O que é este blog?

Este blog trata basicamente de ideias, se possível inteligentes, para pessoas inteligentes. Ele também se ocupa de ideias aplicadas à política, em especial à política econômica. Ele constitui uma tentativa de manter um pensamento crítico e independente sobre livros, sobre questões culturais em geral, focando numa discussão bem informada sobre temas de relações internacionais e de política externa do Brasil. Para meus livros e ensaios ver o website: www.pralmeida.org. Para a maior parte de meus textos, ver minha página na plataforma Academia.edu, link: https://itamaraty.academia.edu/PauloRobertodeAlmeida;

Meu Twitter: https://twitter.com/PauloAlmeida53

Facebook: https://www.facebook.com/paulobooks

domingo, 20 de agosto de 2017

O Ser Diplomata (2006) - Paulo Roberto de Almeida


O Ser Diplomata
Reflexões anárquicas sobre uma indefinível condição profissional

Paulo Roberto de Almeida
Reflexões sobre a profissionalização em relações internacionais,
na vertente diplomacia, para palestra em 4 de maio de 2006
(Ciclo de Debates da Pacta Consultoria, Brasília, dia 4/05, às 19h30).


1) Não se é diplomata, acredito, como se é economista, ou advogado, ou médico. Nós, diplomatas, não pertencemos a nenhuma guilda medieval, a nenhuma corporação de ofício, a nenhuma ordem feita de requisitos estanques, ainda que muitos nos comparem a uma casta, ou a um estamento social, numa acepção bem mais difusa deste conceito weberiano. Ou seja, ser diplomata não é simplesmente uma questão de profissão; é uma vocação, uma questão de status, quase que uma missão, o chamado calling, examinado por Weber em seu famoso estudo sobre a ética protestante e o espírito do capitalismo.
2) Ser diplomata não é apenas uma questão de nomadismo, de gostar de viajar ou de viver fora do país; ser diplomata é ser, antes de mais nada, um ser com raízes na sua terra, um servidor público na acepção mais completa dessa palavra, um funcionário do Estado, antes que de um governo e, como tal, estar identificado com a nação ou com a sociedade da qual se emergiu, na qual nos formamos e para a qual desejamos legar uma situação melhor do que aquela que recebemos de nossos pais e antecessores.
3) Ser diplomata não resulta, simplesmente, de um treinamento ad hoc, adquirido num desses cursinhos preparatórios de seis meses ou um ano, feitos de muita decoreba, alguma simulação para os exames e uma leitura sôfrega da bibliografia recomendada, por mais que ela seja ampla. Ser diplomata resulta de uma preparação de longo curso, adquirida no contato constante com uma cultura superior à da média da sociedade, no cultivo da leitura descompromissada com a aquisição de qualquer saber instrumental, resulta da curiosidade atemporal por todas as culturas e sociedades, passadas ou presentes e, sobretudo, da contemplação ativa da realidade, daquilo que um dramaturgo brasileiro famoso, Nelson Rodrigues, chamava de “a vida como ela é”.
4) Ser diplomata não é estar ou viver obcecado pela diplomacia, fazer dessa atividade o seu último ou supremo objetivo de vida, a sua única ocupação possível ou imaginável, sem outros afazeres ou hobbies. Ser diplomata, ser um bom diplomata significa, também, fazer algo mais no seu itinerário de vida, ter uma outra ocupação, uma distração, um divertissement, ou hobby, outras obsessões e amores na existência, de maneira a poder enfrentar a diversidade da vida, inclusive os altos e baixos da própria diplomacia, quando descobrimos que nem todo diplomata é exatamente um diplomata, naquela acepção que emprestamos ao termo. Ser um bom diplomata é se ver imaginando que, “se eu não fosse diplomata, o que mais, exatamente, eu gostaria de ser?; de onde mais eu poderia tirar motivos de satisfação, aonde mais eu poderia colaborar, com pleno gosto, com a sociedade na qual me formei, no país onde vivo?”. Se soubermos bem responder a esta questão, “o que eu faria se não fosse diplomata?”, já se tem meio caminho andado para ser um bom diplomata...
5) Ser diplomata é saber se colocar acima das paixões e dos modismos do presente, transcender interesses políticos conjunturais, em favor de uma visão de mais longo prazo, afastar posições partidárias ou de grupos e movimentos com inserção parcial ou setorial na sociedade, em favor de uma visão nacional e uma perspectiva de mais longo prazo. Significa, sobretudo, contrapor às preferências ideológicas pessoais, ou de grupos momentaneamente dominantes, ou dirigentes, uma noção clara do que sejam os interesses nacionais permanentes.

Muito bem, uma vez dito o que acabo de expor, o que mais eu poderia dizer a vocês, ávidos de uma legítima curiosidade sobre os segredos da carreira diplomática, sobre o que é ser diplomata, enquanto profissão, enquanto vocação?
É claro que tudo começa em poder ser diplomata, em poder ingressar na carreira, em passar pelo crivo dos exames de entrada, dos requisitos de desempenho na soleira da profissão, ou seja, ultrapassar a porteira da entrada do concurso público: aberto, secreto, universal (ou quase).
Para isso, minha primeira e principal recomendação seria: pense numa preparação de longo curso, de longue haleine, diriam os franceses. E, sobretudo, pensem numa formação essencialmente autodidata. Isto por uma razão muito simples: por melhor que seja um curso universitário, e certamente existem dos bons, dos maus e dos feios, as “faculdades Tabajara”, como dizemos, por melhores que sejam esses cursos, eles nunca vão dar a vocês tudo aquilo de que vocês necessitam para entrar e para ser, já não digo um diplomata prêmio Nobel, mas um bom diplomata, de primeira linha. Quem vai prover o essencial da formação de vocês, são vocês mesmos, é o esforço individual, é o empenho pessoal no auto-aperfeiçoamento, no estudo voluntário, na pesquisa constante.
Em segundo lugar, eu diria que o recomendável seria ter a diplomacia como uma aspiração e, ao mesmo tempo, preparar-se para uma profissão “normal” – não que a diplomacia seja “anormal”, mas ela é relativamente excepcional, só uns poucos são chamados a exercê-la e seria uma pena que todos os demais, não chamados a servir o país nessa área, vivam uma existência de adultos frustrados, de profissionais desgostosos com o que foram levados a trabalhar. Por isso, eu colocaria a diplomacia numa espécie de Gólgota algo inatingível, uma montanha escarpada à qual se ascende com certo sacrifício pessoal (em alguns casos familiar, também), uma recompensa depois de muita labuta. Profissionais que já conheceram experiências diversas na vida civil costumam fazer bons diplomatas; o que não quer dizer que aqueles jovens saídos dos bancos universitários diretamente para a carreira não façam, ou não sejam, bons diplomatas; ao contrário: bem vocacionados, eles farão tudo o que estiver ao seu alcance para bem servir ao Estado e à nação. Mas, alguém dotado de competências outras que não as simples artes diplomáticas – que são as da representação, da informação e da negociação, todos sabem – alguém assim saberá servir ao país com vários outros instrumentos e ferramentas adquiridos na vida prática, seja na veterinária, na engenharia, na agronomia, na economia doméstica ou no corte e costura, whatever...
Em terceiro lugar, eu diria que existem muitas formas de trabalho profissional e de expressão individual dentro das relações internacionais, dentro e fora da diplomacia, estrito senso. Existe a diplomacia empresarial, existe uma diplomacia do agronegócio, uma diplomacia das ONGs, dos jogadores de futebol – hoje um dos principais itens de exportação da pauta brasileira –, assim como existe uma diplomacia na própria academia, mas ela costuma ser das mais chatas, com suas vaidades e torres de marfim. Tudo é uma questão de competência e de dedicação. Sendo competentes na atividade que escolheram e estando contentes no desempenho quiçá temporário daquilo que estão fazendo, vocês serão felizes na vida, farão os outros felizes, e lutarão, talvez, pelo ingresso na carreira com a tranqüilidade que um exame desse tipo requer, não com o desespero ou a obsessão de uma batalha de vida ou morte. Sejam competentes e desempenhem as tarefas nas quais se encontram engajados e vocês já serão bons diplomatas, em qualquer hipótese e em qualquer profissão onde estiverem efetivamente colocados.
Minha mensagem central é justamente esta: o diplomata já é um ser realizado na vida, feliz consigo mesmo, confiante em seus estudos e em sua capacidade; conhecedor do mundo, mesmo que nunca tenha viajado de avião; curioso de todas as artes, mesmo que tenha estacionado num escritório durante vários anos; crítico dos seus professores, mesmo que nunca tenha ousado contestá-los em classe; anotador de livros; recortador de notícias de jornal e de páginas de revista; invasor de bibliotecas; delinqüente reincidente na arte de ler livros em livrarias – o que eu já fiz milhares de vezes –, enfim, uma pessoa totalmente à vontade nas artes do impossível e apaixonada por novos desafios.
Se vocês são um pouco assim, mesmo de forma distraída, desajeitada, totalmente sbagliatta, como diriam os italianos, se vocês também acham que sabem mais do que o chefe, então vocês já são diplomatas, só falta agora ingressar na carreira. Mas isso é uma mera formalidade.

Por fim, e termino aqui esta preleção, caberia abordar a carreira pelo lado prático: uma vez dentro da diplomacia, o que fazer exatamente? Ao lado, das missões clássicas, e tradicionais, do diplomata – que são as de informar, representar e negociar, sobre as quais não me estenderei por sua obviedade elementar –, existem aqueles que acreditam que o diplomata deve igualmente participar de uma espécie de projeto nacional, e aí sua missão seria, não apenas participar e contribuir para o processo de desenvolvimento do país, mas também engajar-se ativamente na transformação do mundo, de maneira a que este sirva, de maneira mais adequada, aos objetivos nacionais de desenvolvimento.
Sou cético quanto a essa extensão indevida das funções do diplomata, ainda que eu reconheça que nossas capacidades analíticas e por vezes executivas possam ser tão boas quanto as de qualquer especialista em políticas públicas. Defendo que o diplomata seja excelente nas suas funções tradicionais e, se possível, agregue valor ao seu trabalho pela dedicação paralela a atividades de pesquisa, similares, em grande medida, às que são conduzidas no âmbito da academia. Existe, obviamente, grande interface e uma notável similitude de métodos entre o trabalho acadêmico e o diplomático, naquilo que se refere à elaboração de estudos, position papers, diagnósticos de situação, reflexões prospectivas e tudo o mais que possa identificar-se com o processamento de informações. O diplomata, contudo, à diferença do seu colega de academia, não se limita a processar informações, ele as utiliza para elaborar posições negociadoras, para propor posturas práticas que o seu país deva assumir nos foros mundiais, nas relações bilaterais, nos desafios do sistema internacional.
Em determinadas instâncias negociadoras, o diplomata pode até ficar, no terreno de batalha, sem instruções precisas da capital quanto a que atitude adotar. Ele deverá portanto contar com todo o seu tirocínio e conhecimento do problema em causa, de molde a poder defender o interesse nacional da melhor forma possível. Na capital, ele deverá, na elaboração de posições, mobilizar todos os recursos técnicos e humanos de diferentes agências governamentais e alguns até privados, de maneira a extrair, na postura negociadora, o máximo de benefícios para o país num determinado contexto negociador.
Em última instância, a matéria-prima essencial do diplomata é a inteligência, e isso não depende de nenhuma fonte externa, mas de sua própria capacidade em acolher todo tipo de conhecimento e colocar essa informação a serviço de seu país.
Abraçando a carreira diplomática, vocês abordam uma carreira aberta sobretudo à inteligência. Cada um deve confiar em sua própria capacidade de trabalho e abrir-se o tempo todo a novos conhecimentos.
Muito obrigado...



Vôo São Paulo-Brasília (Gol 1778), 2 maio 2006, 4 p.
Revisão em 4.05.06. (1591).

Paraninfo da turma de RI do Uniceub em 2006 - Paulo Roberto de Almeida


Ser um bom internacionalista, nas condições atuais do Brasil significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País.

Paulo Roberto de Almeida
Alocução de paraninfo na turma de formandos 2º/2005
do curso de Relações internacionais do Uniceub, Brasília
(16 de março de 2006, 20hs, Memorial Juscelino Kubitschek)

Senhor Coordenador do Curso de RI, Professor Marco Antonio de Meneses Silva, aqui representando todas as autoridades acadêmicas,
Senhora Patronesse homenageada, Raquel Boing Marinucci,
Senhores professores homenageados,
Meu caro amigo e dileto colega de carreira, Professor Rodrigo de Azeredo Santos,
Caro Professor Marcelo Gonçalves do Valle,
Senhora funcionária homenageada, Vanessa de Faria Campanella,
Senhoras e senhores pais e demais autoridades e colegas professores presentes,
Meus caríssimos alunos e agora formandos em relações internacionais,

Estou ligado a este centro universitário a bem mais tempo do que minha curta carreira de professor poderia sugerir. A despeito de ter ingressado como professor nos cursos da faculdade de Direito apenas em 2004, sob pressão do dileto amigo e coordenador, Marcelo Varella, eu já freqüentava o campus do Uniceub desde algum tempo, já que minha esposa, Carmen Lícia Palazzo, lecionou no curso de história durante vários anos. Também estou ligado a esta cidade há muitos anos, quando para cá me mudei, em 1977, ao ingressar na carreira diplomática, tendo servido ao Brasil, por mais de 28 anos, aqui e no exterior. Lembro-me, por exemplo, de, recém chegado a Brasília, ter vindo uma vez ao modesto campus do então Ceub, para ver, acompanhado de colega diplomata, um encarregado de cursos. Naquela ocasião, uma remoção precoce para o exterior impediu que eu me vinculasse à instituição, numa fase que antecede, provavelmente, ao nascimento e à idade atual da maior parte de vocês, que hoje se formam.
Mantive contato preliminar com o curso de relações internacionais do Uniceub ainda em seu estabelecimento, fazendo ali uma palestra antes de minha partida para a Embaixada em Washington, em 1999. Voltei depois em outras ocasiões, para palestras ou encontros com professores. Em todas essas oportunidades, testemunhei o empenho desta instituição em oferecer um curso de RI que se igualasse aos melhores do Brasil e que servisse, adequadamente, aos propósitos de cada um de vocês de obter a melhor formação possível, de maneira a habilitá-los a enfrentar a dura competição pelo trabalho na vida profissional ou a continuar os estudos em nível de pós-graduação.
Desejo, antes de tudo, agradecer a todos pelo honroso convite para servir de paraninfo nesta cerimônia de colação de grau. Isto se deve, aparentemente, ao fato de que eu possa ter servido como uma espécie de bibliografia ambulante, ou seja, de que alguns de meus livros possam ter eventualmente ajudado no propósito de iniciá-los nos meandros das relações internacionais, ou, melhor ainda, à chance de que vários de meus textos estejam livremente disponíveis em meu site na internet, podendo, assim, ter salvado mais de um trabalho de última hora. Foi para isso mesmo que montei, e continuo a alimentar, um site que oferece uma espécie de concorrência desleal a vários dos meus editores. Mas nenhum deles ainda protestou por isso.

Meus caros formandos,
Creio já ter oferecido, por meio de meus livros, palestras ou textos esparsos, mais de uma contribuição ao estudo e à formação na área das relações internacionais no Brasil e do Brasil. Assim, não pretendo voltar a tocar, agora, nos temas que ocuparam seus dias e noites nos últimos quatro ou cinco anos, o que faz uma boa parcela de vida. Prefiro deixar as relações internacionais de lado e ocupar-me daquilo que na verdade tem sido a minha paixão e que representa grande parte de meus desesperos no último meio século, ou quase: o próprio Brasil.
Intitulei esta alocução, ainda que vocês não possam ver este texto (mas ele já está em meu site), desta forma: “ser um bom internacionalista, nas condições atuais do Brasil, significa, antes de tudo, ser um bom intérprete dos problemas do nosso próprio País”. O que eu quero dizer com isto?
Vocês adquiriram uma formação de internacionalista ou, pelo menos, pagaram para isso. O canudo recebido, no entanto, é uma simples formalidade, pois a verdadeira formação de vocês deve ser feita no exercício profissional e no estudo constante e continuado das matérias que os ocuparam nos últimos anos e muitas outras mais. Qualquer que seja a universidade, e sua excelência relativa, ela nunca vai poder fornecer, a cada um, todos os elementos de formação de que necessitam para convertê-los em bons profissionais na vida prática. Por isso, o aperfeiçoamento constante e o estudo regular, na base do autodidatismo e das leituras auto-impostas, devem ser a norma que precisa continuar a pautar suas vidas daqui a diante. Minha primeira recomendação seria: assim que puserem o diploma na parede e enquadrarem as fotos de formatura, voltem aos estudos, em instituições ou por conta própria. Não parem, sobretudo, de se especializar e de enriquecer o currículo com novas fontes de saber e de conhecimento, adequadas à carreira que vocês pretendem seguir.
Mas o meu argumento, hoje, é o de que, independentemente da carreira que vocês vão agora perseguir ou, em alguns casos, continuar e a despeito de quaisquer projetos que vocês possam ter na área de relações internacionais, vocês são, essencial e fundamentalmente, internacionalistas brasileiros. Eu gostaria de acentuar o adjetivo, isto é, vocês são profissionais atuando a partir da realidade brasileira e possuindo uma visão global que busca, ou que pelo menos deveria buscar, interpretar o mundo a partir do Brasil, de seus problemas e de suas necessidades.

Quero dizer basicamente o seguinte: o Brasil construiu, ao longo das últimas décadas, uma economia industrial relativamente desenvolvida, sob certos aspectos até sofisticada, haja vista a capacitação tecnológica exibida em várias áreas avançadas, como na construção aeroespacial ou no agronegócio como um todo. Ele também consolidou, no decorrer das últimas duas décadas, um sistema democrático fundamentalmente estável, ainda que nossa democracia seja de baixa qualidade intrínseca e de pouca densidade institucional, na qual os direitos fundamentais do cidadão, sobretudo os mais humildes, nem sempre são respeitados. Ele conseguiu montar, igualmente, um sistema científico de inegáveis méritos ao nível da pesquisa básica, mesmo se deixando muito a desejar, ainda, no que se refere à transposição desta para o plano do desenvolvimento tecnológico.
Não obstante deficiências estruturais e sistêmicas, que dificultam um processo sustentado de crescimento econômico a ritmos desejáveis e necessários, para fins de distribuição de seus frutos, basicamente em virtude da excessiva carga tributária que caracteriza nosso país, o Brasil possui uma economia moderna e competitiva capaz de rivalizar com outros países emergentes ou, em determinados setores, com as nações mais avançadas, em termos de desenvolvimento material. Por isso mesmo, estava parcialmente correto o líder político que disse que o Brasil não é mais um país subdesenvolvido, mas um país fundamentalmente injusto, ainda que uma coisa possa não obstaculizar a outra, uma vez que a injustiça pode, também, ser revelada pelo subdesenvolvimento relativo de determinadas instituições, entre elas as educacionais, ou da própria justiça, cujas condições de morosidade e de incerteza quanto à jurisprudência podem igualmente impactar negativamente o ritmo de crescimento econômico.
Em outros termos, o Brasil já não apresenta, no plano técnico, obstáculos intransponíveis aos processos de modernização tecnológica e de aprimoramento da gestão empresarial, mas ele ostenta, sim, graves problemas distributivos e várias outras disfuncionalidades em sua organização institucional. Todos esses problemas têm uma origem essencialmente doméstica, eles são 100% “made in Brazil”, foram criados por nós mesmos e só poderão encontrar soluções, todas elas internas, a partir de nossos próprios esforços e por uma vontade nacional genuinamente auto-induzida.
Esta minha convicção se baseia em simples observação dos problemas básicos do Brasil atual. E quais são eles? Baixo crescimento econômico, insegurança e violência na vida cotidiana, déficits orçamentários e graves problemas fiscais, desequilíbrios regionais e enormes desigualdades sociais, disfuncionalidades nas instituições políticas e corrupção nos negócios públicos, má qualidade da educação, deterioração do meio ambiente, inclusive urbano, descrença, enfim, no futuro do país, de que é prova visível o crescente movimento migratório, num país que se caracterizou sempre pelo acolhimento de todo tipo de estrangeiro.
Todos esses problemas não resultam de uma alegada dominação estrangeira sobre nossos recursos naturais, de qualquer imposição imperialista quanto ao usufruto de nosso trabalho produtivo, de nenhuma compulsão exterior ao nosso próprio modo de vida, no que se refere ao funcionamento das principais instituições nacionais, de nenhum complô alienígena que visaria, supostamente, impedir nossa capacitação tecnológica ou o exercício de uma pretendida liderança natural na região.
O que tem a ver, por exemplo, uma imaginária dominação imperialista com a nossa não tão prosaica corrupção política? Em que os capitalistas estrangeiros seriam responsáveis pela má qualidade da educação brasileira, ou pela falta de segurança em nossas metrópoles, ou pelo mau estado de nossas estradas, ou pela condição calamitosa do atendimento hospitalar para as pessoas de baixa renda? Por que, em outra vertente, o FMI seria culpado pelo déficit estrutural e pelo descalabro e crise previsível do nosso sistema previdenciário? Em que sentido o sistema financeiro internacional estaria na origem dos nossos desequilíbrios orçamentários ou seria capaz de impor essas taxas de juros absurdamente altas, quando elas resultam de nossa própria compulsão para o gasto sem medida e do acúmulo contínuo de uma dívida interna que vai continuar pesando na vida dos nossos filhos e netos? Por que não conseguimos crescer adequadamente, quando o mundo se expande a taxas que são o dobro das nossas e os emergentes fazem o triplo disso?
Não vejo, sinceramente, nenhuma origem estrangeira na raiz dos nossos males principais, assim como tampouco vislumbro qualquer solução vinda de fora a todos esses e cada um dos nossos problemas mais cruciais. Por isso mesmo, quando vejo essas imensas manifestações de protesto contra o “vil imperialismo” e contra a “globalização assimétrica”, em ruidosos fóruns que nos prometem “um outro mundo possível”, mas que sempre se esquecem de comunicar a receita milagrosa desse mundo imaginário, eu fico pensando se é por ingenuidade, por desfaçatez política ou por pura desonestidade intelectual que tantas pessoas medianamente bem informadas continuam a repetir esses slogans furibundos, tão cansativos quanto enganadores. Acho, sinceramente, que todas as reações paranóicas e xenófobas, para não falar de uma certa visão conspiratória da história, são não apenas anacrônicas, mas profundamente equivocadas e ilusórias.

Meus caros formandos,
Não nos deixemos iludir: as causas dos nossos angustiantes problemas estão aqui dentro mesmo, assim como terão de ser genuinamente nacionais os diagnósticos e as soluções factíveis a cada um deles. O verdadeiro internacionalista saberia, aliás, fazer essa constatação elementar: o sistema internacional oferece, por certo, desafios e riscos a qualquer país inserido nos circuitos da globalização econômica e da interdependência planetária, mas ele não é de nenhum modo responsável pelas nossas mazelas principais ou pelas nossas deficiências mais primárias.
A velha arenga das alegadas “perdas internacionais”, ou a responsabilização da “dependência externa” pelas notórias e manifestas carências da sociedade nacional já não convencem mais ninguém, e quem ousa ainda empreender esse tipo de discurso só pode ser chamado daquilo que é, verdadeiramente: ou um demagogo ou um simples enganador. De resto, seria precisa muita ingenuidade ou muita má-fé, para atribuir a outros as raízes de todos esses problemas a que já me referi.
Dessa forma, não tenho hesitação em afirmar: a primeira condição que vejo como importante para que vocês se habilitem enquanto internacionalistas competentes e enquanto profissionais eficientes seria uma leitura apropriada dos problemas nacionais. A partir daí, vocês serão capazes de exibir uma visão igualmente correta dos dados da realidade internacional, em sua dimensão própria e em sua interação com aqueles problemas domésticos. Vocês são internacionalistas brasileiros, mas a brasilidade deve vir antes do internacionalismo. Por isso, mesmo buscando uma maior especialização em questões internacionais, não deixem de estudar o Brasil e seus problemas. O bom internacionalista é aquele que sabe, em primeiro lugar, situar corretamente o seu país no quadro das relações internacionais, a partir dos dados primários da realidade nacional.
Por isso, sejam internacionalistas conseqüentes, começando por conhecer profundamente o seu próprio País! Esta é uma regra de ouro, que sempre guardei comigo, como guia para os meus estudos e trabalho durante toda a minha vida. De resto, todos e cada um dos meus livros, independentemente do conteúdo mais ou menos “diplomático” ou de “política internacional” que eles possam conter, tratam, básica e essencialmente, de um único personagem: o Brasil!

Meus sinceros parabéns a todos vocês, a seus pais e professores e o meu ainda mais sincero reconhecimento por esta oportunidade de dirigir-me a alguns dos meus, até aqui não revelados ou ainda pouco conhecidos, leitores. Sejam felizes, junto de seus familiares, amigos e colegas, mas lembrem-se sempre: o Brasil antes de tudo!

Muito obrigado!

Paulo Roberto de Almeida
[8 de março de 2006]

Meu primeiro emprego (nao foi a diplomacia) - Paulo Roberto de Almeida (2003)


Primeiro Emprego – Depoimento Pessoal e Reflexões

Paulo Roberto de Almeida
Respostas a perguntas colocadas pela Editora Abril
(para elaboração do Guia do Primeiro Emprego)

1) Qual foi o seu primeiro emprego na vida? E na área (se não tiver começado nessa área)? Quantos anos tinha nas ocasiões citadas?
            Comecei a trabalhar muito cedo na vida, em torno de 12 anos, em trabalhos informais de adolescente (clube de tenis e supermercado), nos quais não havia registro em carteira ou pagamento regular de salário. Entre os 16 e 20 anos, fui auxiliar de escritório em duas grandes empresas (brasileira e multinacional), ao mesmo tempo em que passei a estudar  (segundo ciclo do secundário) pela noite. Após uma longa interrupção para estudos universitários de graduação e mestrado, entre 1971 e 1976 (que realizei no exterior, combinado ao exercício não regular de atividades remuneradas), retornei ao Brasil em 1977, passando a desempenhar-me como professor em faculdades de São Paulo.
            Meu trabalho como servidor público federal, na carreira de diplomata, teve início em dezembro de 1977, já com 28 anos. Desde essa época (um quarto de século já), servi no exterior em diversas missões diplomáticas e no Brasil (Ministério das Relações Exteriores, em Brasília), geralmente na área econômica. Mais recentemente fui chefe da Divisão de Política Financeira e de Desenvolvimento do Itamaraty, de 1996 a 1999, e desde outubro daquele ano sou Ministro Conselheiro na Embaixada em Washington, o mais importante dos postos externos do Ministério das Relações Exteriores.

2) Como era seu relacionamento com o chefe (ou o superior)?
            Tive vários chefes ao longo de uma carreira profissional que teve início muito jovem na iniciativa privada e depois se prolongou, no essencial, no governo. Sempre gozei da confiança de meus chefes, pela dedicação demonstrada no trabalho e pela boa disposição em cumprir sempre um pouco mais do que seria normalmente esperado. Com um desses chefes, trabalhei em diversas ocasiões na carreira diplomática, o atual representante diplomático do Brasil em Washington, Embaixador Rubens Antônio Barbosa. Com ele trabalhei ao ingressar na carreira diplomática e três vezes mais, sempre a seu convite e na base da confiança pessoal: desde 1977, portanto, venho desfrutando da confiança de um dos diplomatas mais distinguidos do serviços exterior brasileiro.


3) Analisando o passado, existe algum erro ou deslize - engraçado ou até constrangedor - que acredita ter cometido por conta da idade, da falta de experiência?
            Sim, logo ao início da carreira diplomática, por ter ingressado por concurso direto e não mediante curso do Instituto Rio Branco, como costuma ser a norma, tinha pouca experiência com linguagem diplomática e procedimentos tícpicos da carreira. Meu primeiro telegrama escrito destoava totalmente do estilo habital empregado no serviço exterior, algo como se um “paisano” fosse chamado a exercer o comando de alguma tropa militar. Isso revela que uma boa preparação, com o conhecimento adequado de normas e procedimentos aplicados em qualquer profissão ou atividade, é absolutamente essencial para um bom desempenho profissional. A boa disciplina no exercício das funções também constitui requisito essencial quando se trabalha numa grande burocracia, pois a boa organização no trabalho depende de um certo número de regras de convivência.

4) Que lições tirou do primeiro emprego?
            Nunca se deve chegar num primeiro emprego como se não se necessitasse de treinamento ou aperfeiçoamento técnico e profissional. Atitudes do tipo “eu sei fazer”, “eu sei tudo”, “deixa comigo”, geralmente conduzem a desastres, ou pelo menos a situações de constrangimento funcional. Um pouco de humidade e uma boa disposição para aprender e, antes de tudo, para perguntar são essenciais para um bom desempenho nas etapas iniciais da carreira.
            Como regra geral, e não apenas no primeiro emprego, tenho por norma que o bom aprendizado se resume geralmente a duas fontes de conhecimento e de aprendizado: bons livros e convivência com gente mais esperta e experiente. Geralmente se aprende mais na leitura e no convívio com gente capacitada e com experiência do que nos estudos formais de escola, onde se perde tempo com matérias que pouco servirão na vida. Não estou recusando a ncessidade do diploma, ou da disciplina e sistemática que são próprios do ensino convencional, mas todos podem constatar a desadequação dos curriculos escolares – necessariamente tradicionais e defasados – em relação a aspectos práticos que serão úteis no desempenho profissional.
            Repito: se aprende muito nos livros e no contato com gente mais esperta, o que de certa forma confirma uma velha constatação do senso comum: o verdadeiro aprendizado é auto-didata e a escola pode ensinar alguma coisa, mas educação mesmo é um processo necessariamente pessoal e derivado do esforço individual.

5) Para alguém que está procurando emprego na área, quais cuidados você recomenda para o candidato à vaga se sair bem (cuidados com aparência e roupas, comportamento social, somente preparo intelectual, maturidade, etc)?
            A carreira diplomática é obviamente única nos seus requisitos de entrada, não apenas em termos de uma grande bagagem intelectual acumulada ao longo de anos de estudo e preparação dedicada, mas também no sentido em que o diplomata deve exibir algumas qualidades de convivência e de interação social que serão importantes no desempenho posterior. Por isso os exames de ingresso na carreira envolvem não apenas disciplinas tradicionais, mas também entrevistas diretas com banca examinadora que julga as aptidões do candidato para aquele tipo de exercício profissional (a maturidade entra em linha de conta nesse contexto, assim como o comportamento social). O cuidado com sua própria aparência (modo de vestir, portanto) também é avaliado.

6) Para finalizar, preciso de mais três informações: idade, local de nascimento e faculdade(s) que cursou.
            Nasci em 19 de novembro de 1949, na cidade de São Paulo: estou portanto com 53 anos atualmente, praticamente a metade vividos no exterior.
Iniciei estudos de ciências sociais na Universidade de São Paulo em 1969, tendo interrompido porém os estudos no curso do segundo ano, após que medida arbitrária do regime militar então em vigor resultou na aposentadoria compulsória de vários professores (entre eles Fernando Henrique Cardoso, Florestan Fernandes, Octavio Ianni e vários outros). Retomei os estudos na Universidade de Bruxelas, onde me graduei em Ciências Sociais em 1974, com a apresentação de dissertação de licenciatura intitulada “Ideologia e Política no Desenvolvimento Brasileiro, 1945-1964”.
Completei mestrado em planejamento econômica na Universidade de Antuérpia em 1976, com tese de economia internacional intitulada “Problemas Atuais do Comércio Exterior Brasileiro: uma avaliação do período 1968-1974”.
Fiz inscrição para doutoramento em Ciências Sociais na Universidade de Bruxelas em 1976, mas retornei ao Brasil em 1977 interrompendo os estudos para ingresso na carreira diplomática; eles só seriam retomados em 1981, quando refiz meu projeto de tese e efetuei nova inscrição, sempre na Universidade de Bruxelas. Obtive o doutoramento por essa universidade em 1984, com defesa de tese que mereceu “grande distinção” sobre “Classes sociais e poder político no Brasil: uma avaliação dos fundamentos empíricos e metodológicos da revolução burguesa”.
Já fui professor de Sociologia e de Economia Internacional em diversos cursos de graduação e de pós-graduação em São Paulo e Brasília, desde 1985, assim como sou professor convidado em várias universidades estrangeiras. Atualmente sou orientador de mestrado do Instituto Rio Branco, a academia diplomática do Ministério das Relações Exteriores. Tenho diversos livros publicados no Brasil e no exterior, como pode ser constatado em minha página pessoal: www.pralmeida.org.

Paulo Roberto de Almeida, Washington: 22 de maio de 2003

Relacoes Internacionais: profissionalizacao e atividade (2003) - Paulo Roberto de Almeida

Em meados de 2003, estando eu em Washington, fui solicitado por estudantes de RI de MG a responder um questionário para ajudá-los em trabalho de grupo.
Se estou postando somente agora, é porque acredito que minhas respostas possam ter ainda alguma validade 14 anos depois.
Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 20 de agosto de 2017


Relações Internacionais: profissionalização e atividades

Paulo Roberto de Almeida

1) Quais seriam as vantagens e desvantagens da grade curricular multidiciplinar do bacharelado em Relações Internacionais?

            PRA: Como vantagem principal se coloca obviamente o fato de que o profissional em relações internacionais – chamemo-los de internacionalistas – é naturalmente chamado a tratar de matérias as mais diversas possíveis, atinentes aos terrenos econômico, político, jurídico, ou mesmo cultural e tecnológico, daí a ncessidade de uma formação abrangente de maneira a cobrir esses diversos campos. A própria disciplina de relações internacionais retira métodos e substância de várias áreas curriculares, notadamente história, ciência política, economia, direito, sociologia ou mesmo antropologia. Todas essas disciplinas, e possivelmente mais algumas outras (como línguas, metodologia científica, psicologia social, estatística ou sociografia), podem e devem figurar numa grade curricular de um curso desse tipo.
            Eventuais desvantagens não estão propriamente vinculadas à estrutura curricular, mas à natureza do curso em si, que não conduz a uma especialização muito bem delimitada no padrão atual (tradicional) de classificação profissional, uma vez que o egresso desse tipo de curso não está exatamente habilitado para se desempenhar numa carreira de economista, de historiador, de cientista político ou ligado à área jurídica, por lhe faltar talvez alguns instrumentos e perícia em determinadas matérias técnicas ligadas a cada uma dessas especialidades individuais. Daí a preferência de alguns especialistas em fazer com o que o curso de relações internacionais seja na verdade uma pós-graduação, ou especialização estrito senso, e não como ocorre de maneira cada vez mais generalizada no Brasil, um curso de graduação.

2) O mercado se encontra mais receptivo a profissionais não especializados, como o bacharel em Relações Internacionais, ou àqueles preparados em cursos com habilidades específicas, como o caso do bacharel em Direito?

            PRA: Tem havido uma boa recepção do profissional em relações internacionais, mas isso talvez se deva a uma espécie de “novidade do momento”, a uma percepção (talvez incorreta) de que os desafios dos processos de regionalização e de globalização possam ser melhor enfrentados pelos internacionalistas ou mesmo a uma demanda específica que ainda não foi “saturada” nesse nicho. Creio, contudo, que nas condições atuais do Brasil – país ainda insuficientemente “globalizado” e dotado, de todo modo, de poucas empresas verdadeiramente internacionais – o “excesso” de oferta que vem sendo verificado nessa vertente possa não se sustentar no futuro, daí minha preferência por uma abordagem ainda relativamente conservadora da profissionalização nessa área. Ou seja, seria preferível que os profissionais de graduação tivessem habilidades específicas (direito, economia, história etc.), para só a partir daí, então, encaminhar-se para a especialização em relações internacionais.
            O mercado sempre estará preparado, por muito tempo ainda, para os profissinais tradicionais e muito pouco para o internacionalista, que precisará esforçar-se para encontrar seus nichos de trabalho no quadro de demanda ainda organizada segundo os padrões disciplinares e profissionais clássicos.

3) Sabemos que a boa relação com os países que nos cercam pode nos auxiliar em problemas internos. Qual seria o maior exemplo para comprovar tal situação?

            PRA: Os países enfrentam ciclos econômicos ascendente e descendentes em suas atividades produtivas, tanto em função de problemas propriamente internos – esgotamento de determinados recursos naturais, por exemplo – como devido à própria dinâmica econômica internacional, daí a necessidade de determinadas válvulas de escape para dificuldades temporárias. Um exemplo óbvio é o da crise em determinados setores da economia ou em determinadas regiões, o que “obriga”, de certa forma, à “exportação” de “excedentes demográficos”. O Brasil, tradicional país recipiendários de imigrantes ao longo de toda a sua história, tornou-se moderadamente “exportador” de mão-de-obra (geralmente não especializada) para outros países, da própria região ou em outros continentes. A mobilidade profissional deve ser vista, aliás, como algo normal e mesmo desejável, diferentemente, talvez, da simples “expulsão econômica” de desempregados em momentos de crise. Boas relações gerais com vizinhos, e mesmo países distantes, ajuda, nesse sentido, a conduzir de maneira adequada esses movimentos de entrada e saída de pessoas ao longo de alguns anos.
            Da mesma forma, a ocorrência de surtos epidêmicos na população humana ou animal impõe, necessariamente, a cooperação transfronteiriça, assim como problemas ambientais de uma certa dimensão, que não respeitam fronteiras políticas e limites geopolíticos. Cooperação em matéria de segurança – terrorismo, nacrotráfico – também são bons exemplos de que resultados efetivos são melhor alcançados quando as relações políticas entre Estados vizinhos são satisfatórias.

4) Como o senhor avalia o surgimento de inúmeros cursos de Relações Internacionais nos últimos anos? Esse fato traz desvantagens para os jovens recém-formados na profissão?

            PRA: Difícil dizer, neste momento, pois se trata de um fenômeno que tem menos de dez anos, sendo resultado dos progressos da globalização e da regionalização nos anos 1990. As instituições privadas de ensino têm respondido de maneira dinâmica a essa demanda percebida, seguidas de longe por algumas insituições públicas, mas seria preciso esperar um processo natural de “decantação” nessa área para uma avaliação mais precisa. Não creio que se trata de desvantagem, pois do ponto de vista do mercado pode ser até uma vantagem, na medida em que a oferta ampliada provocará uma saudável concorrência entre as instituições, um “barateamento” das tarifas e uma progressiva melhoria de qualidade nos cursos mais competitivos.
            Creio, todavia, que uma certa especialização nas orientações se torna de certo modo inevitável. Uma cidade como Brasilia, governamental e diplomática por excelência, apela naturalmente uma formação centrada nas disciplinas clássicas ligadas à diplomacia (direito, história, línguas, economia internacional). Já métropoles como São Paulo e Rio de Janeiro, onde se localizam a maior parte das empresas internacionais brasileiras e o grosso das multinacionais (em atividades diversas dos serviços e da indústria) requerem formações voltadas para “global business”, com matérias de comércio exterior, finanças internacionais etc. No sul do país, talvez, mais voltado para atividades do agribusiness e em contato direto com os demais parceiros do Mercosul, as especializações podem estar no comércio internacional (inclusive normas relativas ao Mercosul e à Aladi), questões fitossanitárias e diretamente o domínio da língua espanhola. Como se vê, as especializações se farão, inevitavelmente, nas diversas instituições de ensino situadas nessas regiões, quase que de forma natural.

5) Quais seriam, basicamente, suas funções como Ministro Conselheiro na Embaixada do Brasil em Washington?

            Sou o “segundo” do Embaixador, e portanto o representante alterno, o que em linguagem diplomática costuma se chamar “Encarregado de Negócios” (na ausência do Embaixador titular). Ademais de supervisionar o trabalho de uma chancelaria, de modo geral, sou encarregado da assinatura de determinados papéis, de visar preliminarmente grande parte dos telegramas diários (antes de serem despachados pelo chefe do posto), de representá-lo eventualmente em determinadas cerimônias, reuniões de trabalho e na recepção a uma determinada categoria de visitantes na Embaixada, assim como ficar a disposição do Embaixador e da própria Secretaria de Estado para qualquer tarefa que se imponha fora da rotina normal de trabalho. Normalmente, numa grande embaixada como a de Washington, existe mais de um ministro-conselheiro, o que também implica uma certa especialização entre eles. Como somos três, fico encarregado dos temas econômicos e financeiros, havendo outro para os temas políticos e um terceiro para questões administrativas e consulares.

6) O avanço da globalização tem aumentado a importância do diplomata no cenário internacional. Que peculiaridades podem ser destacadas na carreira diplomática?

            A carreira continua similar ao que sempre foi, constituída basicamente pelas tarefas de: informação, representação, negociação. A globalização impõe talvez uma certa redefinição da primeira função, pois não mais se considera necessário informar sobre o cotidiano ou o corriqueiro do país, como talvez fosse o caso na era dos ofícios a bico de pena. A informação deve ser seletiva, limitado aos temas que interessam diretamente ao serviço diplomático ou às relações com o país de origem.
            Por outro lado, a intensificação dos contatos humanos, dos intercâmbios comerciais e tecnológicos determinam que se procure aproveitar as novas oportunidades oferecidas pela cooperação internacional, em novas áreas ou de formas inéditas até então. Permanece, no entanto, a peculiaridade do contato direto com representantes do governo junto ao qual se está acreditado, o bom conhecimento das características locais e um certo sentido de oportunidade na construção de laços mais duradouros do que os simples contatos burocráticos de trabalho. Uma boa relação pessoal entre chefes de estado ou de governo é por vezes importante no acompanhamento e solução de determinados problemas internacionais – uma crise financeira, por exemplo – e quem deve preparar o terreno é o diplomata. Nisso, sua função ainda é insubstituível, pois ele não pode ser “representado” por nenhum sistema informático ou tecnologia high tech. O chamado “fator humano” ainda é uma alavanca indispensável nos assuntos sociais e, por extensão, internacionais.

7) O senhor ingressou muito cedo no mercado de trabalho, mesmo que de forma informal. Que experiências foram importantes nesta etapa de sua vida e em que isso colaborou para que o senhor alcançasse a realização profissional?

            O sentido do esforço individual, o desejo de aprender por mim mesmo, um certo auto-didatismo e, de modo geral, a persistência nos esforços pessoais, como forma de alcançar objetivos relevantes ou metas desejáveis. Aprendi a valorizar a conquista de aspirações significativas, em lugar de esperar que me fossem oferecidos oportunidades ou favores. De certa forma, posso dizer, hoje em dia, que, vindo de família modesta e desprovido quase que completamente de mecanismos sociais ou familiares de sustentação, pude ascender profissionalmente e socialmente graças a meu próprio esforço, um pouco como os “self-made men”, com a diferença de que no meu caso não estava aspirando poder ou riqueza, mas tão simplesmente bem desempenhar minhas tarefas profissionais e lograr manter, ao mesmo tempo ou paralelamente, atividades acadêmicas que são demonstradas, atualmente, nos muitos livros publicados por mim.

8) Que conselho o senhor daria aos jovens que desejam ingressar em um curso superior de Relações Internacionais?

            Apenas um: não dependam do curso para sua própria formação, não considerem suficiente ou adequado o que for “aprendido” nas salas de aula, mas construam vocês mesmos o “seu” curso, pela leitura e estudo intensos, pelo questionamento constante do “saber adquirido” e pelo exercício regular e sadio da “inquirição” bem orientada. Não se contentem com os jornais diários, nem com as revistas, procurem livros, manuais, enciclopédias, sistemas de informação online, não esperem que o professor “transmita” a vocês aquilo que pensam dever aprender no curso, mas façam dele um orientador de novas leituras, um conselheiro de métodos, mais do que um simples “educador” (o que ele de certa forma nunca será, pois professores em geral apenas transmitem técnicas, que educa é a própria vontade individual de aprender cada vez mais).
            Em uma palavra: entrem no curso como se já estivessem preparados para dele sair para o exercício de alguma atividade profissional, ou seja, com um certo propósito-guia, que os vai orientar durante todo o curso, e que os fará buscar sempre mais, além das simples obrigações acadêmicas do dever de casa e das leituras obrigatórias. Construam o seu próprio saber.

9) O que pode se afirmar das relações exteriores do Brasil hoje, em relação aos demais países e ao passado do próprio país?

            As relações exteriores do Brasil, stricto sensu, não são diferentes das de outros países em desenvolvimento, ou seja um esforço constante de inserção nos circuitos mais dinâmicos da economia internacional, a busca do rompimento com certas fragilidades e dependências – financeira, tecnológica, educacional e científica – que sempre marcaram o país e a intensificação da participação nos negócios internacionais, num sentido positivo, ou seja, da promoção da paz, da cooperação internacional e o progressos dos direitos humanos e da democracia nos planos global e regional.
            No que se refere especificamente à sua diplomacia, caberia registrar, sem qualquer falsa modéstia, as qualidades excelentes de profissionalismo, preparação e dedicação, fruto de praticamente dois séculos de exercício constante das relações diplomáticas a partir do próprio país. Nossa diplomacia é certamente mais eficiente do que a de muitos outros países emergentes e mesmo do que a de vários países ditos avançados.

10) Quais são, na sua visão, os momentos históricos mais marcantes nos quais a diplomacia entre os povos foi decisiva?

            Nos momentos de crise internacional, ela se torna relevante. As guerras são de certo modo o fracasso da diplomacia, mas não são sempre evitáveis, em face de algum ditador expansionista, como Hitler, por exemplo. Em outros momentos, se conseguiu evitar a guerra, como na crise dos foguetes em Cuba (1962), quando o mundo viveu praticamente a situação limite de um conflito nuclear, nunca ocorrido na história da humanidade. O próprio Brasil contribuiu para alguns episódios de pacificação entre países vizinhos, como na Guerra do Chaco entre Bolívia e Paraguai (1936) ou nos conflitos fronteiriços entre Peru e Equador (1942 e novamente em 1997).
            Mas, a diplomacia não precisa atuar apenas nos momentos de crise. Ela deve exercer-se de modo constante, em qualquer época e lugar, contribuindo para a expansão do direito internacional e a promoção dos direitos humanos. Considere-se, por exemplo, a noção de soberania estatal: ela não pode ser absoluta, a ponto de se permitir que um ditador coloque em risco a vida de seu próprio povo, ou que cometa atentados pesistentes contra a dignidade da pessoa humana ou os direitos civis e religiosos das minorias. A próxima etapa do direito internacional talvez se situe na regulação do chamado “direito de intervenção” (muito vinculado ao direito humanitário), de maneira a evitar aspectos bastante constrangedores, como os vividos recentemente pela intervenção unilateral dos Estados Unidos no Iraque.

11) Quais os desgastes, nas relações exteriores, causados por medidas protecionistas adotadas por determinados países, como a imposta recentemente pelos EUA que reduziam as exportações de aço brasileiro para tal país?

            Uma visível diminuição na confiança bilateral, na medida em que se tem, de modo claro, consciência da ilegalidade das medidas (como determinado pela OMC em relação às salvaguardas aplicadas pelos EUA ao arrepio das normas internacionais). Ocorre também um sentimento de frustração pelas perdas econômicas ocasionadas e uma desconfiança de que eventuais acordos de liberalização comercial serão efetivamente cumpridos, na letra e no espírito das regras acordas bilateralmente ou multilateralmente. Por isso mesmo, o Brasil vem insistindo para que, ao lado das medidas de acesso a mercado (redução de barreiras tarifárias), sejam contemplados também nos futuros acordos da Alca ou da OMC regras claras no que ser refere a medidas de defesa comercial (antidumping e salvaguardas), ademais da redução de todas as demais barreiras protecionistas existentes (como podem ser os subsídios à produção interna, notadamente em agricultura, e as subvenções às exportações).

Paulo Roberto de Almeida
Washington, 15 de julho de 2003

Uma entrevista sobre a carreira de internacionalista e temas de diplomacia (2002) - Paulo Roberto de Almeida

Transcrevo tal qual, sem nada mudar, sem sequer reler, uma entrevista que concedi, em janeiro de 2002, a estudantes de RI de SC, e que pode ter interesse, ainda hoje, por minhas posições contrárias à "profissionalização" de uma carreira de "internacionalista" -- o que ainda mantenho, por ser contra qualquer corporativismo e reservas de mercado -- e pelo que possa apresentar de valor histórico dada a abordagem de alguns temas conjunturais de política externa da época.
Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 20 de agosto de 2017

Alunos do Centro Acadêmico de Relações Internacionais da UNISUL entrevistaram Paulo Roberto de Almeida, diplomata, sociólogo e especialista em Relações Internacionais.

Os estudantes Thiago Domingues e Luis Fernando Coelho, da 7ª fase de Relações Internacionais, e Pablo Sebastian, da 8ª fase, realizaram a entrevista, que abordou assuntos relativos ao meio acadêmico, como regulamentação da profissão de bacharel em Relações Internacionais, e assuntos como a crise na Argentina e a reunião da OMC.

PRA: Gostaria, antes de mais nada, de apresentar meus cumprimentos aos responsáveis pelo Centro Acadêmico e pelo Boletim, pela iniciativa tomada de entrevistar um “praticante” da carreira diplomática, com vistas a disseminar um pouco da experiência e conhecimento de um servidor diplomático para jovens aspirantes à carreira. As questões são variadas e foram muito bem formuladas, cobrindo questões de atualidade, temas acadêmicos, de formação didática e de preparação para o exercício profissional, ademais de questionar a opinião pessoal do autor destas linhas sobre alguns temas de interesse corrente.

INTERNEWS - Na enquete promovida pelo grupo "RI Brasil" (ribrasil@grupos.com.br) sobre a regulamentação da profissão de bacharel em Relações Internacionais, o Sr. votou contra. Por quê?
PRA: Em princípio, sou contra regulamentações excessivas ou desnecessárias e sobretudo contra determinadas “reservas de mercado” profissionais. Por exemplo, a profissão de jornalista, que em essência poderia ser exercida por qualquer pessoa competente em qualquer área profissional, está restrita aos detentores de diplomas de jornalismo ou egressos de escolas de comunicações. Tal disposição legal constitui para mim um abuso corporatista e uma irracionalidade intrínseca, pois parece evidente a qualquer um que um grande veículo de comunicações estaria muito mais bem servido com profissionais competentes em economia, em ciências, em engenharia, artes ou mesmo literatura, do que por um generalista que passou por uma escola não necessariamente dotada de qualidades intrínsecas, mas simplesmente explorando um nicho de mercado criado em virtude de uma reserva tão irracional quanto danosa para a sociedade. A regulamentação profissional apenas deveria existir para aqueles setores que necessitam exibir, efetivamente, uma competência técnica específica, adquirida apenas mediante estudos especializados, em áreas nas quais a incompetência profissional pode colocar em risco a segurança ou mesmo a vida de terceiros, como parecem ser, por exemplo, as profissões geralmente associadas às áreas médicas, de engenharia, segurança de instalações elétricas e outras do mesmo gênero. Ora, um jornalista incompetente não coloca a vida de ninguém em perigo, apenas o sucesso de mercado do próprio veículo que o emprega. Ele apenas deve enfrentar o julgamento dos consumidores, que se desviarão daquele “produto” se sua qualidade não for a melhor possível ou mesmo a esperada. Quantos de nós já deixamos de comprar determinados jornais ou revistas, ou de assistir determinados programas de televisão ou ouvir certos programas de rádio, com base em nosso julgamento desfavorável da qualidade geral desses programas ou na competência de quem os dirige ou apresenta? Pois assim deveria ocorrer com a maior parte das profissões: as empresas se “abastecem” de profissionais no mercado e devem ter liberdade para contratar os melhores ou os mais adequados aos encargos que se lhes pensa cometer. Em certos casos, não será um jornalista, estrito senso, mas um cientista, um economista ou um crítico de arte. Uma das melhores coisas que existe no acesso à carreira diplomática brasileira é que ela não está restrita a nenhum perfil profissional específico, mas aberta a qualquer formado em curso superior, independentemente de seu diploma ou histórico profissional. Com isso se pode recutar os melhores profissionais em todas as áreas de conhecimento e de experiência técnica. Não há nenhum motivo para que o formando em relações internacionais tenha sua “profissão” regulamentada e sua “reserva de mercado” constituída, pois não se trata na verdade de uma profissão, mas de uma competência técnica e de uma capacitação não especializada que pode ser exercida nos mais diferentes setores da atividade humana. Em termos simples, o especialista em relações internacionais não coloca a vida de ninguém em perigo, logo sua profissão não deve ser regulamentada. As empresas contratarão ou não um egresso de um curso de relações internacionais não em função de seu diploma, mas em função de sua competência (ou da imagem de mercado daquela escola ou faculdade), e elas deveriam ser livres também, como de fato o são, para contratar um diplomado em direito com especialização em direito internacional, por exemplo, se tal competência é a que melhor se ajusta às suas necessidades. Se a profissão de relações internacionais fosse regulamentada, o próximo passo corporatista certamente seria uma pressão para que a legislação seja mudada no sentido de reservar a carreira diplomática apenas a esses profissionais, o que seria uma perda inestimável para a carreira e para o Brasil.

INTERNEWS - De 1995 até hoje, o Brasil presenciou uma “explosão” de cursos de RI, com a criação de mais de 25 cursos de graduação. Como o Sr. enxerga este processo?
PRA: De forma saudável. É muito bom que isso ocorra, que cursos se expandam e se diversifiquem, pois isto corresponde aos processos enfrentados pelo Brasil atualmente: globalização e regionalização. A concorrência e a oferta ampliada de cursos nessa área apenas pode beneficiar os interessados e a própria sociedade, pois significa que a captação de alunos, primeiro, e de profissionais, depois, se fará com base nas melhores competências e qualidades oferecidas no mercado. Aos poderes públicos caberia velar pela qualidade da “mercadoria”, como se faz aliás com o código de defesa do consumidor. As empresas educacionais, por sua vez, não podem sair vendendo “gato por lebre”, isto é, oferecendo um curso que não tenha requisitos mínimos de funcionamento e de qualidade.

INTERNEWS - Há uma grande variedade entre os currículos de RI espalhados pelo Brasil. O Sr. defende a criação de uma diretriz básica curricular?
PRA: Sim, mas com ampla latitude de “especializações” regionais ou temáticas que melhor possam atender à demanda do mercado. Ou seja, nem todo mundo quer fazer um curso de relações internacionais para fazer pesquisa ou perseguir uma carreira acadêmica, e de modo geral não é isso o que as empresas procuram. Elas precisam de profissionais competentes que possam resolver seus problemas de inserção internacional, questões que raramente têm a ver com a teoria neorealista de relações internacionais ou com o funcionamento do Conselho de Segurança da ONU, mas é mais suscetível de comportar um conhecimento especializado sobre normas e regulamentos do comércio internacional, por exemplo. As diretrizes curriculares devem portanto comportar um núcleo comum de matérias que assegura uma competência genérica em questões internacionais, mas depois permitir uma certa flexibilidade, pois os cursos devem ser modelados em função das necessidades de mercado daquele segmento profissional ou região específica. Os próprios cursos devem comportar matérias opcionais que vão orientando o candidato para o direito, para a economia e comércio, para propriedade intelectual, para pesquisa acadêmica, para problemas do Mercosul e da Aladi, e assim por diante.

INTERNEWS - Devido à grande variedade de currículos, fica difícil avaliar o qualidade dos cursos de RI através de testes como o Provão. Qual maneira o Sr. considera ideal para avaliar a qualidade desses cursos?
PRA: Não conheço nenhuma avaliação específica dos cursos em relações internacionais, nem tenho certeza de que esses cursos já tenham sido avaliados no âmbito do chamado Provão. Mas, as diretrizes de avaliação não deverão e não serão muito diferentes, em sua essencia, de um curso tradicional de ciências humanas, ou ciências sociais aplicadas, como direito, economia, etc. A qualidade será dada aliás pelas exigências dos próprios alunos, o que talvez seja um processo custoso, demorado e incerto, mas a qualidade de determinados cursos tradicionais em universidades públicas e particulares existentes no Brasil foi construída ao longo de décadas de “avaliações de mercado”, muito antes que qualquer Provão viesse formalizar esse processo.

INTERNEWS - Na sua opinião, qual a melhor alternativa para a Argentina sair da crise?
PRA: Nada além de bom senso e da boa aplicação de determinadas regras e princípios econômicos já suficientemente testados na prática ao longo de décadas de experiências com políticas públicas, o que aliás é válido para os indivíduos e famílias também. Ninguém consegue aguentar muito tempo consumido mais do que produz, ou gastando mais do que dispõe como renda. Você pode eventualmente tomar dinheiro emprestado para fazer um investimento, ou mesmo ter uma tia rica que lhe pague a conta do cartão de crédito, mas na maior parte das vezes somos obrigados a viver com os nossos próprios meios e disponibilidades. Com a Argentina ocorreu algo terrível neste século, que o Brasil também conheceu em determinadas épocas e de forma recorrente: a aplicação de políticas irrealistas, e mesmo erradas, que causaram inflação, estagnação, cartelização, monopolização ou outros efeitos nefastos do ponto de vista da produtividade do sistema econômico, da poupança dos indivíduos ou do equilíbrio das contas públicas, internas e externas. Numa determinada fase, seria preciso introduzir correções, o que sempre é difícil, pois que grupos de interesse particulares capturam o aparelho de Estado para implementar suas próprias políticas, num comportamento que os economistas conhecem como sendo de “rent-seeking”. Conosco ocorreu o mesmo na fase de valorização do real: foi importante para combater a inflação, mas deveríamos ter introduzido igualmente medidas de ajuste fiscal que nos libertassem da despoupança do Estado e dos índices insatisfatórios de produtividade e de competitividade. Tinhamos a ilusão de ser ricos, pois um real valia mais do que um dólar, esquecendo que o valor da moeda é determinado em última instância pela capacidade econômica de um País e pela confiança que os indivíduos podem atribuir a um determinado meio de pagamento. Finalmente, tivemos de reconher que éramos mais pobres do que gostariamos de ser, e acordamos, em janeiro de 1999, descobrindo que o PIB não era de 800 bilhões de dólares, mas de apenas 450 bilhões. Os argentinos também estão acordando para essa triste realidade, e vão precisar agora trabalhar um pouco mais duro, pois que durante muito tempo viveram de dinheiro emprestado. Assim ocorre, com as pessoas e os países: um dia a sua tia rica pode morrer ou lhe deserdar, toca então passar a trabalhar. O neoliberalismo e “políticas impostas pelo FMI” não têm nada a ver com a crise argentina. O FMI, finalmente, depois da derrocada do sistema de Bretton Woods em 1973, considera a flutuação cambial como o sistema normal para as moedas, e uma de suas primeiras recomendações em caso de programas de ajuste é justamente a desvalorização cambial. Por outro lado, não há nada mais profundamente antiliberal do que um câmbio fixo, ou rígido. O neoliberalismo requer justamente realismo cambial e aplicação dos princípios de mercado, o que significa também viver com seus próprios recursos. Não nos iludamos, pois que o Brasil também vive numa dependência indesejável de capitais estrangeiros, com nossa preocupante fragilidade financeira externa.

INTERNEWS - O Sr. acha que na última reunião da OMC (Organização Mundial do Comércio) realizada em Doha, no Catar, houve avanços na luta pela redução das barreiras não-tarifárias impostas pelos países ricos aos países em desenvolvimento, como foi noticiado em diversos jornais?
PRA: Não, até agora não houve nenhum avanço, apenas ocorreu um acordo para debater ou negociar determinadas questões que poderão, eventualmente, redundar na redução ou eliminação de algumas dessas barreiras. O que assistimos, aliás, foram cenas de protecionismo explícito, com diversos países desenvolvidos, entre eles os da União Européia e em particular a França, tentando garantir a todo custo um tratamento de exceção para a agricultura, onde se encontram o grosso das iniquidades do comércio internacional que atingem mais duramente os países em desenvolvimento ou países competitivos nessa área como o Brasil. Por outro lado, o essencial das barreiras ainda existentes no comércio internacional não se situa no plano tarifário e sim no terreno das normas, onde as práticas abusivas dos países ricos (como em antidumping ou normas fitossanitárias) podem nos atingir ainda mais duramente.

INTERNEWS - O Sr. escreveu à Revista Veja (07 de novembro) queixando-se não ter dito "Ricos e Arrogantes", título de sua entrevista na edição de 24 de outubro. O que houve?
PRA: Nesse tipo de entrevista, sempre ocorre o que os jornalistas chamam de “editing”, isto é, a transformação do tom coloquial da entrevista em linguagem mais adequada aos fins da publicação escrita, mas também algumas distorções de linguagem que não correspondem efetivamente ao que disse o entrevistado, mas ao que pensa o próprio editor do veículo. Nesse caso, em nenhum momento eu me referi aos países ricos mediante o conceito de arrogantes, pois pareceria que eu estaria considerando o problema do comércio internacional como decorrente simplesmente de uma questão de arrogância, quando não é isso que está em causa, e sim determinadas práticas, algumas tradicionais, outras criadas extemporaneamente, que prejudicam os países em desenvolvimento, ou simplesmente os competidores leais. Se eu tivesse de dar um título à entrevista, ele seria algo no gênero: “Precisamos de mais, não de menos, globalização”. E o subtítulo seria algo como: “Especialista em relações internacionais defende plena inserção do Brasil no sistema mundial e condena protecionismo agrícola europeu e subsídios americanos.”

PRA: Longa, lenta e séria preparação e sobretudo não conte apenas com os cursos de relações internacionais ou qualquer outro curso tradicionalmente acadêmico. Seja basicamente um auto-didata, e comece cedo a ler, anotar, estudar, se preparar, em todos os terrenos importantes para os exames de ingresso. Sobretudo tenha certeza de que é isso mesmo que pretende, e que não está alimentando nenhum sonho romântico de entrar numa carreira que supostamente apresenta “glamour” ou “viagens fáceis”. Trata-se simplesmente de uma das mais exigentes profissões da burocracia governamental e certamente a mais intelectualizada das carreiras de Estado, requerendo portanto uma educação sofisticada e diversificada. Comece cedo, portanto, não perca tempo com digressões inúteis, mas vá direto aos temas que apresentam “vantagens comparativas” para uma boa prova de ingresso: português, outras línguas (mas sobretudo o inglês), história e ciências humanas e sociais de maneira geral, literatura, economia, relações internacionais enfim. Na faculdade, não compactue com o pacto de mediocridade e de preguiça entre professores e alunos, mas exija aulas, leituras, seja sério e competente na preparação de seus deveres e trabalhos e sobretudo cobre responsabilidade de quem está ganhando dinheiro para ensiná-lo (e eventualmente não o faz). Na vida diária, acostume-se a passar os fins de semana lendo e navegando pela Internet, faça cadernos de notas (com fichas de livros, por exemplo), mantenha seus arquivos de computador organizados e atualizados (acostume-se a guardar documentos disponíveis de reuniões internacionais, discursos e posições de países), faça assinatura de algum jornal econômico de boa qualidade (os jornais tradicionais trazem muita fofoca política e colunismo impressionista, que fazem você perder tempo com besteirol) e de alguma revista internacional de qualidade (recomendaria a The Economist, que tem tudo o que você precisa saber para aspirar a um bom exame de ingresso e depois a uma carreira bem sucedida). Sobretudo, não pense que a carreira diplomática seja o nec plus ultra da vida profissional ou acadêmica. Você primeiro precisa ser um profissional competente em sua própria área, para depois aspirar a ser um diplomata competente. Em outros termos, não dependa da carreira, como o único horizonte disponível em sua vida profissional, mas seja capacitado em qualquer outra profissão, para poder abandonar a carreira diplomática quando bem lhe aprouver, ou para poder dedicar-se a um hobby ou atividade de apoio (artística ou acadêmica, por exemplo) que seja diferente e atraente em seus méritos próprios, não em função de uma dependência indesejada a uma única atividade. Por fim, não sonhe, mas sim faça uma previsão realista de suas capacidades e possibilidades. A carreira diplomática seleciona um entre muitas dezenas de candidatos, o que significa que a maioria dos que tentarem ficarão de fora durante um certo tempo ou mesmo indefinidamente. Que isso não seja motivo de frustração pessoal ou profissional. Tenha os pés no chão, não idealize a carreira, seja esforçado, em todas as etapas, pois você vai precisar de muita seriedade e dedicação para enfrentar todos os desafios de uma carreira enriquecedora e exigente.
Por fim, gostaria de remeter os leitores desta entrevista a dois trabalhos meus, disponíveis em minha página pessoal: www.pralmeida.org Trata-se dos textos: 800. “Dez Regras Modernas de Diplomacia”, Chicago, 22 julho; São Paulo-Miami-Washington 12 agosto 2001, 6 p; série “Cousas Diplomáticas” (nº 1). Ensaio breve sobre novas regras da diplomacia, com inspiração dada a partir do livro de Frederico Francisco de la Figanière: Quatro regras de diplomacia (Lisboa: Livraria Ferreira, 1881, 239 p.). Para desenvolvimento posterior em formato de longo ensaio. Publicado na revista eletrônica Espaço Acadêmico (Maringá: UEM, Ano I, nº 4, Setembro de 2001 - ISSN: 1519.6186, www.espacoacademico.com.br/04almeida.htm; Seção “Cousas Diplomáticas”) e na revista eletrônica Relnet: site brasileiro de referência em relações internacionais (Brasília: Coluna “Além do Quadro-Negro” < a href="http://www.relnet.com.br/pgn/colunaquadro.lasso" target="blank">clique aqui. Revisto em 2.11.01. Relação de Publicados nº 277.

691. “Profissionalização em relações internacionais: uma discussão inicial”, Brasília, 12 junho 1999, 5 pp. Texto sobre formação e perspectivas profissionais do formando em relações internacionais. Publicado no periódico do curso de relações internacionais da PUC-SP, Observatório de Relações internacionais (São Paulo: PUC-SP, nº 1, outubro/dezembro 1999, pp. 10-13). Revisto em 2001 e integrado como “leitura complementar” ao livro Os primeiros anos do século XXI: o Brasil e as relações internacionais contemporâneas. Relação de Publicados nº 248. 

Boa sorte e votos de sucesso aos futuros colegas. 
 
Paulo Roberto de Almeida
Orlando, 11 de janeiro de 2002 (848)