nossa história, talvez o pior, às vésperas do Bicentenário, que deveria ser um momento de congraçamento, de unidade, de grandes balanços e de projetos para o futuro. Provavelmente, não teremos nada disso: apenas mais divisão, mais política do ódio, mais mediocridade e mais estupidez. Vamos aproveitar, nós, os iluminados, para avaliar nossos próprios erros, nossas desuniões na defesa de picuinhas particularistas, em lugar de consolidar o edifício democrático, a promoção da educação, a luta contra as desigualdades e a promoção dos direitos humanos. 

Num certo sentido, ainda somos um povo de selvagens, com alguns costumes bárbaros — entre os quais eu colocaria a corrupção política, dos políticos e dos donos do dinheiro — e várias outras deficiências culturais. 

Vamos avançando aos trancos e barrancos, como disse uma vez Darcy Ribeiro. Um dia acertamos e deslanchamos para o progresso e o bem-estar da maioria da população. Não sei quando isso virá. O que sei é que se costuma aprender mais com os fracassos do que com os sucessos.

Então, estamos servidos: estamos em meio a um dos maiores, senão o pior dos fracassos de nossa trajetória como povo, como nação e como sociedade. Aproveitemos para melhorar, já que, como dizia Mario de Andrade, o progresso também é uma fatalidade.

 

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 3841: 12 de janeiro de 2021


domingo, 29 de novembro de 2020

Quo Vadis, Argentina? - César Chelala, Alberto Luis Zuppi (The Globalist, November 29, 2020)

 Quo Vadis, Argentina?

Why is Argentina in such a sorry state, economically, politically and socially?



segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Mini-reflexão sobre o estado (pouco) civilizatório do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre o estado (pouco) civilizatório do Brasil

Paulo Roberto de Almeida


Existe uma profunda incompreensão, nos meios políticos e da mídia, quanto ao que representa Bolsonaro em termos de Weltanschauung, ou seja, de concepção do mundo, inclusive para ele próprio, que não é suficientemente inteligente para perceber o que ele mesmo representa, não para a superfície das coisas, essa superestrutura da vida política que aparentemente divide certas lideranças representativas, mas sim o próprio tecido social, a organização da sociedade.

Vamos sair da epiderme das coisas que mobilizam a atenção dos comentaristas conjunturais da atualidade política.

Não se trata apenas de Salles, que ganha mais uma sobrevida no governo e que não tem nada a ver com uma suposta “ala ideológica” do governo: se trata de tudo aquilo que toca no âmago da concepção do mundo de Bolsonaro, e isso concerne saúde, educação, DH, relações exteriores, entre outros componentes da sociedade real, ou seja, vai muito além do mundinho da política ordinária. 

Os militares, não só as FFAA, mas as forças de segurança como um todo, embarcaram na sustentação de um homem que não está destruindo, sem ter consciência do processo, apenas as instituições superficiais da política, mas a própria sociedade. Ele sequer percebe a dimensão de sua ação, pois não possui, nunca possuiu, nenhum “plano de voo” sobre o que pretende para si ou para a sociedade.

O homem não é apenas um poço de contradições, um conjunto de instintos primitivos, que sequer lhe afloram à consciência e não encontram tradução exata no nosso campo analítico, que busca organizar as ações dos homens de maneira racional. Bolsonaro pertence a um outro universo, para o qual não existe cartografia possível ou identificável.

Não existe apenas uma simples “crise da democracia” brasileira ou meramente “das instituições republicanas”, numa concepção superficial do que seja o Brasil, esse mundinho conectado, de um pequeno grupo de privilegiados que somos todos aqueles, nós, privilegiados, que participamos deste tipo de debate político.

O Brasil se aproxima (talvez já esteja) de um estado de anomia social, ou societal (mas que é sobretudo mental), que pode obstar, ou inviabilizar, um processo de desenvolvimento abrangente da sociedade, pois que dificulta o diagnóstico correto dos principais problemas, e consequentemente o estabelecimento de prescrições adequadas para os seus principais problemas, que não são apenas os da organização política da sociedade, e sim o próprio substrato civilizatório.

Alguns “humoristas filosóficos” brincavam com essa característica brasileira, que era a de passar do atraso do passado (escravocrata, desigual) para a decadência do presente, sem nunca ter alcançado a modernidade. Talvez eles tenham razão, mesmo se estamos falando apenas de conceitos basicamente subjetivos como esses de atraso e modernidade. 

A vida real das pessoas, dos milhões de “cidadãos” (o termo pouco se aplica) concretos do Brasil, além e abaixo do mundinho de privilegiados que somos nós, não é tocada pelo frenesi de notícias, de brigas e composições superficiais da política rastaquera que é essa que seguimos, não se move no presente estado de anomia da sociedade brasileira. 

Reproduzindo um poeta-compositor não muito apreciado pelos atuais “donos do poder”, nós brasileiros, “caminhamos cegos pelo continente”, sem perceber que somos subtraídos em “tenebrosas transações”.

Nem o próprio ator principal desse processo tem visão clara ou a consciência do que ele próprio representa, ou do que se passa no Brasil, na região e no mundo. Não é nem um um ator, um boneco, ou um robô manipulado por poderosas forças conspiratórias como querem acreditar alguns idiotas da própria mistificação construída para viver à custa dos demais (como aliás fazem elites dominantes e estratos dirigentes).

O fato é que embarcamos numa “jangada de pedra”, que anda à deriva, sem GPS, sem portulanos, sem sequer saber o que desejamos para o país ou o que queremos para nós próprios. Mas nossos desejos, os desta camada de privilegiados que somos, não têm muito a ver com as necessidades da imensa maioria do povo brasileiro, que só busca sobreviver, e dar uma vida melhor para os filhos. 

Nossa crise civilizatória não terá desfecho rápido, nem soluções fáceis: estas passam por certo grau de avanços de educação e de conhecimento na maioria da população, de certos progressos cívicos que, infelizmente, não fomos capazes de criar, ou prover para a maioria, nos últimos 200 anos de nação independente e de Estado mais ou menos constituído. 

Sorry, mas não será para esta, ou sequer para a próxima geração; vai demorar um pouco mais. Os obstáculos não são técnicos, pois os meios estão à nossa disposição. Eles são sobretudo mentais, de compreensão da realidade, e estes são mais difíceis de superar.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/10/2020

PS: Não creio que tudo isso o que escrevi acima seja apenas o pessimismo de um sociólogo aprendiz; creio que representa o realismo de um dedicado, e longevo, observador da realidade, do Brasil e do mundo. Reflitam vocês também...

domingo, 4 de outubro de 2020

Pequeno manual prático da decadência - Paulo Roberto de Almeida

 Pequeno manual prático da decadência (recomendável em caráter preventivo...) 

Paulo Roberto de Almeida

(pralmeida@mac.comwww.pralmeida.org)

Colaboração a número especial da revista Digesto Econômico

Revista da Associação Comercial de São Paulo.

 

O conceito de decadência está histórica e usualmente associado às imagens – e também às realidades – de declínio econômico, de disfuncionalidade política, de regressão social, de queda relativa nos padrões de vida, de desordem institucional, de involução moral, quando não ao caos gerador de conflitos exacerbados e possível elemento-motor (“gatilho”) do colapso de toda uma sociedade. No plano histórico, é costume citar os precedentes dos impérios romano, bizantino, chinês, otomano ou britânico como exemplos ilustrativos de decadência – processos que, por vezes, se arrastaram durante décadas, quando não séculos –, levando essas sociedades a fases de crise sistêmica ou de estagnação total, precipitando-as em “colapsos” mais ou menos prolongados e ao seu desaparecimento ou, até, à dominação por povos mais dinâmicos e empreendedores, alguns deles, aliás, suplantando os exemplos citados que tinham brilhado em épocas anteriores. Numa perspectiva recente, costuma-se citar a Grã-Bretanha contemporânea, isto é, pós-imperial e pós-Segunda Guerra, e até mesmo a Argentina pós-1930 como exemplos reais e acabados de processos lentos e agônicos de decadência econômica, pelo menos durante algumas décadas. Exemplos eloquentes de decadência certamente não faltam nos livros de história.

No entanto, não é essa a percepção que possam ter tido as sociedades referidas em relação ao seu próprio itinerário histórico, isto é, os povos e protagonistas contemporâneos dos processos gerais descritos sumariamente acima. Muitas vezes, o declínio econômico e a decadência política se dão em meio a extraordinários surtos de vigor artístico e de fervor intelectual, com intensos debates e mobilização social perpassando todas as categorias e classes da sociedade em questão. O estado de “regressão” nem é percebido como tal, uma vez que: a economia consegue ainda produzir em condições quase “normais”; as trocas materiais e os intercâmbios intelectuais se fazem ainda pelos canais habituais; os indicadores objetivos de padrões de vida continuam a apresentar traços de “progresso” – ainda que de recuo relativo na perspectiva internacional ou regional – e que a sociedade ainda não soçobrou na “anomia” e na “desorganização”, a que são normalmente associados essas noções de decadência ou de declínio. 

O fato é que a decadência pode ter elementos difusos de todos esses processos citados acima, mas pode não ser percebida como tal pelos próprios integrantes da sociedade em questão. O sentimento geral dos cidadãos pode ser, simplesmente, de um certo malaise, de um mal-estar vago e indefinido, partilhado por diferentes estratos sociais e percebido como tal por intelectuais, mas raramente expresso de forma direta e cabal nos discursos das autoridades ou traduzidos nas propostas de ação por candidatos alternativos ao poder político. “Entra-se” em decadência muitas vezes sem o saber, como aquele personagem de Molière que fazia prosa involuntariamente. 

Proponho-me, neste curto ensaio analítico, traçar os elementos principais de uma pequena radiografia da decadência, de maneira a subsidiar, talvez, diagnósticos mais precisos de situações concretas que possam preocupar os leitores eventuais deste “manual” de identificação dos sinais precursores de uma decadência anunciada (não necessariamente percebida). Assim, pode-se saber que um país, ou uma sociedade, está em decadência quando: 

 

1. O sentimento de mal-estar se torna generalizado na sociedade, ainda que possa ser difuso.

2. Os avanços econômicos são lentos, ou menores, em relação a outros povos e sociedades.

3. Os progressos sociais são igualmente lentos ou repartidos de maneira desigual.

4. A lei passa a não ser mais respeitada pelos cidadãos ou pelos próprios agentes públicos.

5. As elites se tornam autocentradas, focadas exclusivamente no seu benefício próprio.

6. A corrupção é disseminada nos diversos canais de intermediação dos intercâmbios sociais.

7. Há uma desafeição pelas causas nacionais, com ascensão de corporatismos e particularismos.

8. A cultura da integração na corrente nacional é substituída por reivindicações exclusivistas.

9. A geração corrente não se preocupa com a seguinte, nos planos fiscal, ambiental ou outros.

10. Ocorre a degradação moral ou ética nos costumes, a despeito mesmo de “avanços” materiais.

 

Algumas considerações rápidas sobre cada um dos elementos listados, sumariamente, acima são necessárias, se quisermos que este “minitratado” da decadência possa ser efetivamente utilizado como uma espécie de manual para sua prevenção ou para a eventual correção de curso. Serei, tanto quanto possível, conciso, sem ater-me a exemplos conhecidos em processos concretos, mais ou menos identificados pelo leitor ocasional. 

 

1. Malaise generalizado e difuso na sociedade.

Na verdade, o mal-estar que costuma atingir sociedades e povos em decadência efetiva é mais um resultado dos próprios processos de “involução” já em curso, do que um sinal precursor desse itinerário “regressista”. De fato, o sentimento de incerteza quanto ao futuro costuma perpassar de maneira difusa os diferentes estratos sociais mobilizados nas atividades correntes da sociedade em questão. A literatura consegue captar, antes mesmo de diagnósticos “sociológicos”, essa sensação de desconforto em relação aos padrões vigentes, que é também vista e interpretada nas artes em geral, por meio de peças e demonstrações de “ruptura” em relação às normas sociais comumente aceitas e “consumidas” pelos estratos sociais incluídos nas transações correntes. O sentimento de fin d’une époque, ou de esgotamento de um “ciclo”, é geralmente percebido pelos espíritos mais argutos, mas o desconforto com o “estado reinante” das coisas se dissemina de modo generalizado em camadas mais amplas da sociedade. Ocorre uma desafeição em relação à cultura predominante, mas não se consegue propor ou viabilizar padrões ou modelos alternativos que sejam eficientes ou implementáveis. Os custos da transição para “algo mais racional” são considerados por todos como muito elevados, em vista dos pactos vigentes, e a sociedade se acomoda na resignação e no déjà vu.

 

2. Avanços econômicos lentos, em perspectiva comparada.

A decadência não significa, necessariamente, retrocesso econômico absoluto ou mesmo uma deterioração das condições prevalecentes no plano da organização social da produção. Ao contrário, podem até ocorrer avanços tecnológicos, progressos científicos e melhoras nos padrões vigentes de produção, tendo em vista capacidades técnicas e habilidades gerenciais já acumuladas pela sociedade. Uma sociedade pode avançar, em suas próprias realizações, e mesmo assim ser ultrapassada relativamente por outras, mais dinâmicas, empreendedoras e inovadoras. O declínio relativo é geralmente o resultado de uma queda nos índices de produtividade, a perda progressiva de competitividade, um recuo nos espaços anteriormente ocupados no âmbito internacional e um lento movimento para escalões inferiores em rankings setoriais de classificação de países.

Os processos de divergência entre os povos e sociedades resultam, geralmente, de longas fases de crescimento (ou falta de), mais do que de altas taxas ocasionais de expansão do produto. O desenvolvimento pode ocorrer pari-passu a baixas taxas – mas sustentadas – de crescimento econômico, sendo que expansões rápidas podem ser contrarrestadas por surtos inflacionários ou crises sistêmicas que produzem perdas do produto social e erosão do poder de compra da moeda nacional. O elemento propulsor do processo de desenvolvimento são os ganhos de produtividade, que produzem, no registro histórico, os fenômenos de convergência ou de divergência entre os povos e economias nacionais. As sociedades humanas progrediram muito lentamente durante os milhares de anos de revolução agrícola neolítica e civilizacional-urbana, para conhecer, dois séculos e meio de rápidos progressos nos indicadores de bem-estar a partir da primeira e da segunda revolução industrial. A partir desta, os progressos se tornaram contínuos, autogerados e induzidos pelo próprio avanço científico-tecnológico anterior, configurando aquilo que, em termos marxistas, poderia ser chamado de “modo inventivo de produção”. Este foi, antes de qualquer outra, uma peculiaridade das sociedades ditas “ocidentais”, mas tende a se disseminar ao conjunto do planeta, com o término dos obstáculos políticos ao processo de globalização. 

Nem todas as sociedades conseguem replicar ou reproduzir, mesmo por mimetismo, o padrão de progresso tecnológico do Ocidente desenvolvido. Mas todas elas se encontram, hoje, medianamente dotadas de condições mínimas para fazê-lo, a partir dos progressos dos meios de comunicação e de difusão dos conhecimentos científicos (amplamente disponíveis nos veículos existentes, à diferença do know-how e da tecnologia proprietária, estes bem mais restritos). O fato de uma sociedade recuar economicamente, ainda que de modo relativo, pode ser explicado, tão simplesmente, por sua incapacidade em dotar os seus cidadãos dos requisitos mínimos de ensino formal e de educação elementar, suscetíveis de os converterem em “absorvedores” do saber técnico já disponível universalmente nos canais abertos de difusão de conhecimento. Não se trata aqui, necessariamente, de padrões de ensino pós-graduado ou especializado, mas basicamente da existência de ensino fundamental de boa qualidade para o conjunto dos cidadãos. 

 

3. Distribuição desigual dos lentos progressos sociais alcançados. 

Comportamentos “rentistas”, isto é, apropriação de bens públicos por grupos organizados que têm acesso aos canais oficiais de distribuição de recursos, geram um desestímulo à inovação e à produção pelos agentes econômicos privados. Isso pode ocorrer, e geralmente ocorre, no caso da disponibilidade de abundantes recursos naturais – terras, minérios, commodities primárias – que passam a ser explorados por via de algum tipo de organização estatal, mesmo indireta. Fala-se da “maldição do petróleo”, por exemplo, como um caso típico de ganhos fáceis apropriados de maneira desigual por elites que se organizam para “redistribuir” esses recursos abundantes, o que desvia a atenção dos agentes privados de investimentos em atividades alternativas: toda a atenção passa a ser focada na “captura” da renda disponível na economia nacional. 

Mesmo na ausência de uma fonte abundante de recursos naturais, comportamentos rentistas podem disseminar entre os estratos dominantes – ou dirigentes – na sociedade, se a regulação institucional é feita mais por via estatal do que por meio da própria sociedade. O Estado sempre constituiu um poderoso meio de redistribuição da riqueza social para os grupos que o controlam e manipulam em seu favor. Não há aqui nenhuma prevenção a priori contra o Estado, uma vez que ele é necessário mesmo para criar o laissez-faire, ou seja, lutar contra os trusts e cartéis, assegurar a competição, garantir o cumprimento dos contratos e, de forma geral, defender os direitos de propriedade. Ocorre, porém, que o Estado é também um forte indutor de redistributivismo regressivo, isto é, o recolhimento compulsório de recursos de todos os cidadãos, produtores e consumidores, e o seu “redirecionamento” segundo critérios políticos determinados. 

Em todos os casos de declínio conhecidos, o Estado serviu precisamente para esse tipo de redistribuição perversa dos recursos públicos, gerando o fenômeno conhecido pelos economistas como “crowding-out”, isto é, a captura da poupança privada pelo próprio Estado e pelos rentistas profissionais e sua apropriação pelo próprio Estado (e seus amigos), o que provoca deseconomias de escala e erosão do investimento produtivo. Os grupos politicamente mais bem articulados conseguem acesso aos planejadores e legisladores do orçamento público, deixando ao relento os setores menos organizados. Isso geralmente implica em concentração de renda e ausência de um mercado interno dinâmico. Os exemplos de declínio e de estagnação coincidem, justamente, com o que Veblen chamaria de “consumo conspícuo” das elites, em total indiferença em relação ao conjunto dos cidadãos.

Não se pense, por fim, que tudo se faz em benefício do “grande capital monopolista” e em detrimento da “classe trabalhadora”. Sindicatos são máquinas organizadas para criar escassez de mão-de-obra e para produzir desemprego, atuando em perfeita sincronia – nem sempre funcional, é verdade – com os sindicatos de patrões, com vistas a extorquir recursos do resto da sociedade desorganizada. Viceja, nos casos típicos de declínio econômico prolongado, uma espécie de “pacto perverso”, pelo qual ambos sindicatos entram em conluio – algumas vezes de forma involuntária ou até inconsciente – em favor de seus ganhos respectivos, repassando os custos para o resto da sociedade. A desigualdade distributiva nem sempre é “aristocrática”...

 

4. Não acatamento da lei pelos cidadãos e pelos próprios agentes públicos. 

A decadência, como já afirmado, nem sempre se traduz em pobreza material, ao contrário, pois sociedades decadentes são, igualmente, sistemas de relativa abundância, pelo menos para os privilegiados. Mas, a decadência verdadeira sempre implica em miséria moral, a começar por um sistemático, no começo sutil, depois disseminado, desrespeito à lei e às boas normas de convivência. Uma sociedade não começa a decair com o aumento da delinquência comum e com a expansão da criminalidade de baixa extração, mas justamente com o desprezo pela lei por parte dos poderosos e dos próprios encarregados de manter a ordem. Sociedades patrimonialistas são naturalmente mais propensas a esse tipo de corrupção moral, como evidenciado na trajetória do império otomano, mas nem mesmo sistemas “tecnocráticos” estão imunes a esse tipo de evolução involutiva, se é possível este tipo de trajetória. O império chinês, com seu imenso corpo de mandarins bem treinados, talvez tenha conhecido itinerário semelhante, antes mesmo de o país ser invadido e humilhado pelos imperialistas ocidentais (e depois japoneses). 

O desrespeito à lei, ou mesmo a contravenção pura e simples por parte dos poderosos, constituem o traço mais visível do declínio moral de uma sociedade. Quando as suas elites, em especial o seu corpo dirigente, recorrem a expedientes escusos, quando não a práticas claramente criminosas, para extrair benefícios para si, pode-se constatar que a sociedade caminha célere para a sua decadência. Não se deve, porém, confundir, artifícios ilegais, ou no limite da legalidade, empregados por algumas elites econômicas – como caixa dois, elisão ou evasão fiscal ou ainda pagamentos por fora – como representando necessariamente sinônimo de decadência. O setor produtivo pode ser especialmente competitivo e gerencialmente capaz, apenas que penalizado por um Estado voraz, por dirigentes políticos de comportamento predatório, sendo levado a utilizar-se do recurso a esse tipo de expediente como uma forma de “defesa patrimonial”. É, aliás, o que fazem a maioria dos cidadãos que buscam evadir o fisco, uma vez que adquiriram a consciência de que os impostos pagos diretamente e os tributos recolhidos indiretamente não retornam proporcionalmente sob a forma de serviços públicos. 

A ilegalidade se dissemina paulatinamente na sociedade e se converte em uma “segunda natureza” do cidadão comum e do empresário: ninguém se “arrisca” a ser totalmente honesto, uma vez que isto representaria a inviabilidade do seu negócio ou a “extração compulsória” seria demais onerosa no plano das rendas individuais. Pouco a pouco, a corrupção e a contravenção se instalam em todos os poros da sociedade e ela, sem perceber, caminha rapidamente para o que chamamos de decadência.

 

5. Elites distantes da sociedade e focadas no seu benefício próprio.

Esta é uma outra manifestação do mesmo comportamento descrito acima, apenas que os meios são absolutamente legais, ainda que ilegítimos, e redundam quase sempre nos mesmos efeitos já referenciados no rentismo perverso e no redistributivismo desigual. Responsáveis políticos se ocupam não tanto de legislar para a sociedade, mas em causa própria. Os meios passam a absorver uma proporção crescente dos recursos voltados para determinados fins. Isto geralmente se dá no setor legislativo, mas pode perfeitamente ocorrer nos meios judiciários e, igualmente, em corporações de ofício que se organizam burocraticamente no âmbito do poder executivo. A representação política deixa de constituir um mandato conferido pela sociedade para o desempenho das funções que lhe são próprias para converter-se em um fim em si mesmo.

Esses traços de comportamento não são exclusivos da representação política, embora eles sempre se reproduzam no estamento político. Elites rentistas, de modo geral, desenvolvem essa indiferença em relação à sociedade, cuja simbologia mais famosa – ainda que provavelmente equivocada – é historicamente representada pela frase de Maria Antonieta sobre os brioches que o povo deveria comer, no lugar do pão comum. Elites aristocráticas do ancien Régime, na França e na Rússia czarista, foram em grande medida responsáveis pela desafeição do povo em relação às suas elites, contribuindo para a derrocada dos respectivos regimes políticos ao se operar um claro divórcio entre suas concepções do mundo. O apartheid social, mais até no plano mental do que no âmbito material, costuma ser construído por minorias ativas, nem todas elas privilegiadas, mas sempre elitistas em relação à massa da sociedade. 

Por vezes, uma elite “subversiva” se apossa do poder e passa a exibir os mesmos traços de comportamento que o das elites antes privilegiadas, numa típica reprodução da fábula contida em Animal Farm, segundo a qual “todos são iguais, mas alguns são mais iguais do que outros”. 

 

6. Corrupção disseminada nas transações sociais de maneira geral.

O cimento mais poderoso em todas as sociedades organizadas é a confiança: não só na palavra dada, no plano individual, mas também na moeda, na observância da lei em caráter impessoal, no cumprimento dos contratos e, sobretudo, na certeza da punição em caso de ações “desviantes”. O que mantém o poder de compra de uma moeda, por exemplo, não é tanto a força absoluta de uma economia, mas a confiança de que seu valor de face não será abalado por atos arbitrários das autoridades emissoras, medidas intervencionistas que afetem sua liquidez ou alguma ameaça de confisco, mesmo indireto. 

A incerteza jurídica – por vezes trazida pelos próprios juízes, que não se contentam em interpretar a lei, preferindo criá-la, ou colocá-la a serviço de alguma causa “social” – está na origem do desrespeito aos contratos e, portanto, no aumento dos custos de transação. Setores da sociedade passam a desenvolver formas próprias, geralmente informais, de intercâmbio, que podem englobar um volume crescente de atividades. Sociedades decadentes são, geralmente, sociedades nas quais a informalidade recobre grande parte da população economicamente ativa e uma fração significativa do produto social. Um Estado “extrator” pode também ser o responsável direto pela “expulsão” do mercado formal de agentes econômicos privados que não encontram nenhuma vantagem em se colocar à margem da legalidade, mas que não conseguem se enquadrar nas regras existentes. Na verdade, um cipoal de regulamentos estabelecido justamente para vigiar o cumprimento de uma legislação barroca no plano regulatório. 

A sociedade como um todo passa a se acostumar com a modalidade informal de se completarem as transações e, ao fim e ao cabo, os intercâmbios legais passam a cobrir uma fração cada vez menor do conjunto das trocas sociais. A sociedade de “desconfiança” afeta a todos os participantes do mercado, gerando graus crescentes de anomia e de deterioração dos costumes básicos. A sociedade em questão está “pronta” para aprofundar seu processo de decadência.

 

7. Avanço dos corporatismos e particularismos, em detrimento das “causas nacionais”.

A fragmentação da representação política e social nos diversos corpos constitutivos da sociedade cria uma colcha de retalhos de difícil administração institucional. Para que grandes reformas estruturais se façam – e toda sociedade requer, periodicamente, adaptação às novas condições ambientais externas e às suas próprias transformações internas, demográficas e outras –, as diferentes partes da sociedade precisam estabelecer um pacto de convivência, no qual todos cedem um pouco para que as mudanças possam ser implementadas. A perseguição de objetivos particularistas por grupos sociais organizados, geralmente com vistas a se alcançar metas setoriais e exclusivas, inviabiliza qualquer “projeto nacional” digno desse nome (ainda que essa figura seja antes um mito do que uma realidade, pois “projetos” bem executados geralmente resultam da ação decisiva de uma pequena elite de “iluminados”, quando não de um líder carismático atuando como estadista). 

O fato é que os processos de decadência também são caracterizados pela existência de “projetos fragmentários”, condizentes com o perfil já fortemente sindicalizado dessa sociedade. Não é incomum a representação política passar da dominância de próceres cosmopolitas, da elite, mas dotados de uma visão do mundo não provinciana, para “delegados de categoria”, eleitos por um grupo de interesse restrito (de caráter sindical, setorial ou religioso). O processo legislativo se divide então em uma miríade de demandas particularistas, que esquartejam o orçamento nacional e transformam o planejamento público em uma assemblagem de partes heteróclitas. Congela-se a possibilidade de atuar nas grandes causas, pois o mercado político converte-se num bazar de compra e venda de projetos setoriais e fragmentários. Um indicador fiável dessa tendência é dada por meio de consulta a um calendário-agenda: a sociedade estará tão mais próxima da decadência quanto mais dias do ano são dedicados a homenagear categorias profissionais...

 

8. Grupos sociais particulares pretendem distinguir-se do conjunto da sociedade.

A chamada “identidade nacional” – um conceito difuso e frequentemente mal interpretado – constitui um dos traços mais conspícuos da psicologia de massas. Uma sociedade dinâmica ostenta um forte sentimento de inclusividade e de identificação com os símbolos nacionais, sejam eles realidades históricas tangíveis, sejam eles simples mitos criados para fortalecer o processo de Nation building. Em qualquer hipótese, o sentimento de pertencimento – status de appartenance ou membership – a um corpo social ou humano relativamente homogêneo é um poderoso cimento da identidade nacional, o que não impede, obviamente, particularidades regionais, traços étnicos ou especificidades culturais próprias a sociedades complexas, racialmente diversas e dotadas de origens “multinacionais”. O ideal de toda sociedade integrada e orgulhosa de sê-lo é, justamente, conseguir passar do estágio simplesmente “multinacional” para o de “sociedade multirracial”, o que deveria ser o objetivo de toda comunidade inclusiva, uma vez que tal característica destrói as próprias bases de qualquer manifestação de racismo ou apartheid. 

A desafeição em relação à fusão dos particularismos raciais ou culturais no mainstream social e humano nacional enfraquece a noção de identidade nacional e reforça a noção artificial de aparteísmo. Este tipo de divisor precisa ser construído politicamente, uma vez que se adota como suposto básico a unidade fundamental do gênero humano. A divisão é, geralmente, obra de ativistas e militantes de uma causa que se julga legítima, cujas raízes encontram fundamentação histórica em opressões seculares, que se pretende transplantar para o presente, como forma de preservar antigas particularidades raciais, linguísticas ou religiosas, que já estavam prontas a se fundir no poderoso molde nacional. A conformação política de uma cultura distinta da nacional reforça manifestações de racismo ao contrário, pois que as propostas são geralmente feitas para eliminar supostos focos de “racismo”. O apartheid também pode ser construído por minorias...

 

9. Irresponsabilidade Inter geracional, nos terrenos fiscal ou ambiental, entre outros.

O desejo de preservar o status quo, ou a inconsciência quanto à constante necessidade de ajustes e adaptações às condições “ambientais”, nacionais ou internacionais, sempre cambiantes, fazem com que gerações do presente eventualmente atuem de maneira irresponsável em relação àquelas que as sucederão. Historicamente, o problema sempre esteve associado à depredação do meio ambiente e à extinção de espécies animais, alterando o equilíbrio natural e ameaçando a sustentabilidade de sistemas econômicos inteiros. Contemporaneamente, a questão tende a se revestir de características econômicas bem marcadas, tendo a ver com a trajetória avassaladora do Estado moderno e sua voracidade fiscal, não em benefício próprio, obviamente, uma vez que o Estado é uma entidade impessoal, mas em favor de grupos ou categorias dispondo de condições de acesso e de manipulação dos mecanismos de intervenção pública. 

Nos casos mais graves, o conjunto da sociedade pode atuar de maneira irresponsável, ao sustentar escolhas que representam uma clara preferência pelo bem-estar presente, em detrimento do amanhã. Seja nos esquemas de previdência social, seja nas instituições educacionais, ou ainda em matéria de déficits orçamentários e dívida pública, opções erradas e a visão imediatista dos responsáveis políticos, sustentados pela inconsciência da maioria, criam pesadas hipotecas de médio e longo prazo que deverão, em algum momento, ser resgatadas pelos sucessores, aqui entendidos como o conjunto da sociedade de uma ou duas gerações mais à frente. O declínio pode até não ser visível no próprio momento das decisões, mas o que se está fazendo, na verdade, é “contratar” a decadência futura. 

 

10. Degradação ética e moral, independentemente de “progressos” técnicos.

Edward Gibbon, em seu justamente celebrado História do Declínio e Queda do Império Romano, tende a ver a decadência de Roma como o resultado da perda de “valores cívicos” por parte dos cidadãos do império, a começar pelos patrícios, que delegaram aos bárbaros tarefas que eles deveriam ter assumido diretamente. Ele também atacou a influência do cristianismo, como possível fator de afastamento do antigo espírito marcial e guerreiro, que tinha feito, no início, o sucesso da república e do império. Seja como for, a perda de objetivos claros quanto ao futuro, certa resignação em face das dificuldades do presente e a busca de prazeres imediatos em lugar da frugalidade produtiva e empreendedora podem ser sinais precursores da decadência. 

Curiosamente, nenhum dos exemplos históricos tidos como ilustrativos ou emblemáticos desse tipo de processo pode ser considerado um insucesso absoluto na cultura ou nas artes. O vigor da produção cultural continua a todo vapor no momento mesmo em que essas sociedades passam a enfrentar problemas na economia e na inovação. Não há um elemento singular ou único que “anuncie” a decadência, mas um conjunto de comportamentos sociais e de reações que indica forte deterioração da solidariedade social e uma crescente anomia em relação aos valores básicos da sociedade. A falta de confiança nas instituições políticas e a forte desconfiança das motivações de outros grupos sociais fazem com que líderes e liderados não mais se sintam comprometidos com o mesmo conjunto de valores, passando a ocorrer manifestações de introversão e de egoísmo que logo superam a identificação com a pátria e a nação. 

 

Em síntese, existe um “espírito” de decadência quando os setores produtivos, em especial os empresários mais politicamente ativos, se mostram resignados ante a presença avassaladora do Estado, que lhes tolhe os movimentos, impõe regras e lhes retira a substância da atividade econômica, que é o lucro e os excedentes para investir. Existe decadência quando os intelectuais e os universitários, de uma forma geral, se conformam ante o culto à ignorância exibido por certos grupos sociais ou líderes supostamente carismáticos ou “salvacionistas”. Existe decadência quando autoridades nacionais, a começar pelos encarregados da preservação da ordem jurídica e institucional, deixam de lado suas obrigações profissionais para cuidar de prosaicos interesses pessoais, pecuniários antes de tudo. Existe decadência quando o cidadão comum não vê qualquer motivo para preservar o patrimônio coletivo, demonstrando total inconsciência quanto ao dever de respeitar a herança das gerações precedentes e a necessidade de repassar às que seguirão a sua própria um ambiente melhor do que aquele recebido dos ancestrais. 

Em suma, os sinais materiais, ou externos, da decadência nem sempre são os que contam na avaliação dos “progressos” dessa inacreditável marcha para trás na jornada das sociedades. A insensatez quanto aos rumos da história também se manifesta, antes de tudo, por uma pura e simples inconsciência. Manuais práticos de decadência podem ser um preventivo útil na inversão da trajetória. Basta saber consultá-los...

 

Paulo Roberto de Almeida

Brasília, 31 janeiro 2007.


quinta-feira, 4 de junho de 2020

G7: liderança americana ficou no passado - Foreign Policy

ANALYSIS

U.S. Allies Look on in Dismay While U.S. Rivals Rejoice

Trump’s failure to convene a G-7 meeting is only the latest blow to America’s crumbling prestige in the face of nationwide unrest.

Police officers push back protesters decrying police brutality near the White House
Police officers push back protesters decrying police brutality near the White House on June 1. JOSE LUIS MAGANA/AFP/GETTY IMAGES

When German Chancellor Angela Merkel last week declined an invitation to join U.S. President Donald Trump in Washington for a star-crossed meeting of the G-7, and then British Prime Minister Boris Johnson rebuffed Trump’s plans to bring Russia back into the group, it underscored how profoundly U.S. allies and partners have soured on American leadership amid a mishandled pandemic and a violent crackdown on protesters.
Merkel’s rebuff, like similar chidings from other German and European officials aghast at the scenes of White House-encouraged violence they’ve watched over the last week, is just the latest indicator that U.S. allies are fed up with an America they see drifting closer to authoritarianism and away from the core values Washington had always preached.

U.S. rivals, meanwhile, are rejoicing. “It’s kind of a feast for the Chinese Communist Party, and for the Kremlin, and all those other strongmen that are really insecure,” said Sascha Lohmann, an expert on U.S. domestic and foreign policy at the German Institute for International and Security Affairs. China has gleefully used U.S. racial tensions, protests, and violent crackdowns to push back against U.S. criticism. Iran’s foreign ministry spokesman offered sympathy to Americans standing up to “state oppression.” Even Venezuela is piling on.
“In terms of how this plays out, it’s kind of a devastating blow to the image of the United States,” Lohmann added.
All in all, the scenes broadcast around the world over the past week of runaway police brutality, tear-gassed photo ops, unchecked assaults on reporters, and U.S. soldiers and paramilitary units taking over the streets of Washington and barricading the White House add up to a huge blow to the moral credibility of the United States. For decades, American diplomats were able to more or less convincingly cajole other countries to respect ideas like the freedom of the press and the right to peaceful protests. Now, such messages, coming on the heels of U.S. abdication of the very multilateral order it helped build, increasingly fall on deaf ears.
“What happened over the last week is perhaps a catalyst in this loss of confidence in the United States, and its traditional role as the ‘beacon of hope’ and all those shiny concepts,” Lohmann said. For many tempted to dismiss the Trump years as an aberration that doesn’t reflect the real America, the latest unraveling is opening some eyes, he said.
“There’s a reality check going on among European audiences that, for much of the last decade, we were living with a highly idealized picture of the United States,” he said.
Of course, there’s a certain blind spot in Europe’s reaction to the latest breakdown in American society. While a European Union commissioner claimed that such scenes of police brutality that prompted the ongoing protests couldn’t happen in Europe, they already have. In just the past year, Spanish security forces have cracked down hard on pro-independence Catalans, and French riot police ferociously thumped yellow vest protests.
But, without a doubt, the past week has clearly opened the United States up to charges of hypocrisy that countries such as Iran, China, and Russia—frequent targets of U.S. moral scoldings—have eagerly seized upon. That makes it that much harder for U.S. diplomats to condemn China’s crackdown on protesters in Hong Kong or call out Iranian excesses in battling its own protesters, or criticize Hungary’s steady erosion of the rule of law, or Myanmar’s documented brutality in battling its own minority populations. The United States has spent decades vocally condemning China’s brutal crackdown on pro-democracy protesters in Tiananmen Square, which happened 31 years ago Thursday. Yet this week, a leading Republican senator, Tom Cotton of Arkansas, called for U.S. troops to be unleashed on U.S. protesters in the name of restoring “law and order,” neatly echoing Beijing’s own line.
Granted, for many in Germany and across Europe, it’s hardly just the last week that has dashed illusions. Many Trump administration actions, from attacking NATO and levying tariffs on close allies to pulling out of important international organizations like the World Trade Organization and the World Health Organization, already undermined European confidence in U.S. leadership. 
In France, the American carnage over the past week is just the culmination of years of disappointment with the United States. In 2003, France and the United States had an acrimonious split over the Iraq War, and relations were further soured by U.S. abuses during its anti-terrorism campaigns. While hopes were high during the Barack Obama years, U.S. inaction in Syria particularly disappointed French policymakers, who felt let down in a core interest of theirs. And then came Trump.

domingo, 17 de maio de 2020

O declínio de uma nação - Paulo Roberto de Almeida


O declínio de uma nação 

Paulo Roberto de Almeida


Existem momentos, na vida de uma nação— que podem ser simples conjunturas, ou delongar-se num inteiro processo histórico —, nos quais a quase totalidade da classe dominante (que inclui dirigentes políticos, grandes capitalistas da cidade e do campo, banqueiros, líderes de sindicatos de patrões e de empregados, magistrados, militares de alta patente, “bispos” e pastores, intelequituais) resolve embarcar na “nau dos insensatos”, parodiando Barbara Tuchman.
Aí não tem jeito: é declínio na certa, que pode ser temporário ou uma decadência de longa duração.
Vejam por exemplo a Argentina: ela decai há mais ou menos 90 anos. Agora chegou a nossa vez de decair um pouco (ou muito).
Só tem uma coisa: lá atrás, a Argentina era cinco vezes mais rica do que o Brasil e tinha 70% do PIB per capita americano; atualmente, ela só é um pouquinho mais rica do que nós, mas continua decaindo.
Chegou a nossa vez de fazer-lhe companhia no declínio.
Não fiquem muito tristes: nossos netos, ou bisnetos, vão reverter um pouco a coisa.
O país não vai acabar: só continuaremos pobres, desiguais e deseducados por mais quatro ou cinco décadas.
De quem é a culpa?
Daquela classe dominante medíocre, e dividida, mas que embarcou junta na nau dos insensatos. Na verdade, já começamos a viagem lá atrás; só paramos num porto para recolher um novo capitão, porque o anterior foi preso por roubar os mantimentos do navio. O novo prometeu consertar os estragos, mas ainda não se percebeu que se trata de um psicopata estúpido.
Por enquanto, la nave va...

Paulo Roberto de Almeida
17/05/2020