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terça-feira, 22 de agosto de 2023

Carisma vs instituições: os impasses - Paulo Roberto de Almeida

 Carisma vs instituições: os impasses

Paulo Roberto de Almeida

Nota sobre os impasses criados por lideranças personalistas para diferentes países.


De vez em quando, países inteiros são sequestrados por fortes personalidades, que desviam o curso de políticas domésticas e externas, que deveriam focar o progresso econômico e social, mas acabam criando impasses na trajetória do país. Exemplos de distorções políticas abundam, no Brasil e no exterior.

Quais seriam os beneficios concretos, para o Brasil e os brasileiros, da participação do país num projeto que pretende criar uma “nova ordem mundial” não definida claramente, mas fortemente orientada pelos interesses nacionais de duas grandes autocracias? Propensões pessoais estão se substituindo a análises ponderadas em torno de escolhas relevantes para o futuro da nação. 

Os caminhos erráticos de alguns dos “parceiros” do Brasil deveriam oferecer motivo de reflexão aos dirigentes: o que dizer, por exemplo, das trajetórias respectivas da Argentina e da Rússia nas últimas décadas?

O próprio Brasil tem enfrentado bloqueios em seu processo de desenvolvimento, não apenas devido a barreiras institucionais, mas também a impulsos pessoais, com escassa discussão exaustiva sobre as orientações adotadas. 

Em todos esses casos, o personalismo de dirigentes nacionais se sobrepôs a uma trajetória alternativa que seria de ordem mais colegiada, característica de sistemas parlamentaristas ou de presidencialismo congressual, como nos EUA.

O Brasil parece embarcar novamente em aventuras de cunho personalista de duvidoso e incerto resultado positivo para o progresso da nação. Até quando?

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 22/08/2023


domingo, 14 de novembro de 2021

O que trava o Brasil? - Paulo Roberto de Almeida

 Sobre o que trava o Brasil

Esta é a pergunta: o que impede e sempre impediu o Brasil de avançar? A ignorância política e o autismo econômico das elites (as que contam, isto é, as do dinheiro, não as da inteligência). Em resumo, a absoluta mediocridade das elites dominantes e dirigentes, ou seja, as que sempre mandaram no Brasil (com algumas poucas exceções). 

Tem sido assim desde 1822, passando por 1889, 1930, 1964, 1988 (pois é), 2018.

Nada, portanto, de que possamos nos orgulhar em 2022. 

Pelo menos, vamos emergir de um pesadelo: o de ter uma cavalgadura na PR!

Não parece nada, e de fato não é nada, mas é quase tudo: é apenas o bode na sala, que será posto para fora, o que vai desanuviar e desempestar o ambiente.

Voltaremos, assim, ao que sempre foi nosso: à mediocridade e ao autismo das elites. Frustrados?

Não pensem que seria muito melhor se tivéssemos tido supostas inteligências no comando do país: não se esqueçam que supremos desastres na vida de certos países foram provocados por alguns intelectuais até reconhecidos e homenageados por gerações. 

Rousseau, Marx, Lênin, Stalin, Hitler, Mao. 

Esses caras, na teoria ou na prática, foram responsáveis por gigantescas perdas humanas e materiais, que infelicitaram povos e nações por duas ou três gerações. 

Mas mesmo “boas almas” — Cristo, Buda, Gandhi, Churchill — não estiveram isentos  de falhas ou ficaram imunes a desvios de doutrinas por parte de discípulos ingênuos, equivocados ou fundamentalistas, que também provocaram perdas involuntárias.

As misérias humanas têm muitas causas, e sua superação nunca foi retilínea e segura. 

Estamos sempre aprendendo. Como diz um velho ditado: errar é humano, persistir no erro é desumano! 

Espero, sinceramente, que não persistamos no erro em 2022.

Saudações a todos!

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 14/11/2021

terça-feira, 12 de outubro de 2021

Sobre os atuais impasses do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Sobre os atuais impasses do Brasil 

Paulo Roberto de Almeida

Não me surpreende a existência de loucos que se distinguem na paisagem, e que por isso mesmo atraem os demais (parece que são muitos) desequilibrados que andavam dispersos na sociedade. Essa combinação só aparece nas sociedades em crise, quando a classe média— pois é ela quem determina tudo — resolve se agarrar a alguma solução fora dos padrões para ver se isso estanca o mal desatado pela crise. 

O que me surpreende é a existência de tantas pessoas dotadas de educação, de informação e até de padrões razoáveis de vida que se agarram nessa pretensa “boia salvadora” para salvar a si e ao país de ameaças indefinidas que foram exploradas pelo louco oportunista que subiu na onda da revolta contra a situação.

A existência de tantos bolsonaristas — ou seja, pessoas que incensam, seguem e defendem um psicopata mentiroso, medíocre e perverso — é um fenômeno surpreendente para quem achava, como eu, que o Brasil já tinha chegado a um grau razoável de desenvolvimento para não se enredar novamente nessas fraudes políticas que se abatem sobre o país a intervalos regulares.

E parece que o ciclo não acabou: a sociedade está novamente disposta a eleger um demagogo mentiroso que sempre esteve mais para chefe de gangue do que para estadista reformador. É o que deduzo das pesquisas eleitorais.

Será que tenho de chegar à conclusão de que a deseducação estrutural, a ignorância pura e simples e a total falta de senso — o que junta no mesmo saco bolsonaristas e lulistas, explorados pelos oportunistas de plantão—  estão muito mais presentes na sociedade do que se poderia imaginar?

Olhando para cima, é exatamente o que se assiste na maior potência econômica do planeta, praticamente paralisada por antivacinais e trumpistas true believers. Como uma sociedade supostamente desenvolvida pode emburrecer de repente?

No nosso caso, o fenômeno pode também ser atribuído à existência de elites predatórias que se apoiam em mavericks eleitorais para extrairem ainda mais recurso coletivos. Foi exatamente o que sucedeu com a emergência de lulistas e bolsonaristas, sendo que o segundo “salvador” é, na verdade, um destruidor de instituições, como de quaisquer outros padrões civilizatórios. 

Lula pertence à categoria dos populistas tradicionais da AL, que mantêm seus países num atraso que eles não merecem. Já Bolsonaro pertence ao pequeno grupo de psicopatas capazes de destruir um país na perseguição de miragens impossíveis, como foi o caso de um Hitler. Mas o Brasil não é obviamente uma potência econômica para destruir junto outros países: o mal fica contido nas fronteiras nacionais.

Lula é um Perón de botequim. Bolsonaro é apenas uma contrafação medíocre e estúpida de um Hitler de circo. Pena que tantos militares e capitalistas o apoiaram, por puro oportunismo, como também o fazem os politicos profissionais. Essas três categorias de atores políticos são os verdadeiros responsáveis pela desgraça do Brasil atual, e são eles que podem trazer de volta o demagogo mafioso que promete salvar o Brasil da atual desgraça. 

Estou quase aderindo à falsa teoria de Marcel Eliade sobre o “eterno retorno”. Ela é manifestamente equivocada, mas cabe recordar que todas as pessoas nascem exatamente com a mesma dotação primária, ou seja: 0 km em matéria de conhecimento acumulado, tudo precisa ser aprendido a partir de zero. O que significa que todos os pré-conceitos sociais, equívocos políticos e a ignorância consolidada numa sociedade deseducada como a brasileira vão florescer novamente em momentos de crise como os que já vivemos de forma recorrente desde nossa formação como Estado independente.

De fato, não se pode pedir que as pessoas venham ao mundo educadas, inteligentes e sensatas. Elas são o que o seu background familiar e social-ambiental permitiu que elas fossem, e o nosso manifestamente não é conducente a padrões avançados de desenvolvimento econômico e social, a níveis razoáveis de bem-estar material para aqueles membros da sociedade mais desprovidos pela sorte. 

O fato é que o Brasil é, pelo estoque já razoável de acúmulo de riqueza material obtido ao longo do século XX, um país desproporcionalmente dotado de muitos pobres, milhões deles, e de um contingente insuportavelmente alto de miseráveis, de destituídos pela “sorte”. Esse imenso “exército de miseráveis”, de andrajosos e de ignorantes eu atribuo ao egoísmo e à mediocridade das elites, todas elas, que primeiro preservaram o tráfico e o regime escravo, depois a não educação das massas e a não reforma agrária, em seguida o patrimonialismo e a corrupção política e finalmente a estupidez de acreditarem que o monstro metafísico do Estado seria capaz de, no lugar de uma sociedade livre, resolver os problemas da miséria e da desigualdade. 

Atenção: o Brasil não é pobre porque é desigual; ele é desigual porque é pobre, ou porque tem muitos pobres, um excesso de miseráveis. O problema principal do Brasil não é a desigualdade, é a pobreza. E esta vem da não educação.

Este é o crime, imperdoável, das nossas elites, e estas não são apenas os “ricos”. Sindicatos, magistrados, políticos profissionais, até acadêmicos, entram nessa conta. Os pobres não têm culpa pela nossa pobreza material. Esta é produzida pela indigência mental de nossas elites. A miséria é sobretudo intelectual, ou, como gostava de dizer Millor Fernandes, ela é intelequitual.

Que os atuais membros das elites mais dotadas de poder — capitalistas, militares e políticos— sejam incapazes de se colocar de acordo sobre um programa imediato de superação de nossos atuais impasses e, depois, sobre um programa razoável de desenvolvimento econômico e social, é um testemunho flagrante dessa indigência mental e da mediocridade intelequitual que as caracterizam. 

Não vejo nenhum impulso vigoroso no horizonte de possibilidades imediatas, apenas mais estagnação e mediocridade, ou seja, perspectivas exasperantemente lentas de melhorias necessárias. Ricos e classes médias vão continuar se safando da maneira habitual: os primeiros exportando seus capitais e seus filhos para paragens mais amenas e as segundas dando um duro danado para não refluirem para a pobreza das classes subalternas.

Quanto aos pobres e miseráveis, estes continuaram a soçobrar, a perecer nos escombros produzidos pelo egoísmo e mediocridade daquelas elites.

Sorry pelo excesso de realismo.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 12/10/2021

sexta-feira, 13 de novembro de 2020

Mini-reflexão sobre os impasses do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Quanto falta para trocarmos o caminho do declínio pela vereda da reconstrução?

Paulo Roberto de Almeida 

Populistas surgem em momentos de stress político ou de crise econômica, em quaisquer países. 

Foi o caso do Brasil entre 2013 e 2018: a resposta não poderia ter sido pior, pois se elegeu um despreparado, fanfarrão, mentiroso e perverso. 

Existem remédios na democracia para se corrigir o equívoco, embora a chave esteja no Congresso. 

É uma verdade elementar que o principal problema brasileiro é a corrupção política, mas ademais da ignorância geral do eleitorado brasileiro (suscetível, portanto, de votar por demagogos e populistas), um dos lados do problema está no comportamento predatório das elites, desde sempre, sobretudo dos que financiam políticos corruptos. 

Não será fácil resolver esse problema e poucas sociedades o fizeram de modo consensual por reformas progressivas. Muitas apenas depois de grandes crises ou declínios prolongados, como parece ser o caso da China. 

A Argentina, ao nosso lado, ainda não o conseguiu. O Brasil ainda não tomou consciência de seus problemas principais e não existe diagnóstico consensual, a despeito de bons estudos a respeito deles: talvez estejamos, por enquanto, mais do lado da Argentina do que da China. 

O atraso se mede em gerações perdidas: no nosso caso podem ser duas ou mais. 

Reflitam...

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 13/11/2020

Addendum:

No ciclo normal da política, presidentes fracassados como Trump e Bolsonaro seriam simplesmente destinados ao limbo, ao “oblivion” da sociedade.

Ocorre que personalidades perversas e egocêntricas, próximas do comportamento psicopata, não se convencem do seu fracasso.

Daí que se fala em trumpismo ou bolsonarismo, que para mim são equívocos conceituais de jornalistas e de cientistas políticos, pois tais fenômenos não correspondem a nenhuma formulação coerente ou racional de alguma doutrina ou movimento organizado, apenas a frustrações e “grievances” reais com problemas sociais não resolvidos pelo sistema político governamental.

Em síntese, é a falta de estadistas na sociedade, que é a sua incapacidade de encontrar uma liderança capaz de realizar a síntese desses problemas, oferecer um diagnóstico lúcido da situação e expor claramente à sociedade o que fazer.

Não é facil, pois a maioria do povo quer respostas simples a problemas complexos, ou mais exatamente que outros, geralmente o Estado e suas instituições, resolvam esses problemas.

Este é o nó dos problemas das sociedades, que só se resolvem, a termo, com boa educação. Esta demora, e pode não chegar, pois como sabemos todos nascemos como tábula rasa.

Desculpem o realismo.

Paulo Roberto de Almeida

segunda-feira, 26 de outubro de 2020

Mini-reflexão sobre o estado (pouco) civilizatório do Brasil - Paulo Roberto de Almeida

 Mini-reflexão sobre o estado (pouco) civilizatório do Brasil

Paulo Roberto de Almeida


Existe uma profunda incompreensão, nos meios políticos e da mídia, quanto ao que representa Bolsonaro em termos de Weltanschauung, ou seja, de concepção do mundo, inclusive para ele próprio, que não é suficientemente inteligente para perceber o que ele mesmo representa, não para a superfície das coisas, essa superestrutura da vida política que aparentemente divide certas lideranças representativas, mas sim o próprio tecido social, a organização da sociedade.

Vamos sair da epiderme das coisas que mobilizam a atenção dos comentaristas conjunturais da atualidade política.

Não se trata apenas de Salles, que ganha mais uma sobrevida no governo e que não tem nada a ver com uma suposta “ala ideológica” do governo: se trata de tudo aquilo que toca no âmago da concepção do mundo de Bolsonaro, e isso concerne saúde, educação, DH, relações exteriores, entre outros componentes da sociedade real, ou seja, vai muito além do mundinho da política ordinária. 

Os militares, não só as FFAA, mas as forças de segurança como um todo, embarcaram na sustentação de um homem que não está destruindo, sem ter consciência do processo, apenas as instituições superficiais da política, mas a própria sociedade. Ele sequer percebe a dimensão de sua ação, pois não possui, nunca possuiu, nenhum “plano de voo” sobre o que pretende para si ou para a sociedade.

O homem não é apenas um poço de contradições, um conjunto de instintos primitivos, que sequer lhe afloram à consciência e não encontram tradução exata no nosso campo analítico, que busca organizar as ações dos homens de maneira racional. Bolsonaro pertence a um outro universo, para o qual não existe cartografia possível ou identificável.

Não existe apenas uma simples “crise da democracia” brasileira ou meramente “das instituições republicanas”, numa concepção superficial do que seja o Brasil, esse mundinho conectado, de um pequeno grupo de privilegiados que somos todos aqueles, nós, privilegiados, que participamos deste tipo de debate político.

O Brasil se aproxima (talvez já esteja) de um estado de anomia social, ou societal (mas que é sobretudo mental), que pode obstar, ou inviabilizar, um processo de desenvolvimento abrangente da sociedade, pois que dificulta o diagnóstico correto dos principais problemas, e consequentemente o estabelecimento de prescrições adequadas para os seus principais problemas, que não são apenas os da organização política da sociedade, e sim o próprio substrato civilizatório.

Alguns “humoristas filosóficos” brincavam com essa característica brasileira, que era a de passar do atraso do passado (escravocrata, desigual) para a decadência do presente, sem nunca ter alcançado a modernidade. Talvez eles tenham razão, mesmo se estamos falando apenas de conceitos basicamente subjetivos como esses de atraso e modernidade. 

A vida real das pessoas, dos milhões de “cidadãos” (o termo pouco se aplica) concretos do Brasil, além e abaixo do mundinho de privilegiados que somos nós, não é tocada pelo frenesi de notícias, de brigas e composições superficiais da política rastaquera que é essa que seguimos, não se move no presente estado de anomia da sociedade brasileira. 

Reproduzindo um poeta-compositor não muito apreciado pelos atuais “donos do poder”, nós brasileiros, “caminhamos cegos pelo continente”, sem perceber que somos subtraídos em “tenebrosas transações”.

Nem o próprio ator principal desse processo tem visão clara ou a consciência do que ele próprio representa, ou do que se passa no Brasil, na região e no mundo. Não é nem um um ator, um boneco, ou um robô manipulado por poderosas forças conspiratórias como querem acreditar alguns idiotas da própria mistificação construída para viver à custa dos demais (como aliás fazem elites dominantes e estratos dirigentes).

O fato é que embarcamos numa “jangada de pedra”, que anda à deriva, sem GPS, sem portulanos, sem sequer saber o que desejamos para o país ou o que queremos para nós próprios. Mas nossos desejos, os desta camada de privilegiados que somos, não têm muito a ver com as necessidades da imensa maioria do povo brasileiro, que só busca sobreviver, e dar uma vida melhor para os filhos. 

Nossa crise civilizatória não terá desfecho rápido, nem soluções fáceis: estas passam por certo grau de avanços de educação e de conhecimento na maioria da população, de certos progressos cívicos que, infelizmente, não fomos capazes de criar, ou prover para a maioria, nos últimos 200 anos de nação independente e de Estado mais ou menos constituído. 

Sorry, mas não será para esta, ou sequer para a próxima geração; vai demorar um pouco mais. Os obstáculos não são técnicos, pois os meios estão à nossa disposição. Eles são sobretudo mentais, de compreensão da realidade, e estes são mais difíceis de superar.

Paulo Roberto de Almeida 

Brasília, 26/10/2020

PS: Não creio que tudo isso o que escrevi acima seja apenas o pessimismo de um sociólogo aprendiz; creio que representa o realismo de um dedicado, e longevo, observador da realidade, do Brasil e do mundo. Reflitam vocês também...

sexta-feira, 30 de outubro de 2009

1454) Impasses da Rodada Doha

O questionário que figura abaixo me foi submetido em julho de 2008, e se destinava a alimentar um Trabalho de Conclusão de Curso para estudante do CEABE-FGV-SP.
Verifico agora, que passados 15 meses das respostas fornecidas, pouca coisa mudou no cenário das negociações comerciais multilaterais. Resolvi, assim, tirar o inedetismo desse texto e publicá-lo neste meu blog, sem qualquer revisão ou mudança. Ele é divulgado tal como foi escrito, como sempre rapidamente, originalmente.

Impasses da Rodada de Doha
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 5 julho 2008
Respostas para elaboração de Trabalho de Conclusão de Curso para estudante do CEABE-FGV-SP

1. Em sua opinião, quais são os principais motivos para o impasse da Rodada de Doha?
PRA: De um lado, falta de capacidade dos países ricos em desmantelar seu arsenal de medidas protecionistas e seus mecanismos de subvenção na área agrícola, e, de outro, falta de vontade ou oposição política dos países em desenvolvimento em superar o protecionismo latente exercido em produtos industriais e em certas áreas de serviços. Adicionalmente, estes têm problemas em liberalizar amplamente os investimentos estrangeiros e aceitar normas mais intrusivas em propriedade intelectual e os países ricos ficam insistindo em criar novas regras de proteção a pretexto de defesa do meio ambiente ou como proteção a direitos trabalhistas e respeito a certas normas laborais. Nos dois casos, sentimentos protecionistas em ambos lados, submissão à ação de lobbies setoriais nacionais e desejo de continuar legislando em políticas setoriais, com práticas discriminatórias em várias áreas.

2. A atual crise econômica internacional pode emperrar ainda mais as negociações de Doha?
PRA: Pode, na medida em que reforça os elementos nacionais, discriminatórios, das políticas comerciais e industriais, com tentativas de defesa do emprego ou dos mercados nacionais. Por outro lado, como os preços dos alimentos encontram-se em patamares elevados, talvez isso diminua a necessidade de subvenções estatais, o que teoricamente poderia facilitar compromissos. Mas, agricultores chantagistas e políticos “espertos” alegam que, assim como os preços subiram, eles podem baixar, e portanto não têm a intenção de desmantelar o arsenal protecionista e subvencionista.

3. As nações desenvolvidas têm fortes políticas de subsídios à agricultura, pois alegam que alimentar sua nação é questão de segurança nacional e não de livre comércio. Porém , tais políticas desestimulam a produção de alimentos em países em desenvolvimento e distorcem os incentivos da produção e o consumo. Qual deveria ser a política da OMC em relação aos subsídios?
PRA: A OMC não tem uma política própria, pois não pode legislar por sua própria conta. Se pudesse, assim como outras entidades voltadas para a definição de políticas públicas em diversas áreas (como a OCDE, por exemplo), deveria simplesmente decretar a ilegalidade dos subsídios para fins comerciais, como ocorre na área industrial. Acontece, porém, que esses subsídios agrícolas foram legalizados na Rodada Uruguai, com a aprovação do acordo agrícola; agora fica mais difícil proibi-los. Em todo caso, a ministerial de Hong-Kong já acordou banir os subsídios à exportação de produtos agrícolas a partir de 2013, embora em condições e modalidades que não estão ainda de todo claras, pois algum “rebalancing” com tarifas diferenciadas e o recurso a medidas de exceção continuam à disposição dos países.
Essas políticas são claramente danosas aos países em desenvolvimento mais pobres, pois lhes retira qualquer possibilidade de se inserir na economia mundial com base em suas únicas vantagens comparativas possíveis no plano do comércio internacional, que seria a oferta de bens agrícolas em condições competitivas (ainda que isto não pudesse ser feito numa primeira fase).

4- Muitos analistas afirmam que o maior problema está entre o Brasil e os EUA, pois ambos não querem abrir mão de seus direitos nas negociações. Você considera que os dois países são realmente os pilares para o atraso de Doha?
PRA: Não; esses dois países foram responsáveis pelo desmantelamento das negociações da Alca, no plano hemisférico, mas os pecados que estão sendo cometidos em Doha envolvem um número bem maior de países. Praticamente todos são em grande parte responsáveis, embora as responsabilidades principais estejam, justamente, com os protecionistas agrícolas, de um lado (e aqui vale tanto para EUA e UE, como Japão, Coréia, Suíça, Noruega, China e India, além de vários outros em desenvolvimento), e de outro com os protecionistas industriais, Brasil e India em primeiro lugar, mas vários outros em desenvolvimento também. Registre-se que a posição da UE não é uniforme, pois alguns países querem a liberalização agrícola (Reino Unido), ao passo que outros lutam pelo mais amplo protecionismo (França).
Pecados devem ser uniformemente distribuídos entre os pecadores...

5. O single undertaking, um importante fato conquistado na Rodada do Uruguai poderá ser perdido, devido aos problemas de Doha?
PRA: O single undertaking não deve ser tomado como um princípio sagrado, inscrito nas tábuas da lei, como são, por exemplo, as regras do GATT. Trata-se de uma norma não escrita, ou seja, acordada entre os ministros para facilitar uma aceitação geral por todos. Teoricamente isso permite o exercício do direito de veto por qualquer país membro, por menos importante que seja. Na prática, sabemos que as coisas não se passam assim. Depois que os grandes parceiros comerciais conseguem chegar a um acordo entre eles, eles torcem o braço dos menores e os obrigam a aceitar os seus “compromissos”, ou seja, enfiam goela abaixo dos menos importantes regras que eles mesmos traçaram para eles. Como não há um processo decisório estritamente definido no GATT-OMC, não se sabe bem o que pode querer dizer esse entendimento único, pois ele é suscetível de diversas interpretações. Teoricamente, se deve chegar a uma situação em que todos devem se colocar de acordo sobre todos os pontos de negociação, num pacote uniforme e compacto que todos devem aceitar in totum, pois ele conterá benefícios mas também pílulas amargas. A realidade é que os acordos são construídos mediante certo consenso entre os grandes. Se algum pequeno tentar obstaculizar, pode atrasar certo tempo a conclusão do processo, mas será “convencido” a aderir.
Ou seja, não se trata de um “fato”, mas de um entendimento, que é suscetível de receber tratamentos variados segundo as linhas de força em jogo.

6. Dada as dificuldades, quais seriam as melhores soluções para que Doha seja finalizada? Deveria ser repensada a maneira de se fazer comércio internacional como mais acordos bilaterais e plurilaterais?
PRA: Nas áreas de acesso a mercados, fica difícil esse tipo de acordo, uma vez que vigem as regras de MFN e não discriminação. Pode-se pensar nesse tipo de acordo para setores específicos, como existe para a indústria aeronáutica civil, mas fica difícil para bens agrícolas e industriais.
Já existe a possibilidade de acordos regionais, administrados pelas regras do Artigo 24 do GATT ou pela Cláusula de Habilitação da Rodada Tóquio. Ver a este respeito, dentre outros trabalhos meus, um artigo sobre o minilateralismo disponível no site (link: http://www.pralmeida.org/05DocsPRA/1499Minilateralismo.pdf).
Não se concebe maneira de fazer acordos comerciais senão pela via multilateral e pela via regional, ou minilateral. O fato é que o sistema continua desagregado e fragmentado. Aparentemente vamos ter de conviver com esse regime menos do que satisfatório (second or third best).

Questões suplementares em 28.07.2008:
Complemento de respostas em 29.07.2008.


7) Se Doha não for concluída, você acredita que o sistema multilateral do comércio entraria em um colapso? O que isso significaria para o mundo?
PRA: Não entraria, mas passaria por uma fase muito difícil, com certo debilitamento dos mecanismos multilaterais de negociação e de solução de controvérsias e expansão das soluções “minilateralistas”, ou seja, acordos preferenciais ou de livre comércio entre parceiros seletivos, aumentando, portanto, o grau de discriminação comercial. Em termos globais, significa que a interdependência ativa, ou seja, o processo de globalização avançaria de forma mais lenta, e com muitas áreas submetidas a acordos restritos e parciais.

8) Para o Brasil quais seriam os benefícios de Doha?
PRA: Maior acesso a mercados para seus produtos competitivos, em especial agricultura, e maior pressão no mercado interno, com competição externa de produtos industriais, o que também é interessante, pois significa que a indústria nacional teria de fazer um esforço adicional, em termos de qualidade e preços, para se manter competitiva. No conjunto, reforço dos mecanismos dos esquemas multilaterais de acesso a mercados e de solução de controvérsias, em lugar de arbitrariedades praticadas de maneira unilateral, como ocorre em alguns setores atualmente. Os benefícios regulatórios talvez sejam ainda mais importantes do que a simples quantificação de ganhos de mercado.

9) Na sua opinião, compensa para o Brasil negociar apenas o setor agrícola e "esquecer" da indústria e do serviço? Quais poderiam ser os prejuizos e benefícios desta estratégia brasileira?
PRA: Mesmo que desejasse, hipoteticamente, não seria possível ao Brasil negociar apenas um pacote agrícola, pois os princípios (mesmo informais) que regem uma negociação desse tipo implicam que todos os países têm o direito de colocar seus interesses ofensivos (demandantes) na mesa e esperar compensação por vantagens concedidas a outros parceiros comerciais. No cômputo global, os países de pautam pela regra do “single undertaking”, ou seja, de que os resultados devem ser globalmente aceitáveis para todos, num pacote único e interrelacionado.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 4 de julho de 2008
Complemento em 29.07.2008