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terça-feira, 16 de novembro de 2021

Brasil-China: a grande batalha do 5G - Ana Clara Costa (Piaui)

 LIÇÃO DAS BRAVATAS

Os bastidores de como o governo cedeu à chinesa Huawei

Ana Clara Costa 

Piauí, Edição 182, novembro 2021

 

 

O dia 24 de novembro de 2020 era aguardado com certa dose de receio pelos interessados no leilão do 5G, a nova e rapidíssima tecnologia da internet que o Brasil implantará a partir de 2022. A razão da expectativa era um fato insólito: o ministro das Comunicações, Fábio Faria, levaria integrantes da Anatel, a agência que regula as telecomunicações, para uma reunião com o presidente Jair Bolsonaro e o general Augusto Heleno, ministro do Gabinete de Segurança Institucional (GSI).

 

A apreensão era justificada. Nunca antes um presidente da República convocou ao seu gabinete conselheiros da Anatel, uma agência independente do governo, e, para completar, eram cada vez mais ruidosos os rumores de que Bolsonaro queria banir a chinesa Huawei do leilão do 5G. Influenciado pela pregação norte-americana, desconfiava que a Huawei poderia usar sua rede para fins de espionagem no Brasil. Diante disso, supunha-se que a reunião incomum contemplaria um pedido que não estava previsto em lei: que a Anatel vetasse a participação da empresa chinesa.

 

Na noite anterior à reunião, um episódio agregara dose extra de tensão: o deputado Eduardo Bolsonaro (PSL-SP) publicara uma série de tuítes críticos à China sobre o 5G. Em um deles, dizia que o Brasil apoiava “o projeto dos Estados Unidos para o 5G” e “sem a espionagem da China”. Não eram os primeiros ataques a Pequim. Em março daquele ano, reverberando o que Donald Trump dizia em Washington, o deputado usara o Twitter para culpar a China pelo coronavírus, recebendo uma resposta enérgica da Embaixada Chinesa, que o acusara de ter contraído “vírus mental” e estar “infectando a amizade” entre Brasil e China. Na ocasião, Bolsonaro teve de telefonar ao primeiro-ministro Xi Jinping para colocar panos quentes.

 

Mas, em novembro, ninguém sabia se o “vírus mental” não se espalhara pelo governo. A ideia de levar a turma da Anatel ao Palácio do Planalto partiu de Faria, que liderava as tratativas sobre o leilão do 5G. Ao chegar ao local, o ministro estava acompanhado de seu então secretário-executivo, Vitor Menezes, do secretário de Telecomunicações da pasta, Arthur Coimbra, do presidente da Anatel, Leonardo Euler, e de três dos quatro conselheiros da agência, Carlos Baigorri, Emmanoel Pereira, e Abraão Balbino. Ficaram cerca de trinta minutos na sala de espera da Presidência. Cientes dos rumores e da lambança diplomática de Eduardo Bolsonaro, os conselheiros já haviam definido que dariam razões técnicas para declinar um eventual pedido de exclusão da Huawei do edital do leilão. A principal delas: a Anatel é um órgão regulatório, não de segurança. Estava impedida, portanto, de deliberar sobre temas que não eram de sua competência.

 

 

 

Quando finalmente entrou no gabinete, a comitiva foi recebida com cordialidade pelo presidente, que falou de futebol antes de entrar no tema principal. O ministro Faria apresentou os técnicos e fez deferência especial ao conselheiro Baigorri, relator do edital do 5G. Bolsonaro então lançou, de forma evasiva, o seguinte comentário: “Esse negócio de 5G é importante. Tem muita pressão aí, dos americanos, e discussão com os chineses…”

 

O presidente não mencionou os tuítes do filho e, surpreendentemente, demonstrava não estar muito interessado em discutir o 5G em detalhes. Antecipando-se a um eventual pedido incômodo, Baigorri foi direto ao ponto. “Tem muita pressão mesmo, presidente”, disse ele. “Mas não temos como fazer nada a respeito da Huawei via edital. Precisa ser por decreto”, afirmou, referindo-se ao instrumento que só o presidente da República poderia editar. Baigorri então explicou que qualquer restrição à empresa teria de ter fundamento técnico. O general Heleno, sentado ao lado de Baigorri, assentiu: “Realmente, não dá para ser por edital. Se não for decreto, cai na Justiça no dia seguinte, com decisão de primeira instância.”

 

Nesse momento, o ministro Faria revelou a solução que já estava sendo preparada nos escaninhos de seu ministério, em conjunto com o GSI. “Não se preocupe, presidente. Inclusive, já temos uma minuta de decreto para quando o senhor quiser discutir o assunto com o GSI.” Faria tinha a minuta em mãos, mas não a mostrou aos presentes. Dias depois, o texto seria compartilhado com alguns técnicos. Redigido com base em uma instrução normativa lançada pelo GSI sete meses antes, dizia que só poderiam fornecer equipamentos para a rede 5G as empresas que apresentassem regras de governança específicas, como a publicação de seu quadro societário.

 

A regra atingia a Huawei em cheio. Embora tenha sido fundada pelo engenheiro e ex-militar Ren Zhengfei, um proeminente membro do Partido Comunista Chinês, a empresa informa em seu site que é “totalmente comandada por seus funcionários”. Dos seus 194 mil trabalhadores, quase 100 mil são acionistas, segundo a companhia. A Huawei diz ainda que “nenhuma agência do governo ou organização externa” detém suas ações. Contudo, como emite apenas bonds ao mercado e não tem ações listadas em bolsa, a empresa jamais precisou abrir seu quadro de sócios ou submeter-se à auditoria externa de firmas conhecidas, como a PwC, a Deloitte, a Ernst & Young ou a KPMG. Por isso, ninguém jamais conseguiu confirmar a real participação do governo na empresa.

 

A reunião terminou em meia hora, sem que Bolsonaro tivesse feito qualquer outro comentário sobre o assunto. Mas a existência de uma minuta de decreto alarmou os técnicos, em especial Leonardo Euler, o presidente da Anatel, que verbalizou seu estado de choque. Para o ministro Faria e seus auxiliares, Euler era visto como o elemento “chinês” na agência, em razão de sua amizade com um dos interlocutores da Huawei em Brasília, o ex-deputado Daniel Vilela (MDB-GO) – que foi justamente quem o indicou para presidir a agência no final do governo de Michel Temer, em 2018. Por essa razão, Faria não quis mostrar a minuta durante a reunião. Temia que Euler pudesse repassar as informações à chinesa. Em entrevista à piauí sobre o 5G, quando foi indagado sobre o episódio da minuta, Euler afirmou desconhecer o documento e se limitou a dizer que o papel da agência é técnico, não político. “A discussão do 5G tem as vertentes geopolítica, econômica e técnica. A vertente geopolítica extrapola a atuação da agência. O espaço para a discricionariedade da Anatel encontra limites em suas próprias competências legais. Ela implementa políticas públicas formuladas pelo Executivo.”

 

 A história da minuta do decreto rapidamente circulou entre os interessados no leilão – sobretudo as operadoras de telefonia e os diplomatas chineses. Por ser uma fabricante, e não uma operadora, a Huawei não poderia participar do certame, apenas vender seus equipamentos para que as teles oferecessem internet aos seus clientes. Por isso, as operadoras, principalmente a Claro, cujo modelo de negócio está voltado para a massificação de sua rede, não desejavam a exclusão da Huawei – o que elevaria o custo de instalação do 5G. Em razão da produção em larguíssima escala e dos subsídios do governo chinês, os equipamentos da Huawei têm preço até 40% inferiores aos das principais concorrentes, como a sueca Ericsson e a finlandesa Nokia.

 

Além disso, segundo a Anatel, cerca de 40% dos equipamentos usados pelas empresas de telecom nas redes de 3G e 4G no Brasil são fabricados pela Huawei – uma realidade que se materializou sem que nenhuma autoridade brasileira tenha reclamado até agora de suspeita de espionagem. Em função disso, as operadoras temiam que a exclusão da chinesa as obrigasse a substituir parte dos aparelhos já em uso, agravando os custos ainda mais. Nem mesmo a Ericsson, que contratara uma consultoria para acompanhar o tema do 5G no Brasil, desejava o veto. Na Suécia, a empresa defendeu, sem sucesso, que a chinesa não fosse banida do 5G. Sua razão era pragmática: temia ser retaliada em seus negócios na China. Por coerência, resolveu manter a mesma posição no Brasil e defender a inclusão da Huawei.

 

 A notícia da minuta movimentou o lobby das operadoras no Congresso, que arregaçou as mangas para tentar impedir o veto à Huawei. O governo da China, por sua vez, passou a pressionar seus parceiros comerciais no Brasil, notadamente no agronegócio, para que fizessem chegar ao Palácio do Planalto seu descontentamento. Os exportadores de carne foram avisados pelos importadores chineses de que seria difícil manter o acesso ao mercado interno se a Huawei fosse vetada. O Brasil é um dos países que detêm o maior número de estabelecimentos habilitados a fornecer carne aos chineses (102 no total). A diplomacia de Pequim fazia questão de frisar que esse setor específico se beneficiaria muito do constante aumento do nível de renda da população chinesa, que passaria a consumir cada vez mais carne.

 

A pressão chegou à Associação Brasileira das Indústrias Exportadoras de Carne (Abiec), que representa o lobby dos grandes vendedores, e à Associação Brasileira de Frigoríficos (Abrafrigo), que atua em nome dos abatedouros. Ambas acionaram a ministra da Agricultura, Tereza Cristina (DEM-MS), que, segundo um ex-auxiliar de Bolsonaro, chegou a receber um telefonema de seu homólogo chinês, Tang Renjian, avisando que a China gostaria de competir em condição de igualdade com as demais empresas interessadas no 5G. O ex-senador Blairo Maggi, um dos maiores produtores de soja do país, entrou no circuito para interceder em favor dos chineses, conversando com Tereza Cristina. O embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, o mesmo que respondeu com dureza às provocações de Eduardo Bolsonaro, procurou a ministra para despejar sua insatisfação. A senadora Kátia Abreu (PP-TO) e o deputado Fausto Pinato (PP-SP), então presidente da Frente Parlamentar Brasil-China e da Comissão de Agricultura da Câmara, falavam sem nenhum pudor que haveria retaliação se a China não estivesse no 5G. 

 

A senadora Kátia Abreu não quis dar entrevista à piauí alegando não estar interessada em falar “do passado”. O deputado Fausto Pinato, advogado e empresário nascido em Fernandópolis (SP), integra a bancada ruralista desde seu primeiro mandato, em 2015. Apoiou a eleição de Bolsonaro e celebrou a aproximação do governo com os Estados Unidos. Hoje, mudou de opinião. “Eu sou de direita assumido. Direita moderada. Eu não defendo o regime chinês. O que eu defendo é: se a melhor parceria para o agro é com a China, ótimo. Se a melhor parceria para o 5G for a China, ótimo também. Se não for a China e for outro país, ótimo. Temos de ser pragmáticos. Não dá para embarcar na ideologia do pessoal da terra plana”, diz.

 

Pinato também ouvia as associações ligadas à exportação de carne, em especial a Abiec, reclamarem do governo nos bastidores, mas não ousavam fazer o mesmo em público. “Todo mundo ficava quieto publicamente”, relembra o deputado. “Só se falava a portas fechadas. Na hora de se expor, era eu na Câmara, a Kátia Abreu no Senado e a ministra Tereza Cristina sempre agindo via embaixada para colocar panos quentes, dizendo: ‘O problema são os filhos, não ele.’ A Abiec e o setor como um todo falavam à boca pequena que estava errado. Mas não queriam brigar publicamente em favor da China porque o Bolsonaro está dando tudo o que eles querem.” O deputado e ex-ministro da Agricultura Neri Geller (PP-MT) também guarda recordações pouco saudosas daqueles dias. “O quanto nós trabalhamos para conquistar esses mercados, quantas viagens para a China!”, lembra o político, que também é produtor rural e expoente da Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA). “Eu sou da base. Não estou fazendo crítica sistemática, mas apenas pontual. A política externa, nesse caso, foi muito equivocada. Graças a Deus a ministra Tereza pacificou as coisas. Senão teria sido muito pior”, diz.

 

Para o agronegócio, brigar com a China é uma estupidez. É para os chineses que vão 35% de suas exportações. No caso da soja, 70% do que é exportado vão para os portos chineses. A China importa mais que o dobro do segundo maior parceiro do agro brasileiro, que é a União Europeia, destino de 15% da produção nacional. E, para o governo, se indispor com a China também é uma estupidez. Entre janeiro e agosto deste ano, o saldo da balança comercial brasileira com a China resultou num superávit de 35 bilhões de dólares – o que corresponde a 67% do superávit total do Brasil. Os chineses são, de longe, o parceiro comercial mais relevante do Brasil, superando com folga os Estados Unidos, com quem o Brasil registra déficit, pois importa mais do que exporta. 

 

Estava criado o confronto entre o comércio e a ideologia.

 

A participação chinesa no 5G havia se tornado um dilema estratégico para os países que seguem o modelo do capitalismo ocidental. Além dos Estados Unidos, nações como Alemanha, Austrália, Nova Zelândia, Reino Unido, França, Espanha e Itália já haviam banido a chinesa, aprovando leis restritivas ao setor de telecom ou estabelecendo regras que, na prática, impediam a Huawei de fornecer seus equipamentos. No Japão, de cujos semicondutores a China é grande compradora, não há empecilho legal para a presença da Huawei, mas o país se alinhou politicamente a Washington na questão do 5G e tem fornecedores locais para suprir boa parte de sua demanda interna. Na Alemanha, as regras são as seguintes: a Huawei pode participar, desde que crie uma subsidiária alemã, com capital aberto na Bolsa de Frankfurt e auditoria feita por uma firma especializada – requisitos que, pelas razões já descritas, a chinesa não quer cumprir.

 

Em meio à disputa entre Estados Unidos e China, a diplomacia norte-americana tentou convencer as demais potências mundiais de que Pequim acessava dados de usuários ilegalmente. O argumento principal é que a Huawei está submetida à Lei de Inteligência Nacional, em vigor desde 2017 na China, segundo a qual qualquer organização ou cidadão deve apoiar, ajudar e cooperar com o trabalho da inteligência do Estado chinês. Em 2019, a Huawei apresentou um parecer de um escritório de advocacia chinês mostrando que a lei não se aplicaria às subsidiárias nem aos seus funcionários no exterior. Mas o documento não convenceu pois a legislação também prevê que o trabalho de “inteligência” seria uma obrigação legal de todo cidadão chinês, mesmo fora da China. Antes dessa lei, em meados de 2011, a Huawei convidou o governo norte-americano a inspecionar in loco as instalações da companhia em Shenzhen. O Comitê de Inteligência da Câmara, liderado pelo Partido Republicano, topou a oferta. No ano seguinte, publicou um relatório de 52 páginas. Dizia – e isso, ressalte-se, antes da lei de inteligência – não ser possível confiar que a Huawei não estivesse sob influência do governo.

 

A pressão norte-americana chegou ao Brasil logo na primeira reunião que Bolsonaro teve com Trump, em sua visita a Washington, em 2019. Entre os principais assuntos tratados, estava a participação da Huawei no 5G. Em setembro de 2020, quando visitou o Brasil, o então secretário de Estado, Mike Pompeo, fez questão de falar sobre a “importância de manter o futuro do Brasil livre do Partido Comunista Chinês”. Antes da visita, Pompeo fez uma carta pública em que instava o Brasil a assinar o “Clean Network” (Rede Limpa), acordo criado pelos Estados Unidos para reunir os países que baniram a Huawei e compensá-los financeiramente por eventuais perdas decorrentes de sanções chinesas. Em novembro, enquanto promovia uma cachoeira de mentiras para provar que sua derrota eleitoral fora uma fraude, Trump mandou um representante ao Brasil, Keith Krach, para reforçar a pressão pelo veto à China.

 

As autoridades chinesas, por sua vez, também entraram em campo para dissipar a percepção de que faziam espionagem. Numa reunião virtual em 18 de setembro de 2020, o chanceler Ernesto Araújo recebeu um recado de seu contraparte chinês Wang Yi. O chinês iniciou a conversa lembrando o vigor das exportações brasileiras de carne bovina e suína para a China, e ressaltou os esforços do seu país para criar uma iniciativa global para coibir a “insegurança digital”. No glossário sutil da diplomacia, estava claro que se referia aos riscos de retaliação comercial em caso de banimento da Huawei. Num despacho diplomático sigiloso endereçado à Embaixada Brasileira em Pequim, ao qual a piauí teve acesso, Araújo relatou a conversa assim: “Limitei-me a mencionar que se trata de discussão premente e a informar que a proposta chinesa [sobre segurança digital] será examinada com a devida atenção.”

 

Em outubro, a diplomacia brasileira mostrava preocupação com o assunto. Em outro telegrama diplomático, dessa vez despachado pela Embaixada Brasileira em Nova Delhi, o embaixador André Corrêa do Lago relatava que a Índia vivia um dilema parecido com o do Brasil. Na implantação de sua rede de 5G, os indianos tentavam equilibrar riscos à segurança de dados, alinhamento político com os Estados Unidos e presença forte da China no setor de tecnologia local, onde 25% dos equipamentos da infraestrutura de 3G e 4G são chineses. (Em maio deste ano, a Índia decidiu correr o risco de eventuais sanções comerciais e vetou a Huawei no seu 5G.)

 

Enquanto as pressões se multiplicavam no Brasil, Bolsonaro resolveu que o assunto seria tratado apenas pelo ministro Fábio Faria. “Ninguém vem falar de 5G comigo e não está aberta a agenda para quem quer que seja a pessoa, a não ser que ela venha acompanhada do ministro Fábio Faria, das Comunicações”, disse, em dezembro de 2020. Na verdade, estava irritado com seu vice, Hamilton Mourão. Em 2019, Mourão visitou a China, onde foi recebido por Xi Jinping com honras de chefe de Estado. Bolsonaro ficou enciumado. No Brasil, Mourão recebeu o embaixador chinês ao menos duas vezes e, naquele dezembro, falou publicamente contra o veto à Huawei, dizendo que encareceria o 5G. Fábio Faria sentiu-se atropelado, e Bolsonaro quis cortar as asas do vice.

 

O presidente estava numa encruzilhada. Ou se rendia à posição do agronegócio e à proeminência da China no comércio externo brasileiro, ou se rendia às principais potências mundiais, sob liderança dos Estados Unidos, e à ala ideológica de seu governo, que insistia em dizer que o Brasil não dependia da China, mas a China é que dependia do Brasil. Acuado pela sucessão de bravatas que ele próprio patrocinara, do “comunavírus” à “vachina chinesa”, Bolsonaro não sabia o que fazer – e não fez nada. Enquanto a minuta do decreto pairava no ar, as semanas se passavam sem uma decisão.

 

Até que Bolsonaro foi abalroado por dois fatos com os quais não contava: Donald Trump teve que engolir a derrota, e o mundo passou a correr atrás de vacinas para combater a pandemia. Com a vitória do democrata Joe Biden, a posição dos Estados Unidos em relação à China se manteve inalterada, mas esfriou em relação ao Brasil. O governo brasileiro ficou inseguro de depender da ajuda norte-americana em caso de retaliação chinesa. “Quando o Trump perde e a Covid-19 retoma mais forte, em 2021, o Brasil passa a depender dos insumos da China para a vacina”, explica Thiago de Aragão, diretor da consultoria Arko Advice e especializado em relações internacionais pela universidade Johns Hopkins, nos Estados Unidos. “O jogo virou completamente. A dependência da China cresceu e ficou caro demais para o governo bancar a restrição ao 5G. O governo teve uma oportunidade política de criar o veto à China antes da derrota do Trump e não a aproveitou. Ficou tarde demais.”

 

O retorno da pandemia, associado à disputa de Bolsonaro com o governador paulista João Doria para ser o primeiro a vacinar, empurrou o governo brasileiro para o colo da China. No dia 11 de dezembro, menos de três semanas depois da reunião da minuta do decreto, Ernesto Araújo enviou um telegrama em caráter “urgentíssimo” à Embaixada em Pequim dando instruções para que fossem realizadas “gestões urgentes junto às autoridades chinesas” a fim de que a empresa Wuxi Biologics pudesse exportar ao Brasil a substância ativa (também chamada de IFA) para a fabricação de doses da vacina AstraZeneca. “Solicito informar com a brevidade possível a reação das autoridades chinesas”, escreveu o chanceler.

 

Segundo a Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz), que fez parceria com a Universidade de Oxford para produzir a AstraZeneca, toda a documentação para importar o IFA já tinha sido enviada à China, incluindo o parecer favorável da Anvisa à importação. No entanto, o governo chinês exigiu uma burocracia extra: um pedido oficial do governo brasileiro que fizesse referência à emergência sanitária e confirmasse que o destino do IFA era realmente a Fiocruz. Tratava-se de um trâmite incomum, mas que foi cumprido pelo Itamaraty com rapidez.

 

No dia 6 de janeiro de 2021, quase um mês depois do apelo de Ernesto Araújo, o IFA ainda não havia sido despachado para o Brasil. O encarregado de negócios da Embaixada Brasileira em Pequim, Celso de Tarso Pereira, relatou as dificuldades. Primeiro, o pessoal do posto diplomático tentou agendar uma reunião entre o então ministro da Saúde, o general Eduardo Pazuello, e sua contraparte chinesa, o ministro Ma Xiaowei. Os chineses declinaram, dizendo que o tema não estava sob a alçada de Xiaowei. Então, os diplomatas brasileiros começaram a buscar a área responsável, mas ficavam sendo encaminhados de um órgão para outro.

 

Perdidos no labirinto burocrático, os diplomatas entraram em contato diretamente com a Wuxi Biologics e com a própria filial da AstraZeneca na China, no intuito de encurtar caminhos. Em vão. “Seguiram-se telefonemas e trocas de mensagens diárias com diplomatas chineses”, escreveu Pereira. “Até agora, contudo, não foram franqueadas informações concretas sobre o processo. Mesmo o acesso direto ao diretor do Departamento de Organizações Internacionais, a quem, entende-se, caberia dar o parecer da chancelaria sobre o caso, tem sido dificultado.”

 

Lendo-se os telegramas, fica-se com a impressão de que os diplomatas em Pequim não perceberam que, por trás da burocracia, havia uma retaliação pela ameaça à Huawei. Em 15 de janeiro, com os trâmites ainda paralisados, Ernesto Araújo, o criador do neologismo “comunavírus”, enviou carta ao chanceler chinês pedindo polidamente que intercedesse pelo Brasil. “Ficaria muito grato se pudesse contar com a intervenção de Vossa Excelência para a obtenção da autorização da referida exportação. Trata-se de insumos essenciais para a manufatura no Brasil de parte importante da cobertura vacinal de que os brasileiros necessitam”, escreveu Araújo.

 

Na mesma época, o Chile recebeu cerca de 4 milhões de doses da vacina chinesa Sinopharma, sem enfrentar tamanha burocracia. A Turquia, no entanto, que esperava 20 milhões de doses da Sinovac, também lidava com atrasos semelhantes ao brasileiro – e havia indícios de que também se tratava de uma retaliação. Uma reportagem do jornal The Washington Post, publicada em 7 de abril, especulou que Pequim estava pressionando a Turquia pela extradição de imigrantes da etnia uigur, uma maioria muçulmana que a China persegue de modo implacável. Fiel à sua discrição, a China jamais admitiu que retaliava o Brasil pela Huawei ou a Turquia pelos uigures.

 

A pressão por meio do comércio exterior é prática recorrente, e não apenas do governo chinês. “A União Europeia usa esse expediente na África, ameaçando retirar o dinheiro destinado aos países africanos se eles não votarem de forma coordenada na Organização Mundial do Comércio”, afirma o ex-secretário de Comércio Exterior Welber Barral, hoje sócio da consultoria BarralMJorge. “Mas, no caso da China, tudo é muito mais organizado e menos transparente. A estratégia de pressão é mais centralizada, e os atores privados obedecem com muito mais efetividade do que num país como os Estados Unidos, onde há debates internos, oposição, um setor privado com maior autonomia. Poucos países têm o poder de pressão da China”, explica Barral.

 

Embora o decreto do 5G não tenha prosperado, o setor de proteína animal permanece sob pressão incomum. Os embarques de carne para a China foram paralisados em setembro depois que se detectaram dois casos atípicos de vaca louca (não se tratava de uma contaminação generalizada, mas de casos pontuais, decorrentes do envelhecimento do animal). Dentro da Abiec, acredita-se que a China tenha aproveitado a oportunidade para tentar derrubar o preço do produto no mercado internacional e, de quebra, retaliar o Brasil em razão dos ataques vindos do governo. “A questão técnica está resolvida porque já ficou provado que são dois casos atípicos”, diz o deputado Neri Geller. “Por que o mercado permanece fechado, então? É rescaldo da discussão ideológica dos últimos dois anos. Com a mudança no comando do Itamaraty, melhorou muito. Mas o passado pesa”, diz. A ministra Tereza Cristina tentou viajar à China para mitigar o problema, mas, até o fechamento desta edição, não recebera aval de Pequim para embarcar.

 

Só o Itamaraty de Ernesto Araújo não entendeu o jogo – ou fingiu não entender. No dia 20 de janeiro, em audiência na Câmara dos Deputados, o chanceler chegou a dizer que não havia identificado “nenhum problema de natureza política em relação ao fornecimento desses insumos provenientes da China”. E ainda detalhou: “Nem nós no Itamaraty aqui de Brasília nem a nossa Embaixada em Pequim nem outras áreas do governo identificaram problemas de natureza política, diplomática. Não identificamos nenhum percalço nesse sentido.” Tanto havia percalço que, naquele mesmo mês, até o próprio ministro Fábio Faria já apoiava o pleito da China. E a minuta do decreto presidencial contra a Huawei foi para a gaveta – de onde nunca mais saiu.

 

“Não existe coincidência aí”, diz um aliado de primeira ordem do presidente, que falou com a piauí na condição de anonimato para não ser excluído do rol de amigos. “O presidente conseguiu evitar se curvar à pressão chinesa durante muito tempo. Mas os atores a favor da China foram mais fortes. A ministra Tereza e a bancada do agronegócio ganharam reforços quando o Fábio Faria e o Bruno Dantas [ministro do Tribunal de Contas da União] também passaram a pressionar em favor da China. Ficou insuportável. O presidente não teve como resistir.” Ele relata ainda que, em uma das reuniões ministeriais ocorridas em janeiro, Tereza Cristina foi taxativa: “Se não flexibilizar no 5G, não vai ter respirador nem vacina”, disse a ministra. Consultada pela piauí, ela não quis falar.

 

 No dia 5 de fevereiro, a China despachou para o Brasil um primeiro lote de 90 litros de insumos para a fabricação da AstraZeneca pela Fiocruz. No final daquele mês, foi autorizado o envio de outros 180 litros, que permitiram a fabricação de cerca de 9 milhões de doses da vacina. Um técnico que acompanhou as discussões do caso resumiu assim o desfecho das negociações: “O assunto do decreto morreu, a vacina foi liberada.”

 

Pouco antes da liberação dos insumos pela China, no dia 2 de fevereiro, o ministro Fábio Faria liderou uma comitiva de umas dez pessoas para visitar as fábricas das principais fornecedoras de equipamentos para o 5G – na Suécia, na Finlândia, na Coreia do Sul, no Japão e, claro, na China. Era a “missão 5G”. Convidou três ministros do TCU (aos quais caberia aprovar o edital), o almirante Flávio Rocha, secretário de Assuntos Estratégicos do governo, que faria o papel de olhos e ouvidos de Bolsonaro, e o ministro da Defesa Walter Braga Netto, que poderia sanar suas dúvidas sobre segurança de dados. Braga Netto mandou em seu lugar o general Ivan Corrêa Filho, comandante de “Comunicações e Guerra Eletrônica” do Exército. Os destinos asiáticos não estavam contemplados na primeira concepção do roteiro, que incluía apenas Suécia e Finlândia, países com os quais o Brasil pretendia negociar. Depois da retaliação chinesa sobre o IFA, o ministro Faria incluiu a Ásia na viagem que duraria onze dias.

 

A comitiva voou a bordo de um Embraer Legacy 600 da Força Aérea Brasileira. Em Estocolmo, primeira parada, ficaram hospedados no hotel Radisson, quatro estrelas, visitaram a Ericsson, tiveram encontros com membro do governo sueco, e uma parte da comitiva partiu para uma visita à residência de Marcus Wallenberg, vice-presidente do conselho do conglomerado Investor AB, fundo que controla não só a Ericsson, mas também a AstraZeneca. Wallenberg vive em Täcka Udden, numa propriedade de estilo francês-renascentista comprada por sua família em 1888. O almirante Flávio Rocha ficou impressionado, não tanto pela conversa sobre o 5G, mas pela decoração de inspiração naval da residência. Os Wallenberg descendem de negociadores navais, e todos os homens da família são obrigados a se alistar na Marinha sueca antes de ingressar nos negócios.

 

Em Helsinque, capital da Finlândia, a comitiva foi recebida pelo presidente da Nokia, Pekka Lundmark, quando deu-se o primeiro contratempo: um dos tripulantes do voo da FAB testara positivo para a Covid-19. Em função disso, a passagem pela Coreia do Sul, em razão de restrições impostas pelo país para evitar o risco de contágio, teve de ser cancelada. A comitiva seguiu direto para o Japão. Em Tóquio, ficaram hospedados no bairro de Ginza, numa área elegante da cidade, encontraram-se com autoridades japonesas e visitaram as instalações da Fujitsu e da NEC, fabricantes menores de componentes para o 5G.

 

O grupo só desembarcou em Shenzhen, no sudeste da China, na noite do dia 10. E teve uma deferência especial, que demonstra o interesse chinês: foram dispensados da quarentena de 21 dias exigida de todos que chegassem do exterior. A Embaixada Brasileira em Pequim alertara o ministro Faria de que seria difícil conseguir contornar a regra de quarentena, algo proibido até mesmo aos membros da cúpula do governo. Os diplomatas relataram ainda que a comitiva corria o risco de ser retida ainda no aeroporto ao desembarcar. Foi o embaixador chinês em Brasília, Yang Wanming, um alto membro do Partido Comunista, que conseguiu a façanha de liberar os brasileiros da exigência. Em contrapartida, toda a missão teve de ficar confinada em uma mesma residência em Shenzhen, sem autorização para sair. Só puderam se locomover em vans selecionadas pela Huawei.

 

Na manhã seguinte à chegada dos brasileiros, 8h30 em ponto, o grupo teve uma reunião virtual com o fundador e presidente da Huawei, Ren Zhengfei, que estava resguardado desde o início da pandemia. Sua última aparição pública ocorrera em 21 de janeiro de 2020, quando esteve no Fórum Econômico Mundial de Davos, na Suíça, e foi entrevistado pelo historiador israelense Yuval Harari.

 

Depois da reunião com Zhengfei, a comitiva fez um tour pelo campus tecnológico da Huawei, onde recebeu horas de demonstrações da tecnologia 5G, e conheceu um laboratório de segurança cibernética e proteção de dados – essa parte específica do roteiro foi pedida pelo Ministério da Defesa. Foi o último compromisso da “missão 5G”, que deixou a China naquela mesma noite, menos de 24 horas depois do desembarque. Segundo o relatório da viagem apresentado ao Ministério das Comunicações, a turma estava tão exausta que pediu para pernoitar nas escalas em Abu Dhabi, nos Emirados Árabes, e em Argel, na Argélia.

 

Apesar da mobilização brasileira para ir à China e da disposição chinesa em receber a comitiva, o ministro Fábio Faria ainda negava que a viagem tivesse qualquer intuito de pacificação política. Dizia aos seus auxiliares que, se fosse uma missão política, eles teriam ido a Pequim – e teriam sido recebidos pelo chanceler Wang Yi.

 

Mesmo sem escala em Pequim, a visita da comitiva brasileira ajudou a serenar os ânimos. No início de março, a pedido da China, houve uma videoconferência entre o número dois da Embaixada Chinesa em Brasília, Qu Yuhui, e diplomatas do Itamaraty. Segundo um telegrama a que a piauí teve acesso, o chinês elogiou a passagem da comitiva brasileira pela China e tomou a iniciativa de tocar no assunto da Huawei. Disse que eram “encorajadores os sinais de que nenhuma empresa será impedida, a priori, de participar do processo”.

 

No mês seguinte, com Ernesto Araújo já demitido da chancelaria, o clima ficou ainda mais ameno. Carlos Alberto França, o novo chanceler, recebeu uma ligação de acolhida do seu colega chinês, Wang Yi. A conversa telefônica foi testemunhada pelo chefe de gabinete de França, o embaixador Achilles Zaluar, e pela secretária de Negociações Bilaterais na Ásia, Pacífico e Rússia, a embaixadora Márcia Donner Abreu. Wang Yi disse que a China continuaria a importar produtos agrícolas brasileiros e que o país tinha interesse em “ampliar a cooperação em telecomunicações e 5G”. Ao relatar a conversa em telegrama à Embaixada Brasileira em Pequim, França disse ter notado que a “missão 5G” em Shenzhen havia sido “exitosa”.

 

O problema é que a base bolsonarista, incitada contra a China desde a campanha eleitoral de Bolsonaro, continuava o barulho. Nas redes sociais, diziam que a vacina CoronaVac, de origem chinesa, era ineficaz e não perdiam uma oportunidade para denunciar a espionagem chinesa no 5G. O deputado Fausto Pinato, que tentava aplainar o caminho para a Huawei, era chamado de “lobista do regime comunista”. Intrigado com a omissão de Bolsonaro em censurar um comportamento que dinamitaria as relações com a China, ele foi ao Palácio do Planalto para uma reunião com o então ministro da Secretaria de Governo, o general Luiz Eduardo Ramos.

 

Pinato rememora: “Ramos então me disse: você sabe que é difícil, esse pessoal não gosta da China, é coisa pessoal. Ou seja: por uma questão pessoal estava prejudicando o país?” O próprio deputado conhecia o assunto. Em outubro de 2019, ele acompanhara a viagem da comitiva presidencial à China. Ele lembra que, durante a viagem, o general Augusto Heleno e o próprio Bolsonaro temiam pela segurança de seus dados pessoais. “Eles são tão neuróticos que confundem a ficção com a realidade. Ficavam o tempo todo preocupados de usarem seus próprios telefones.” E nem mesmo o Ministério da Defesa conseguiu até hoje provar o risco de insegurança cibernética. Convocados para falar na Câmara dos Deputados sobre os riscos do leilão do 5G, os militares, diz Pinato, “não apresentaram nenhuma prova de vazamento ilícito de dados”.

 

Era perceptível que a paranoia não estava limitada à base bolsonarista até que apareceu uma evidência concreta. No final de abril, quando parecia que as coisas podiam se manter sob controle, o ministro da Economia, Paulo Guedes, disse num evento que o coronavírus havia sido “inventado” pela China. O estrago estava feito, mas ficou pior. Em seguida, Bolsonaro, compartilhando a ideia de Guedes, disse que o coronavírus estava aí para ser usado numa “guerra química”. Não chegou a mencionar a China, mas deixou implícito que a tal arma saíra dos laboratórios de Pequim. O deputado Pinato se recorda do episódio: “Depois de todo o nosso esforço, vinha o Bolsonaro ou algum ministro e colocava tudo a perder. Ficamos com cara de palhaços.”

 

Desde sua visita à China, o ministro Fábio Faria sabia que o Brasil não tinha condições de impor aos chineses as mesmas restrições que outros países impuseram. Mas achava que uma liberação total à Huawei colocaria o Brasil numa posição de vulnerabilidade no mundo. Além das elevadas considerações de caráter geopolítico, havia ainda a banalidade da política interna: os bolsonaristas mais carnívoros, dentro e fora do governo, precisavam receber alguma coisa com a aparência de filé para, pelo menos, fazer de conta que tiveram uma vitória. Faria, ele mesmo, teve uma ideia.

 

Em conversa com os técnicos do seu ministério, ele sugeriu que fosse acrescida ao edital do leilão uma nova exigência: a rede de 5G que servisse o Executivo, o Legislativo e o Judiciário teria de ser construída por empresas que seguissem regras compatíveis com companhias de capital aberto. A regra excluía a Huawei, mas a exclusão seria restrita apenas à infraestrutura da rede dos três poderes da República. Era o que, internamente, o governo passou a chamar de “rede privativa”. Também ficaria contemplada nessa regra a rede 5G na região do programa Amazônia Conectada, numa tentativa de atenuar os temores conspiratórios dos militares de que a China poderia ameaçar a soberania nacional em solo amazônico.

 

A Anatel foi informada da novidade e incluiu-a no texto do edital do leilão. Em seguida, o documento foi submetido à avaliação do TCU. A resposta da área técnica do tribunal saiu só no início de agosto, depois de uma análise criteriosa: apontava uma série de erros no edital, como a omissão de não obrigar as operadoras a fornecerem internet de alta velocidade para as escolas públicas. Sobre a “rede privativa”, o edital dizia, sem meias-palavras: que era ilegal. Só seria legal se fosse implantada por meio de licitação ou parceria público-privada – e não um leilão. Os ministros não são obrigados a seguir a avaliação da área técnica. Por isso, a “rede privativa” entrou no edital do leilão mesmo assim. No fim de agosto, depois de incluírem às pressas a internet para as escolas públicas, o edital estava aprovado no TCU.

 

 O técnico do TCU, responsável pelo relatório, reforçou, com certa dose de resignação, que todos os pontos que haviam sido descritos e trabalhados ao longo de quatro meses por sua equipe eram importantes para o leilão. “Tudo que estava no relatório era muito relevante”, afirma Uriel Papa, secretário da área de Infraestrutura do TCU. Internamente, os ministros já estavam convictos de que o leilão tinha de ser aprovado o quanto antes, alegando que a pandemia já havia atrasado demais o cronograma, e avaliavam que a área técnica havia sido dura em seu relatório porque estava ressentida. Na avaliação de um dos ministros, que pediu à piauí que seu nome não fosse revelado, os técnicos se aborreceram por não terem sido ouvidos durante o processo. Somente em julho deste ano, quando o relatório da área técnica estava prestes a ser concluído, Uriel Papa foi convidado a ir a uma viagem organizada pelo ministro Faria. Visitou as instalações de 5G e rede privativa em Washington, nos Estados Unidos. A cortesia, contudo, não alterou o tom do relatório.

 

 A inclusão da “rede privativa” no edital foi apenas uma forma de satisfazer o apetite do bolsonarismo. A proposta da rede exclusiva poderia ser executada pelo governo sem edital nem leilão. A lei de licitações prevê que o governo tem a prerrogativa de escolher a empresa de sua preferência para realizar determinados serviços. Na infraestrutura do 5G, por exemplo, bastaria que escolhesse, no caso específico da rede para os três poderes, qualquer empresa que não a Huawei. A diferença é que essa saída, já prevista em lei, não daria o discurso que a base bolsonarista exige. Para a Huawei, foi uma excelente solução. Estima-se que a “rede privativa”, que contempla também a Amazônia, corresponderá a apenas 5% dos investimentos previstos para toda a rede nacional. A empresa chinesa, no final das contas, ficará com o filé.

 

Depois de todo o barulho sobre a China, o Brasil acabou se colocando numa posição ímpar. Entre as quinze maiores economias do mundo, é um dos únicos países que vai aceitar, com restrição mínima, o fornecimento de equipamentos da Huawei na sua infraestrutura de 5G. Os outros – Estados Unidos, Alemanha, México, Reino Unido, Índia, França, Austrália, Itália e Espanha – impuseram veto total ou critérios difíceis de serem cumpridos. O Japão, apesar da ausência de restrições, é um dos mais ativos no acordo da Clean Network. O Canadá ainda não bateu o martelo, mas aposta-se que seguirá alinhado com os Estados Unidos. A Coreia do Sul e a Rússia, que completam a lista dos grandes, são as exceções e não devem banir a Huawei. Em 2019, o Reino Unido chegou a dizer que autorizaria equipamentos da empresa chinesa em até 35% de suas redes de 5G, uma vitória tão significativa que o fundador da Huawei disse que fora a sua “batalha de Stalingrado”. Mas, neste ano, sob pressão do Partido Conservador, o primeiro-ministro Boris Johnson voltou atrás.

 

É uma disputa de gigantes. China e Estados Unidos estão brigando para saber quem vai controlar a nova geração de redes de comunicação ultra velozes. Num futuro cada vez mais próximo, a automação de processos simples (como dirigir um carro) e complexos (como fazer uma cirurgia cardíaca) poderão ser feitos remotamente. Essa perspectiva torna a espionagem de dados um trunfo para quem rouba e um perigo para quem é roubado. As agências de inteligência dos Estados Unidos e do Reino Unido avaliam que, embora a Huawei possa estar bem-intencionada, o modelo de governo chinês a impediria de agir com independência caso fosse requisitada a fornecer dados de usuários.

 

Desde que os Estados Unidos passaram a questionar a idoneidade da Huawei, no início da década de 2010, a empresa vem negando o uso de sua rede para propósitos ilícitos. Zhengfei, o fundador, também nega que sua empresa tenha participação acionária do governo, embora uma reportagem do Wall Street Journal tenha apontado que a companhia acumulou 75 bilhões de dólares em financiamento estatal, subsídios e benefícios fiscais ao longo das últimas três décadas. A Huawei negou ao WSJ que recebe tratamento diferenciado do governo. Em outra reportagem, publicada pela BBC, Zhengfei foi questionado sobre o fato de uma das ex-presidentes da Huawei, Sun Yafang, ter trabalhado no Ministério de Segurança chinês. O empresário respondeu que a suspeita não era justa. A piauí pediu uma entrevista com o representante da Huawei no Brasil, mas a empresa não quis falar.

 

Depois que sua filha e ex-diretora financeira da Huawei passou três anos presa no Canadá a pedido da Justiça norte-americana, acusada de fraude, lavagem de dinheiro e espionagem industrial, Zhengfei adotou uma postura mais beligerante em relação aos Estados Unidos. Criou um plano de comunicação para defender a imagem da empresa na mídia internacional, brigar na Justiça para ter o direito de vender no mercado norte-americano e investir em tecnologia. Ganhar o mercado brasileiro nunca foi sua “batalha de Stalingrado”, mas era fundamental em sua estratégia mundial.

 

O leilão do 5G é um evento singular que marcará um ponto de inflexão nas telecomunicações, segundo o empresário Roberto Nogueira, presidente da Brisanet, empresa de telecom que cresceu a partir década de 2000 investindo em fibra ótica no Nordeste e, agora, depois de captar mais de 1 bilhão de reais na bolsa de valores, poderá disputar lotes no leilão ao lado das grandes, como Vivo, Claro, Tim e da mineira Algar. “É um momento único. Estamos vivendo a década da transformação da infraestrutura de telecomunicações. Os cabos desaparecem e entra a fibra ótica na banda larga das residências, o 5G passa a entregar internet móvel de alta performance. Tudo isso abrirá caminho para uma transformação de logística e serviços nas próximas décadas”, explica Nogueira. Segundo ele, participar do leilão do 5G é fundamental porque não haverá outro parecido nas próximas duas décadas.

 

A Algar, que foi uma das primeiras clientes da Huawei no Brasil, quando ainda estava em vigor a tecnologia de segunda geração, chamada de GSM, nos anos 2000, não tem reclamações a fazer da empresa, embora tenha, ao longo do tempo, migrado sua rede para a Nokia. “Foi uma experiência ímpar. Boa tecnologia, bom serviço, bom suporte”, diz o presidente da empresa, Jean Carlos Borges. Contudo, ele relata que com a chegada das redes 3G e 4G, os equipamentos mais voltados para a tecnologia de dados, e menos para telecom, passaram a interessar mais à sua empresa – daí a migração para a Nokia, que ofereceu uma combinação entre tecnologia e preço que lhe pareceu mais vantajosa. “Hoje, esses equipamentos das duas fabricantes coexistem”, explica.

 

Embora se fale no “leilão do 5G”, o que o governo leiloará para as operadoras neste mês de novembro é o “espectro”, uma espécie de tubulação por onde passam os dados. O 5G é a tecnologia que transporta esses dados dentro do espectro. Serão leiloadas, portanto, faixas maiores e menores dessa tubulação. As maiores faixas serão, em sua maioria, de abrangência nacional. Mas haverá um lote separado para empresas que desejam operar em apenas uma região, como é o caso da Brisanet e da Algar. Elas ocuparão um espectro menor dentro da tubulação. Quando todas as fases do certame forem concluídas, a nova tecnologia começará a chegar aos usuários a partir do ano que vem.

 

 As operadoras têm até julho de 2022 para construir a infraestrutura nas 26 capitais e no Distrito Federal e entregar o novo serviço. Embora o 5G para a telefonia móvel seja a grande novidade, o aumento da rede de fibra ótica será obrigatório para drenar o volume colossal de dados em circulação. Ou seja, o investimento em fibra ótica também será fundamental para promover a universalização da internet de alta velocidade no Brasil. As operadoras terão de investir na fibra tanto quanto na internet móvel 5G, elevando em dez vezes o cabeamento da rede de banda larga fixa no Brasil.

 

O Brasil já está conectado: 83% dos domicílios têm algum acesso à internet, mas apenas 44% têm um computador. Conclui-se, portanto, que a conectividade no país se apoia, sobretudo, na internet móvel, por celular — com planos majoritariamente pré-pagos e de baixo volume de dados. O 5G transformará essa realidade porque permitirá que a população de baixa renda consiga acessar aplicativos que exigem elevado fluxo de dados, como os de streaming de vídeos — que servem tanto para o entretenimento quanto para a educação online. Embora Bolsonaro tenha se centrado na influência chinesa ao longo de todo o debate sobre o 5G, a realidade é que, no Brasil, as dificuldades reais são outras — e o inimigo é interno.

 

 https://piaui.folha.uol.com.br/materia/licao-das-bravatas/

 

sexta-feira, 4 de dezembro de 2020

O Cronista Misterioso do Itamaraty: o diplomata anônimo que zomba do chanceler acidental - Luigi Mazza (Piauí)

Quem ainda não leu, talvez prefira comprar a revista nas bancas de jornais, mas reproduzo abaixo o teor da matéria, tal como transcrita a partir o pdf: 


Quem desejar ler todas as crônicas disponíveis, favor consultar meu blog Diplomatizzando, onde coloquei cada uma delas (ver abaixo) e fiz uma brochura com o conjunto das recebidas até algumas semanas atrás: 













Minhas postagens: 

3736. “Um cronista secreto do Itamaraty bolsolavista: as armas da crítica sarcástica”, Brasília, 20 agosto 2020, 2 p. Introdução às crônicas de um diplomata desconhecido sobre o Itamaraty atual. Em postagem sistemática no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/um-cronista-secreto-do-itamaraty.html). Postagens: 01 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/01-o-papel-do-asno-na-sociedade.html); 02 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/02-gusmao-rendido-um-cronista-secreto.html); 03 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/03-pela-restauracao-um-cronista-secreto.html); 04 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/04-franjas-lunaticas-um-cronista.html); 05 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/05-o-anti-barao-um-cronista-secreto-do.html); 06 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/06-alienaveis-alienigenas-um-cronista.html); 07 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/07-nobel-um-cronista-secreto-do.html); 08 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/08-sussurram-os-corredores-um-cronista.html); 08bis (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/08bis-bolo-de-laranjalima-um-cronista.html); 09 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/09-meu-caro-amigo-um-cronista-secreto.html); 10 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/10-aosfatos-um-cronista-secreto-do.html); 11 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/11-kejserens-nye-klder-andersen-roupa.html); 12 (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/12-era-do-radio-um-cronista-secreto-do.html). Postadas novamente no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/as-cronicas-secretas-do-batman-do.html).

 

3737. “Crônicas do Itamaraty bolsolavista”, Brasília, 21 agosto 2020, 17 p. Consolidação das crônicas de um diplomata desconhecido sobre o Itamaraty atual, com minha Introdução geral e as introduções parciais a cada uma das crônicas. Feita postagem resumo no blog Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/um-cronista-misterioso-anima.html) e postagem em arquivo pdf na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/43909791/Cronicas_do_Itamaraty_bolsolavista_Cronista_misterioso_2020_). Estatísticas de acesso às postagens nas duas plataformas, postadas (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/08/o-cronista-misterioso-do-itamaraty-teve.html).


3762. “Novas crônicas do Itamaraty bolsolavista – Cronista Misterioso”, Brasília, 25 setembro, 1 p. Postagem agrupada das novas crônicas recebidas recentemente. Postadas individualmente, depois agrupadas nesta postagem do Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_76.html). Postagens individuais: 13) Era uma vez na Arábia um homem chamado Abu (Semana 13 - Parte 01) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty.html); 14) ABU V, o heterônimo (Semana 14 - Parte 02) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_25.html); 15) O estranho caso de Abu (Semana 15 - Parte 03) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_43.html); 16) A jornada do herói (Semana 16) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_19.html); 17) Rumo à Idade Média (Semana 17) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_70.html); 18) Patriotas? (Semana 18) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_57.html); 19) Os leitões de Niemöeller (Semana 19) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_81.html ); 20) Receita contra o globalismo (semana 20) (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/09/novas-cronicas-do-itamaraty_58.html).

 

3789. “Um Ornitorrinco no Itamaraty: crônicas do Itamaraty bolsolavista”, Brasília, 5 novembro 2020, 35 p. Compilação de 24 crônicas do cronista misterioso, um diplomata aposentado que se apresenta como “ministro Ereto da Brocha”, publicadas individualmente no blog Diplomatizzando, e agora reunidas em uma brochura. Postado na plataforma Academia.edu (link: https://www.academia.edu/44437505/Um_Ornitorrinco_no_Itamaraty_cronicas_do_Itamaraty_bolsolavista_Ereto_da_Brocha_2020_); disseminado via Diplomatizzando (link: https://diplomatizzando.blogspot.com/2020/11/um-ornitorrinco-no-itamaraty-cronicas.html).

 


quinta-feira, 28 de agosto de 2014

A peemedebizacao da politica brasileira - Marcos Nobre (revista piaui)


por Marcos Nobre
Revista Piaui, agosto de 2014
Nada de PT ou PSDB: a verdadeira força hegemônica da política brasileira é o pemedebismo.
A partir das eleições de 2006, a disputa pelo título de “melhor governo da história deste país” foi politicamente decidida a favor de Lula, contra a era FHC. Já o debate acadêmico, em sentido contrário, parecia se encaminhar para entronizar (para o bem ou para o mal, dependendo da avaliação) o Plano Real como marco de um novo período da história brasileira. Foi quando o cientista social André Singer, num artigo publicado em 2009 na revista Novos Estudos do Cebrap, resolveu comprar a briga e estabelecer o lulismo como momento inaugural de uma nova era.
Segundo suas análises, o governo Lula construiu um programa político ao longo de dois mandatos, cuja base social estaria na massa popular desorganizada que conquistou, nesse período, substanciais melhorias em seu padrão de vida. Lula teria realizado uma operação política de troca de sua base eleitoral e de apoio entre as eleições de 2002 e de 2006. Conforme a tese, ele abandonou a base tradicional na classe média em favor de um “subproletariado”, caracterizado por um profundo e disseminado conservadorismo.
Foi nesses termos que Singer deu corpo e densidade à expressão até então vaga do “lulismo”, levando a discussão a outro patamar.

Em textos mais recentes, Singer deu a esse suposto conservadorismo de massa profundidade histórica, em registro local e internacional, por assim dizer. O lado nacional conecta a nova base social de Lula a uma corrente social subterrânea que o levaria a Getúlio Vargas e à “herança populista dos anos 1940/1950” e que estaria ligada, no presente, a um “povo lulista que deseja distribuição de renda sem radicalização política”, como afirmou em artigo publicado na Folha de S.Paulo.

Já é suficientemente inquietante a aproximação com um paternalismo avesso à democracia. Tanto mais que Singer nem mesmo distingue entre o Getúlio Vargas da ditadura do Estado Novo e o presidente eleito da década de 50. Mas a complicação fica ainda maior quando aproxima o lulismo do New Deal dos Estados Unidos da década de 30, como fez em ensaio publicado na edição de outubro de piauí.
Essa comparação com um momento passado da história norte-americana pretende, na verdade, apontar para o futuro – para o Brasil que teria sido inaugurado pela era Lula e que teria como imagem a formação da nova classe média dos Estados Unidos depois do período do presidente Franklin D. Roosevelt.

A comparação com o New Deal parece deslocada por várias razões. A começar pelo fato de que, nos Estados Unidos, ele se seguiu a nada menos do que a crise de 1929. Ao contrário de Obama agora, Roosevelt chegou três anos depois da maior catástrofe econômica da história do capitalismo em tempos de paz e encontrou o terreno propício – não obstante a derrota histórica nas eleições legislativas de 1938 – para alcançar um novo grande acordo social. Sem falar no fato elementar de que o patamar de desenvolvimento social, econômico e democrático dos Estados Unidos pré-1929 não tem base de comparação com o Brasil de 2002. E, tudo somado, um vaivém entre o New Deal, Lula e o Estado Novo nem de longe pode ser considerado como uma operação inofensiva.


Seja como for, está ausente a referência à democracia e a uma cultura política democrática – tanto no caso dos Estados Unidos como no caso do Brasil. Como se a presença ou ausência da tradição e da prática democráticas não fosse elemento estrutural para pensar qualquer aproximação ou comparação entre situações sociais e históricas distintas. De maneira crua, o que se tem na argumentação de Singer é o suposto de que aumentar a renda da população pobre tem resultados conservadores. Um pressuposto, aliás, que não é demonstrado. Surge como um economicismo de novo tipo. Não apenas por ignorar o papel das instituições e de uma cultura política democrática – fenômenos “superestruturais”, como se costumava dizer no velho jargão marxista –, mas por reduzir a política ao reflexo de uma população que compra e consome.


Com essa redução, desaparece do horizonte também a crítica. Desaparece todo o universo de obstáculos à efetiva democratização da sociedade que caracteriza a política do país. Desaparece a imagem de uma sociedade amputada por uma representação política excludente, como é o caso da brasileira. Supor conservadorismo sem examinar as condições políticas concretas do desenvolvimento da democracia naturaliza esse mesmo conservadorismo.

A situação é outra quando se olha tanto o período FHC como o período Lula do ponto de vista mais amplo do processo de redemocratização iniciado nos anos 80. Dessa perspectiva, tanto o marco representado pelo Plano Real quanto aquele representado pelo governo Lula se apresentam como momentos de inflexão em uma linha de desenvolvimento que os precede e, em boa medida, os determina. Ao mesmo tempo, é apenas essa ampliação do horizonte que permite enxergar a cultura política mais duradoura que caracteriza a sociedade brasileira, juntamente com sua forma mais relevante e estrutural de obstrução democrática.
A essa cultura política herdada dos anos 80 dou o nome de “pemedebismo”.

É possível ver o desenvolvimento da política do país desde então como uma sequência de tentativas de lidar com esse fenômeno fundamental, seja para combatê-lo, seja para neutralizá-lo, seja para dirigi-lo. De maneiras diferentes, tanto o Plano Real como o “lulismo” foram tentativas de controlar o pemedebismo de fundo da política brasileira. Por isso, por mais importantes que pareçam e de fato sejam, são momentos de inflexão em uma linha de força muito mais duradoura e consistente.


A pemedebização não tem a ver apenas com o crescimento ou a eventual hegemonia de um partido dentro de um governo. Tem a ver com uma lógica. A título de exemplo, basta pensar que uma figura como Aécio Neves pode perfeitamente ser pensado nesse registro. Se tiver a oportunidade e as condições políticas para isso, certamente ele será um símbolo do pemedebismo, mesmo que nunca se transfira partidariamente para o PMDB e continue no PSDB.


O pemedebismo significa uma lógica, portanto. Lógica que, sim, se formou e se consolidou a partir da configuração concreta do PMDB na década de 80, nas condições específicas em que se deu a redemocratização. Mas que se autonomizou em relação ao partido, mesmo que este continue ainda hoje a ser o seu fiel depositário na política brasileira.

Para entender esse movimento, é preciso voltar três décadas e puxar o fio da meada desde lá. O que é um exercício bem distante de ser óbvio no momento atual, em que a euforia da irresistível ascensão do país à condição de potência mundial deixa ver com dificuldade o fato elementar de que períodos de crise não foram a exceção, mas a regra, no quarto de século que vai de 1978 a 2003.


Com a reforma partidária de 1980, o MDB, já então PMDB, ganhou o importante problema de saber como não se esvaziar, de como manter dentro da mesma legenda correntes, tendências e mesmo partidos inteiros que tinham poucas afinidades além da unidade da luta contra a ditadura. Com o pluripartidarismo, parecia que o sentido do MDB também havia se esgotado.


Ocorre que não só o MDB guardava um capital político de altíssimo valor. Dispersar forças naquele momento poderia significar também colocar inteiramente nas mãos dos militares a transição democrática. Pois a antiga Arena tinha se tornado o PDS e conseguira manter a maior parte de seus quadros. Se a oposição se dispersasse naquele momento, o Colégio Eleitoral de 1985 poderia eleger um nome civil do PDS como presidente da República, em lugar de Tancredo Neves.


Para conseguir manter dentro de um mesmo partido correntes e tendências tão heterogêneas, a nova sigla aperfeiçoou um sistema interno de regras de disputa que já funcionara durante a década de 70 e que, a partir de 1983, precisava também incluir figuras de uma nova ordem de grandeza: governadores de estado. Esse sistema pode ser descrito de maneira simples como um sistema de vetos. (Coisa muito diferente – e ainda mais complicada – seria a de circunscrever a “base social” desse pemedebismo, de tão impressionante longevidade e vitalidade na política nacional, uma tarefa que não cabe aqui).


É um modo de fazer política que franqueia entrada no partido a quem assim o deseje. Pretende, no limite, engolir e administrar todos os interesses e ideias presentes na sociedade. Em segundo lugar, garante a quem entrar que, caso consiga se organizar como grupo de pressão, ganhará o direito de vetar qualquer deliberação ou decisão que diga respeito a seus interesses. Foi assim que o PMDB se organizou a partir da década de 80. Como se o partido fosse, em si mesmo, um governo de união nacional.

Foi uma resposta tipicamente conservadora ao brutal descompasso entre uma democracia sem instituições e a altíssima participação popular nos anos 80, especialmente visível no período da Constituinte. Em lugar de democratizar aceleradamente as suas instituições, a política brasileira, liderada pelo PMDB, construiu um sistema de filtros, obstáculos e vetos que procurava represar e atender seletivamente à verdadeira enxurrada participativa que se viu naqueles tempos, inédita na história do país.


O essencial da cultura política inaugurada pelo PMDB na década de 80 é o fato de que, desde o declínio da ditadura militar, sua identidade deixa de se construir por oposição a um inimigo, real ou imaginário, e passa a ser construída com base em um discurso inteiramente anódino e abstrato, sem inimigos, cujo sentido mais importante é garantir o sistema de ingresso universal e de vetos seletivos.

Reafirma-se, então, a visão realista de que a democracia não passa do exercício da capacidade de bloquear o oponente, não de enfrentá-lo abertamente no espaço público. Pressupõe que maiorias não se formam positivamente em favor de políticas determinadas, mas sim porque se mostram capazes de desviar, contornar ou neutralizar vetos. No mais, é uma cultura política que aceita mecanismos de participação e deliberação democráticos. Desde que não ameacem seriamente o sistema de vetos.


Mas essa lógica, digamos, inclusiva do pemedebismo tem seus limites. A política simplesmente deixa de funcionar quando a polarização desaparece. Quando todos estão, por assim dizer, incluídos, quando estão aPTos e organizados para vetar, em algum momento vem a paralisia, uma tendência inscrita no próprio pemedebismo.

Na década de 80, a paralisia política coincidiu com a desorganização econômica. Produziu uma Constituição que contém muitas e diferentes constituições dentro de si – o que, por razões que não vêm ao caso aqui, acabou por ser positivo para a sua consolidação. E culminou com uma inflação inteiramente fora de controle e com a humilhante derrota de Ulysses Guimarães na eleição presidencial de 1989.


A desorganização econômica tinha nome e sobrenome conhecidos. Chamava-se inflação, “inflação inercial”. Teve papel central na manutenção do pacto de desigualdade brasileiro dos anos de nacional-desenvolvimentismo, entre as décadas de 30 e 80. Nos limites rígidos de uma economia fechada e, na maior parte do século XX, de regimes autoritários e/ou coronelistas, a inflação auxiliou na promoção de desenvolvimento econômico rápido e intenso sem alterar fundamentalmente os padrões desiguais de distribuição de renda. Um pacto que pretendia se sustentar na melhoria geral dos padrões de vida. Não foi por acaso que um dos primeiros atos da ditadura militar de 1964 tenha sido o de institucionalizar a inflação sob a forma da “correção monetária”.


Em um determinado momento, entretanto, a inflação deixou de ser o mecanismo mais eficiente para a manutenção do pacto de desigualdade que caracteriza a história brasileira, revelando divisões e disputas potencialmente desagregadoras no interior dos próprios estratos sociais privilegiados. Esse foi não apenas o momento em que a inflação se tornou hiperinflação. A hora histórica coincidiu também com o declínio da ditadura militar, com a redemocratização e com o esgotamento do modelo chamado nacional-desenvolvimentista. Foi esse nó social que coube ao pemedebismo não desatar.

A coincidência histórica de hiperinflação e redemocratização moldou um sistema político programado para o quanto possível impedir a formação de blocos hegemônicos capazes de impor perdas definitivas a terceiras partes. E não é difícil ver que a tarefa de superar simultaneamente a hiperinflação e o modelo nacional-desenvolvimentista sem regressão autoritária não é factível em uma configuração política como essa.


Para mostrar isso, basta lembrar que, até 1994, governos estaduais tinham no Brasil relevantes instrumentos para fazer política econômica, independentemente do chamado governo central. E que os tímidos ensaios de abertura econômica da década de 80 – como a abertura para o investimento, por exemplo – foram feitos na margem e por políticas específicas de ministérios e órgãos da área econômica.


Dito de outro modo, a resposta pemedebista canônica é a do adiamento permanente de soluções definitivas. Normalmente considerada como o período do “ajuste estrutural” à nova etapa do capitalismo mundial, a década de 80 foi, na verdade, a do adiamento do ajuste mediante a manutenção da hiperinflação e do fechamento da economia. Não é de estranhar, portanto, que esse adiamento estrutural leve, mais cedo ou mais tarde, à paralisia.


O que explica também, do lado oposto, que a década tenha se encerrado com a opção antipemedebista por excelência, com a eleição de Fernando Collor. A paralisia pemedebista trouxe seu oposto para o centro da arena política: Collor, com uma única bala, queria matar a inflação e o nacional-desenvolvimentismo. No fundo, a oscilação entre os extremos da paralisia pemedebista e do cesarismo alucinado de Collor colocou as bases para o surgimento da nova versão do pacto de desigualdade brasileiro representado pelo Plano Real.


A reorganização que veio com o Plano de 1994 não alterou substancialmente a lógica pemedebista – o que, aliás, não surpreende, se lembrarmos que o próprio FHC se formou na política partidária dentro do MDB/PMDB. Mas o novo modelo de gerenciamento político do período FHC deu ao pemedebismo direção e sentido, submetendo essa cultura política a um sistema bipolar que o conteve em limites administráveis.


Em lugar dos dois extremos – pemedebismo ou Collor – FHC colocou a ponta seca do compasso em um novo centro político, estabelecendo a partir daí dois polos no sistema, um liderado pelo PSDB, o outro pelo PT. Além dos aliados históricos de cada um dos lados, a regra seria construir uma coalizão de “A a Z” sob a liderança do polo no poder.

Como já deve estar claro a esta altura, controlar a inflação significava ao mesmo tempo controlar a tendência pemedebista da política brasileira. É nesse sentido que a aliança PSDB/PFL foi, literalmente, a outra face da moeda, do Real. Controlar a inflação não dependia apenas de um aprendizado técnico-econômico com os sucessivos fracassos dos planos anti-inflacionários de 1986 a 1991: Cruzado (I e II), Bresser, Verão, Collor (1 e 2). Dependia ao mesmo tempo da construção de um bloco político capaz de superar a crise estrutural de hegemonia da redemocratização que é chamada aqui de pemedebismo.
Ou seja, há um vínculo interno entre a “inflação inercial” e a “política inercial” que se cristalizou sob a forma de sistema político a partir da década de 80.

Ao se aliar ao PFL e, posteriormente, a quem mais estivesse disponível, o governo FHC estabeleceu um campo de forças em que ao PT só restariam duas possibilidades: permanecer indefinidamente na oposição ou fazer um movimento em direção ao centro político, com uma nova e mais “flexível” estratégia de alianças.

No caso de um movimento do PT em direção ao centro, a condição propriamente partidária imposta pelo modelo era uma só: o partido conseguiria vir a governar o país se, além dos parceiros históricos, viesse a se aliar ao PMDB. O que efetivamente aconteceu no governo Lula, ainda que somente depois do cataclismo do “mensalão”. “Mensalão”, aliás, que marca o ponto de chegada e o apogeu da engenharia política do Plano Real. Foi quando, pela primeira vez em 25 anos, uma crise política não afetou a economia.


Mas a história ainda não chegou a 2005. Para chegar ao primeiro mandato de Lula é preciso ainda lembrar de pelo menos mais uma das mudanças estruturais decisivas introduzidas pelo Plano Real e que marcou o ocaso do poder dos governadores de estado, tradicionais candidatos a gerentes do condomínio político pemedebista brasileiro. O primeiro movimento de neutralização veio com a própria estabilidade da moeda, que teve um efeito devastador sobre a dívida pública. Sem o permanente adiamento representado pela inflação, os governadores se viram em dificuldades orçamentárias intransponíveis e, do outro lado, encontraram no governo federal um duro negociador na reestruturação das dívidas estaduais.


O segundo movimento foi concomitante. Retirando do âmbito dos estados praticamente toda e qualquer possibilidade de praticar política fiscal e monetária – o que era comum no período inflacionário – o governo federal garantiu o monopólio da irresponsabilidade fiscal, julgada então necessária para alcançar a estabilização econômica pretendida. A mesma irresponsabilidade que negou aos estados. Não por acaso, foi o tempo mais quente da chamada “guerra fiscal”, em que os governadores lançaram mão dos parcos e únicos recursos que lhes restaram para obter investimentos em troca de isenções e benefícios tributários e fiscais.

A concentração dos principais instrumentos de política fiscal e monetária nas mãos do governo federal foi essencial para neutralizar essa que foi uma das principais fontes de alimentação do pemedebismo na década de 80. E seu episódio inaugural e mais marcante ocorreu antes mesmo da posse de FHC como presidente: a intervenção no Banco do Estado de São Paulo, o Banespa, realizada às vésperas da posse do governador do estado, até então principal líder do PSDB, Mario Covas.


Depois de perder sua segunda eleição presidencial em 1994, Lula tomou a decisão de fazer mudanças significativas no PT, reorientando radicalmente sua estratégia. Tinha chegado à conclusão de que o Plano Real havia alterado profundamente a lógica da política brasileira, a começar pelo fato de ter resolvido o principal problema nacional, a inflação. Foi nesse momento que começou a ser construída tanto uma maioria partidária disciplinada como uma nova política de alianças partidárias e eleitorais.

O movimento inaugural nessa direção foi a eleição de José Dirceu para a presidência do PT. A partir de 1995 – e não sem conflitos com o próprio Lula, diga-se – Dirceu implementou à risca o plano, isolando ou mesmo expulsando militantes e grupos políticos inteiros que se opunham à nova orientação, construindo um sólido bloco de apoio majoritário, e buscando estabelecer pontes com partidos e figuras políticas até então consideradas como inimigos. O ápice dessa estratégia se deu na eleição de 2002 e seu símbolo é a candidatura a vice-presidente na chapa de Lula do empresário José Alencar, então senador do hoje extinto PL.


Lula ganhou a eleição sem o apoio formal do PMDB. Mas não conseguiu estabilidade para governar até o momento em que cumpriu o destino que lhe tinha sido reservado pelo arranjo imposto pelo Plano Real. Não que Lula não tenha tentado fugir a essa camisa de força herdada. Ao contrário, escolheu inicialmente construir novas alianças apenas com a miríade de pequenos e médios partidos à disposição e fazer acordos individuais com parlamentares do PMDB, não com o partido como um todo, ou pelo menos com a porção dele que pudesse ser atraída para a base do governo.


Nesse momento de seu primeiro mandato, Lula operava ainda como árbitro do PT e não como presidente da República. O governo estava dividido essencialmente entre facções do partido que continuavam a se digladiar por espaço como antes. E Lula continuava a ocupar a posição de “último recurso” que sempre ocupou nas disputas internas do partido, interferindo diretamente apenas quando o seu próprio prestígio estava em causa.

Essa situação fez com que as figuras de José Dirceu e de Antonio Palocci se sobressaíssem e passassem como que a canalizar todas as disputas internas ao governo em duas facções concorrentes. Dirceu apoiado no PT, Palocci como porta-voz de outras forças partidárias dentro do governo e do mercado financeiro. Por essa época, as negociações políticas eram extremamente delicadas, já que Lula não autorizava (nem desautorizava, ao mesmo tempo) ninguém a negociar em seu nome.


Foi essa instabilidade estrutural que o levou a recusar, em 2004, o acordo com o PMDB construído durante meses por José Dirceu. Entre outras coisas, porque isso significaria também, nesse contexto, dar poder demais a Dirceu na disputa interna. O resultado foi o abismo do “mensalão”. E a consequente aliança formal com o PMDB, em 2005, momento em que Lula finalmente assumiu a Presidência da República e o papel de articulador político de seu próprio governo.

E, quando parecia que o scriPT traçado em 1994 estava sendo seguido à risca, Lula deu o troco. Em lugar de apenas se limitar a trazer o PMDB e o estritamente necessário para a sustentação política do governo, passou a ampliar sistematicamente o centro político estabelecido a partir do Plano Real e a tornar quase impossível a vida de um oposicionista. Com taxas de aprovação popular jamais vistas, Lula investiu contra a lógica da polarização que organizava todo o sistema. Manteve-a apenas nos limites do necessário para alcançar os efeitos eleitorais pretendidos. Mas, de fato, roubou o chão do polo liderado pelo PSDB.


Lula esteve em condições de ampliar de tal maneira o centro político que a polarização praticamente desapareceu. Deu à oposição a alternativa de aderir ou de se encantoar na extrema-direita. Ou seja, não lhe deu alternativa. Ou lhe deu uma alternativa ainda mais estreita do que aquela que lhe tinha sido imposta por FHC.

Esse movimento solapou de tal maneira as bases do sistema político do Plano Real que é difícil imaginar como elas poderiam ser hoje recompostas. O acordo selado em torno do centro político se tornou de tal maneira amplo que toda e qualquer polarização parece artificial. Artificialismo, entretanto, que tem sua utilidade eleitoral, sem dúvida. E que explica também por que a eleição de 2010 ficou entre o chocho e o abstruso, sem nada de realmente relevante entre as duas coisas.

Em uma sociedade que – por muito boas razões, diga-se – não acredita em consensos, o primordial é tentar garantir não ser atropelado por um dos propalados “consensos” do momento. Como por toda a América Latina, as eleições da última década significaram a ascensão de pobres e remediados à condição de representados políticos.


O que talvez seja específico do caso brasileiro é a maneira como ocorre a “inclusão”. Também no caso da representação do que André Singer chamou de subproletariado, tento mostrar aqui que é o mesmo mecanismo característico da cultura política brasileira que se encontra em ação: o de igualar “estar incluído” com “ter poder de veto”.

Lula representa quem nunca teve verdadeiramente representação, não porque simbolize um conservadorismo que seria próprio aos excluídos políticos, mas porque é o fiador de que não haverá retrocesso nesse avanço democrático à brasileira. Ao contrário da ladainha conservadora, ser representado não é apenas ser objeto de políticas públicas; é igualmente acreditar que não será atropelado por mais um dos muitos “consensos” que o país produz de quando em quando.


É por tudo isso que penso que André Singer tem razão em dizer, no ensaio de piauí, que “durante um tempo longo o norte da sociedade será dado pelo anseio histórico de reduzir a pobreza e a desigualdade no Brasil”. Como me parece ter razão ao acrescentar em seguida: “Em que grau e velocidade, a luta de classes dirá.” Ocorre que a determinação do “grau e velocidade” depende também de análises políticas concretas, que sejam capazes de mostrar as tendências do sistema. Depende de uma análise política capaz de vincular esse movimento à própria lógica da democracia brasileira, com os potenciais e os obstáculos ao seu aprofundamento. Do contrário, a posição do lulismo como pretenso momento inaugural de uma era perde o gume analítico e seu eventual poder explicativo.


O que tento mostrar aqui é que há uma tendência à paralisia no sistema político brasileiro cuja lógica chamo de pemedebista, cujas raízes devem ser buscadas na década de 80, no início da redemocratização brasileira. Tento mostrar também que essa tendência intrínseca impõe dificuldades estruturais à produção de polarizações consistentes e duradouras. E que o momento atual é de enfraquecimento da polarização, um momento em que a paralisia pode suplantar uma vez mais o sistema bipolar instituído pela lógica política do Plano Real.


No caso da reviravolta política de Lula examinada aqui, por exemplo, o alargamento do centro político e o enfraquecimento da polarização tiveram por consequência trazer para o primeiro plano justamente o pemedebismo, até então subordinado e subterrâneo. E essa novidade é um elemento determinante do “grau e velocidade” em que poderão se dar ou não as transformações no país.

O marco do novo surto pemedebista pode ser representado pela resistência de José Sarney na presidência do Senado apesar de uma saraivada de denúncias, em 2009. O apoio decisivo de Lula à permanência de Sarney na presidência do Senado selou a aliança com o PMDB para a eleição presidencial de 2010 e, ao mesmo tempo, marcou a volta do pemedebismo à disputa pela hegemonia da gramática política brasileira.
Ao contrário de casos anteriores, que resultaram em renúncia ou cassação de mandatos, a permanência de Sarney mostrou que o centro político ganhou tal amplitude e poderio que pode em grande medida ignorar protestos sistemáticos e generalizados da sociedade.

Uma contraprova do caráter determinante dessa cultura política de fundo pemedebista está em que, desde o primeiro mandato, Lula caminhou justamente por onde não encontrou vetos: nos aumentos reais do salário mínimo, na ampliação dos programas sociais, nas reformas microeconômicas do crédito. Mas isso estava ainda longe da política desenvolvimentista do segundo mandato, que induziu a criação de oligopólios nacionais com pretensões de internacionalização.

Na nova política, os grupos escolhidos pelo governo como vencedores tinham todas as razões para comemorar, assim como os demais tinham motivo de sobra para se recolherem, evitando possíveis represálias.
Além disso, o crescimento econômico expressivo e praticamente contínuo tornou os reais perdedores apenas residuais. Seja por que razão for, o fato é que a nova orientação desenvolvimentista não encontrou resistência social e política relevantes. E, coincidência ou não, esse desenvolvimentismo movido a subsídios, desonerações e subvenções só deslanchou com a entrada definitiva do PMDB no governo, depois do “mensalão”.

Tão ou mais importante que isso, a chegada do PMDB ao governo Lula trouxe ainda um elemento novo ao modelo de liderança bipolar herdado da engenharia política imposta por FHC. Lula criou onde e como pôde políticas sociais compensatórias. Só que repartiu de maneira desigual os seus dividendos políticos.


O PT ficou com a formulação, com o controle dos projetos e com o crédito de paternidade (ou maternidade, como se queira). E o PMDB recebeu a maior parte da execução das políticas – justamente a parte que contempla o poder local e abastece a política miúda. O programa Luz para Todos, não por acaso criado por Dilma Rousseff quando ministra das Minas e Energia, pode ser visto como caso exemplar dessa lógica lulista de repartição de dividendos políticos.

É justamente essa lógica de repartição de dividendos políticos que está ameaçada de agora em diante. E não apenas porque a própria repartição terá de ser negociada. O sucesso do Plano Real e a popularidade de Lula conseguiram ainda contrabalançar, conter e direcionar em alguma medida o pemedebismo. Mas são eventos passados e irrepetíveis.


Quanto mais se radicalizou a polarização entre PT e PSDB, tanto mais o pemedebismo se impôs. Não se trata de dizer sem mais que a polarização é falsa e que não há diferenças entre os dois polos. Mas, quanto mais o pemedebismo avança, mais a polarização é amplificada artificialmente, servindo à manutenção de uma lógica política profunda que não é nem petista nem tucana.


Durante dezesseis anos, o sucesso do Plano Real e os altíssimos índices de aprovação do governo Lula permitiram manter sob certo controle a tendência do sistema à pemedebização. Parece que não mais. A possível oposição se encontra hoje entrincheirada justamente em governos estaduais, o lugar político menos propício para enfrentar as coalizões de “A a Z” que caracterizam os governos desde FHC. Além disso, um Congresso ainda mais fragmentado serve de caldo de cultura política ideal para a expansão do pemedebismo.

A ironia e a tragédia da história estão em que o pemedebismo encontrou na “blindagem” da economia contra “interferências políticas” o elemento que lhe faltava para voltar a disputar a hegemonia política, para sair de sua posição de relativa subordinação de mais de quinze anos para um novo protagonismo.
Note-se, aliás, que o fiel depositário do pemedebismo, o partido que lhe deu origem, procurou mesmo se mostrar fiador dessa “blindagem”, filiando quadros tão importantes e incongruentes entre si como Henrique Meirelles e Delfim Netto. O resultado regressivo desse processo é visível a olho nu: uma política que tende a se descolar da sociedade, uma política que tende a se fechar sobre si mesma. E que, no limite, pode levar à paralisia.

Tornado aliado em sentido enfático nas eleições de 2010, o PMDB vai levar a disputa entre situação e oposição para dentro do governo. É por isso também que o tamanho nominal da bancada parlamentar que apoia o governo tem menos importância do que as matérias específicas em pauta, do que o estado da disputa interna ao governo. Ou seja, a mais importante disputa política será entre o PMDB e o pemedebismo, de um lado, e o PT e seus possíveis aliados, de outro.


Não será uma briga bonita de ver. As fábricas de dossiês vão se multiplicar como nunca. Já durante a eleição de 2010, a ministra-chefe da Casa Civil, Erenice Guerra, foi a primeira baixa, o prenúncio do que virá. Sua queda dá uma pálida ideia de como serão os embates futuros.

A primeira das duas batalhas decisivas será uma vez mais a eleição municipal – a mesma, aliás, que esteve na origem do “mensalão”, é importante lembrar. Depois de 2012, a segunda batalha acontecerá na data limite para parlamentares trocarem de partido sem penalidades, na segunda metade de 2013. Enquanto isso, o PMDB fará de tudo para colocar sob sua órbita de influência o maior número possível de parlamentares de outros partidos.


A primeira escaramuça – que de maneira alguma será decisiva – acontecerá na eleição para a presidência da Câmara e do Senado, no início de 2011. Sendo que a figura de José Sarney é aqui emblemática: o atual presidente do Senado e candidato à recondução ao cargo foi justamente o presidente no auge do pemedebismo da década de 80. Sabe muito bem o que significa estar nas mãos de um Congresso que funciona segundo essa lógica.

Não é nem um pouco fácil imaginar o lugar que poderá ter a oposição durante o governo Dilma. Há quem confie em supostas leis da política e ache que é assim mesmo, que a oposição vai se reorganizar e acabar aparecendo. Mas não são muitos esses otimistas científicos.


No momento, resta à oposição formal hibernar. Aliás, tudo indica que também a disputa pela liderança do PSDB será duríssima. Aécio Neves decidiu ir para o tudo ou nada contra a pretensão de Serra de presidir o partido. Se perder para o grupo paulista, Aécio não permanecerá no PSDB senão o tempo suficiente para encontrar um solo alternativo para suas pretensões presidenciais.


Mas, mesmo quando conseguir se reorganizar, a oposição pode, no máximo, servir de massa de manobra na disputa entre PT e PMDB. E manter a esperança de que o pemedebismo afinal vença e venha a produzir a paralisia que lhe é própria. Isso seria capaz de dar novo fôlego à oposição, talvez em aliança com o próprio PMDB. Mas também esse não é um cenário alentador para a democracia brasileira. Porque, no fundo, o jogo político não vai se dar entre situação e oposição, mas entre a crise de um sistema organizado em polos e a pemedebização.


Uma eventual hegemonia do pemedebismo tenderia a levar a uma situação semelhante ao estado de paralisia política dos anos 80. Em termos concretos, poderia comprometer seriamente a Copa do Mundo ou as Olimpíadas, por exemplo, já que as obras de infraestrutura são as primeiras a serem afetadas por uma crise política profunda. Marcaria o retorno da concomitância entre crises políticas e abalos na economia.


Seja como for, se não é possível prever os resultados de uma regressão política dessa magnitude, é pelo menos possível dizer que, no médio e longo prazo, sua efetiva ocorrência exigirá uma reorganização de grandes proporções. Porque o sistema político não sobrevive sem polarização. E a polarização dos últimos quinze anos não tem mais densidade suficiente para organizar e estruturar o sistema.

Um sistema em estado de não polarização é o elemento do pemedebismo. E, se um cenário regressivo não se deixa ver hoje em toda a sua possível amplitude e gravidade, pelo menos suas marcas mais gerais são bem visíveis: um tempo de bonança, desigualdade e pequena política. Ou até que uma nova polarização se produza para superar uma vez mais a paralisia pemedebista.





Agradecimento


Maria Cristina Fernandes não tem nenhuma responsabilidade pelo que escrevi acima, mas sem suas sugestões e críticas o texto simplesmente não seria o que é.