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domingo, 22 de outubro de 2017

O projeto de poder do governo lulopetista (2004) - Paulo Roberto de Almeida

Desde meados de 2003 eu estava trabalhando no núcleo central do governo Lula, numa coisa que se chamava, precisamente, Núcleo de Assuntos Estratégicos da Presidência da República, o que nunca me impediu de formular julgamentos essencialmente críticos sobre a patota que alimentava sonhos de monopólio do poder, que eu ainda tentava transformar num projeto de governo, como revelado no trabalho abaixo.


Do projeto de poder a um projeto de governo

Paulo Roberto de Almeida
Doutor em ciências sociais
Brasília, 27 de janeiro de 2004
revista Espaço Acadêmico (Ano III, nº 33, fevereiro 2004)

1. A “Atlântida” do projeto nacional
Mistério insondável parece ser o da “Atlântida” dos projetos de governo do maior partido do Ocidente, atualmente ocupando o governo no maior país da América do Sul. Em algum momento de um passado indefinido, ainda não identificado exatamente pelos guardiães dos registros históricos e das coordenadas geográficas, esse imenso e vibrante continente, rico em idéias mágicas, regurgitando de vontade política e submergido num mar cartorial de projetos nacionais, parece ter-se perdido nas brumas de um cataclismo obscuro e incomensurável. Os vagalhões provocados pelo que deve ter sido uma ruptura fundamental das placas geológicas do projeto de governo permaneceram aparentemente indetectáveis nos sismógrafos dos observadores políticos e com isso a Atlântida do projeto nacional desapareceu da vista dos cartógrafos.
Tudo indica que o projeto de governo, se algum dia existiu, foi tragado pela vitória eleitoral, permanecendo em seu lugar apenas o projeto de poder. Pelo menos foi o que disseram alguns arautos do ancien régime, mas tudo pode não passar de lutas inter-clânicas que não deveriam impedir esse maior partido de apresentar o seu projeto de governo. O curioso é que não faltavam idéias e concepções sobre como deveria ser o projeto nacional. De repente, tudo isso desapareceu e ficamos com a administração do que é possível e uma grande esperança carente de resultados efetivos.
Como isso foi possível? A despeito das diretrizes de governo do primeiro semestre de 2002, dos compromissos prometedores firmados em meados do ano, das propostas medianamente claras enunciadas logo após a vitória, do trabalho de diagnóstico e de sistematização de propostas de toda uma equipe de transição no final desse mesmo ano e de um rico discurso de posse no primeiro dia de 2003, a linha de continuidade entre a conquista do poder e a administração do governo parece ter se rompido em algum ponto desse itinerário, sem que seja possível, agora, ver de modo claro quem cortou o fio de Ariadne ou quem embaralhou as estrelas de Ulisses. Perdido nas profundezas do mar do Estado real – e não aquele imaginado nas pranchetas oceânicas da arquitetura oposicionista ‑ , o projeto de governo, se existente, ainda está tentando alcançar as praias de Ítaca, mas o rumo é indefinido. De fato, o governo navega em sua própria odisséia, sem que se saiba quando e aonde, exatamente, ele quer ou pretende chegar.
Sim, sabemos das linhas básicas do grande plano estratégico: desenvolvimento com inclusão social, mas a carta de navegação — os comandantes antigamente falavam de “derrota”, ou seja, curso ou itinerário — aparece com imensos claros de mar bravio e muitas terras incógnitas. Enfim, segundo alguns representantes do ancien régime, por certo maldosos, o partido da reforma tinha um projeto de poder, mas não consegue apresentar um projeto de governo. Será isso verdade?
Seria possível desmentir esses oposicionistas e até mesmo alguns antigos aliados, hoje mais preocupados em redigir manifestos de protesto do que em ajudar a conceber planos de governo? Alguém poderia dizer qual é o projeto de governo da atual maioria e, se for possível, não de forma reativa ou simplesmente circunstancial, mas com base nos grandes princípios de atuação do partido da reforma, naquelas diretrizes de transformação da sociedade brasileira que sempre constituíram sua marca distintiva no panorama político nacional?
Não tenho, nem posso pretender ter, nenhuma pretensão de formular um projeto de governo, seja de encomenda, seja por vontade própria, uma vez que não sou membro nem aspirante a membro de qualquer partido, pretendendo, ao contrário, continuar ostentando minha virtual independência de opinião e julgamento. Mas posso, talvez, tentar alinhar alguns elementos de um eventual projeto de governo, uma vez que sou membro da tribo dos sociólogos, aqueles mesmos que, segundo Mário de Andrade, praticam a arte de tentar salvar rapidamente o Brasil. De resto, como cidadão ativo e (aparentemente) dotado de reflexão própria, partilho muitas das preocupações sociais ostentadas pelo partido da reforma, o que me dá, pelo menos, credenciais intelectuais, digamos assim, para me aventurar em terreno nunca dantes navegado em meus trabalhos de puro onanismo sociológico.

2. Reversão de expectativas 
Eu começaria, talvez, pelo lado inverso de um programa de governo, isto é, pelo que NÃO deveria conter, numa hipótese provocadora, um programa de governo. Com efeito, acredito que seria ilusão esperar que um governo, qualquer governo, possa fazer tudo pela sociedade. Como sabemos, sua capacidade de transformação da sociedade é limitada, sua eficácia duvidosa e os seus meios bastante precários (a despeito da voracidade orçamentária). Em uma palavra: o governo é poderoso, mas não é onipotente, muito menos omnipresente e, sobretudo, não é onisciente (a despeito de bons serviços de estatística e de alguma capacitação em coleta de informações).
Por isso, um programa de governo não precisaria ser exaustivo ou absolutamente abrangente, ainda que assim o recomenda a tradição política. A essa regra não escrita do caráter totalizador dos programas de governo parecem se conformar os líderes brasileiros, pelo menos nos últimos 70 anos. De fato, houve tempos, no Brasil, em que o governante julgava que sua missão era a de abrir estradas. Depois, como o avanço do “iliberalismo” (ou do “social-desenvolvimentismo”), a partir dos anos 30, se julgou que o Estado deveria ocupar-se um pouco de tudo, não apenas as funções clássicas da manutenção da ordem, da segurança e serviços públicos básicos, mas também a promoção do desenvolvimento, quando não o empreendedorismo direto, na gestão de atividades produtivas ou de serviços diversos (que em outras épocas tinham ficado sob domínio privado, como transportes e comunicações).
A crise fiscal do Estado “keynesiano”, a partir dos anos 70, mostrou os limites da ação estatal, que de fator de estímulo à atividade econômica, passou a ser, em muitos casos, um elemento de “deseconomia”, não só no setor público mas crescentemente também nas áreas exclusivamente controladas pelo setor privado. Taxação excessiva, overregulation, exigências burocráticas, instituições precárias ou deficientes, enfim, externalidades negativas acarretadas por altos custos de transação, são os principais elementos dessas disfunções estatais que afetam, por vezes profundamente, a atividade dos agentes econômicos e, sobretudo, a vida dos cidadãos comuns.
Por isso se deveria talvez partir de uma nova concepção de programa de governo que se propõe, pelo menos parcialmente, não formular novos campos, mecanismos e instrumentos para a atuação e intervenção do Estado mas, quiçá, retirar o Estado da economia e dos setores mais dinâmicos da vida social. Quem poderia, por exemplo, negar o fato essencial de que hoje, no Brasil, o Estado converteu-se, na verdade, no principal “obstaculizador” do processo de expansão do setor produtivo, o único criador de riquezas e disseminador de renda. Poucos gostam de admitir que o Estado, em lugar de ser um “redistribuidor” eficiente da riqueza social, tornou-se um concentrador altamente voraz dessa mesma riqueza, retirando assim recursos que poderiam estar sendo empregados  em atividades geradoras de emprego e de renda.
Poucos governos concordariam, assim, em que um bom programa de governo poderia começar por um planejamento de “retirada estratégica” do Estado de setores nos quais ele tornou-se disfuncional e/ou nos quais ele sequer deveria ter entrado. Decisão difícil essa, mas certamente corajosa, em que um governo reconhece que não pode fazer tudo, e se empenha então em fazer um “controle dos gastos públicos”. Mas esse controle não quer dizer, simplesmente, combate à corrupção, à ineficiência da máquina estatal, à incompetência e o desperdício de dinheiro público, mas basicamente a redução das despesas e reconversão estrutural das finanças públicas.
Se houver concordância quanto ao diagnóstico da disfuncionalidade atual do Estado para os fins do desenvolvimento econômico e social do Brasil, então não será difícil admitir que um bom programa de governo poderia começar, não pelo que o Estado pode fazer para o bem de todos e a felicidade geral da Nação, mas sim pelo que o Estado pode deixar de fazer para concorrer, justamente, para o bem geral dos cidadãos e dos agentes econômicos. Minha primeira recomendação, portanto, seria por uma aceitação honesta, sincera, e quem sabe até entusiasta, do princípio de que um programa de governo NÃO precisa comportar tudo o que um governo é humanamente possível de fazer (geralmente bem, mas de forma crescentemente freqüente, mal).
Um novo programa de governo pode ser também um esforço para que o Estado NÃO faça mais tudo o que, hipoteticamente, a imaginação criadora dos políticos acredita que ele deva idealmente fazer. A “retirada estratégica” do Estado pode, em certas circunstâncias (ou até mesmo como tendência “estrutural” dos tempos modernos), constituir-se em um bom programa de governo. Pode-se, por exemplo, condenar o “tatcherismo” econômico, sem deixar de reconhecer que a administração britânica conservadora dos anos 80 do século passado, recolocou o Reino Unido no mapa dos investimentos globais e retirou-a do itinerário de declínio que já tinha virado uma indústria acadêmica nas belas universidades daquele reino. Não tenho, porém, nenhuma ilusão de que essa orientação inovadora encontre guarida nos partidos no poder ou nas lideranças políticas do maior país da América do Sul.

3. Ajuste estrutural das intenções de governo 
O que, então, poderia, ou deveria conter, um programa de governo? Não farei aqui digressões teóricas ou generalizações sociológicas sobre o que pode ou deve conter um programa de governo supostamente “ideal”. Como não sou conselheiro do príncipe, farei tão simplesmente algumas sugestões pessoais em torno do que poderia constituir um eventual programa desejável de governo para uma administração que se coloca como missão a inclusão social e que se organiza em torno da hegemonia ideológica da reforma não-excludente (para empregar uma terminologia zeitgeist).
Deveríamos começar pelo básico e pelo factível, o que implica em operar uma seleção (necessariamente limitada) das iniciativas nas quais (ou em torno das quais) o governo poderia atuar de maneira modesta e racional (mas por vezes com recursos concentrados), consoante as premissas fundamentais que sempre guiaram a ação do PT.
O partido foi criado e cresceu exponencialmente com a missão histórica de preconizar um tipo de mudança estrutural na sociedade brasileira que tem a ver com os conceitos de igualdade e de justiça social. Este é o seu compromisso básico com o povo brasileiro e a ele o partido deve voltar agora que ocupa o poder (e o governo, cumpre não esquecer). Mas, o longo caminho para o poder foi sendo marcado, igualmente, pelo crescimento institucional do aparato burocrático do partido que, como toda a burocracia, tende a criar suas próprias razões e justificações “existenciais”. Daí o crescimento correspondente de “programas de governo” que não só aumentam de tamanho mas tendem a assumir ares de complexidade e de “profundidade”, uma vez que o partido precisa provar a si mesmo, e a uma parte da sociedade (os chamados “formadores de opinião”), que ele é capaz de efetivamente governar a máquina política complexa em que se converteu o moderno Estado brasileiro. A partir de um certo momento o que era assessório se apresenta como essencial, e o partido tende a esquecer o que era básico.
O básico, não esqueçamos, era justiça social e um pouco de igualdade, não no modelo ingênuo do distributivismo principista, que atua sobre os estoques antes que sobre os fluxos de riqueza social, mas no sentido de igualdade de oportunidades — que só pode ser dada pela educação — e de correção das desigualdades gritantes, via maciços programas de investimento social. A este básico temos de agregar demandas derivadas do quadro de anomia social que degenerou em índices elevadíssimo de delinqüência social, urbana mais precisamente, mas que contamina progressivamente todo o tecido social (em vista da corrupção maciça que campeia em certos setores, como o uso da máquina pública). Em outros termos, a população brasileira deseja bem-estar e segurança.
Ora, o Estado brasileiro atual parece ser totalmente incapaz de prover um ou outro desses bens públicos, em quantidades razoáveis ou comensuráveis com as necessidades da população, o que nos leva a examinar agora o que pode ser factível de ser incorporado num programa de governo credível

4. Uma proposta modesta de projeto de governo 
Qualquer projeto de governo que não pretenda navegar pela ilha da utopia, precisa partir das circunstâncias presentes e das condições concretas, ainda que arriscando-se a cair num certo conjunturalismo. Pode-se concentrar a análise da conjuntura em torno de três dimensões da ação governativa: a econômica, a política e a moral (ou ética). Ora, a conjuntura econômica apresenta-se, agora, como razoavelmente satisfatória (em vista do bom trabalho realizado no sentido de se consolidar a estabilização e preparar as bases do crescimento sustentado), o cenário político tende a abandonar o estado de incertezas em que esteve mergulhado nas últimas semanas de 2003 (com a definição, no início de 2004, de uma nova equipe de conselheiros do príncipe) e o cenário moral, ou ético, que corria o risco de criar uma sensação de déjà vu ou de leniência com pequenos desvios de conduta, parece recuperar a imagem de correção que constitui provavelmente o principal capital político da liderança reformista.
Com efeito, do ponto de vista da economia, ao contrário do que vêm dizendo os críticos mais renitentes (que, por acaso, são antigos e/ou velhos aliados da causa), a postura assumida pelo governo, a despeito dos riscos inerentes ao baixo crescimento e o escasso potencial de criação de empregos, tem sido capaz de enfrentar os atuais desafios e incertezas nos planos interno e externo. Os economistas “de oposição”, propositores de uma política desenvolvimentista e distributivista, falharam redondamente, até aqui, em propor alguma estratégia factível de gestão econômica alternativa, que logre assegurar estabilidade e que promova o crescimento, dentro das limitações empíricas existentes (que são totalmente ignoradas por esses críticos).
Do ponto de vista da política, por outro lado, não há como deixar de reconhecer que o sistema teve de assumir os “custos administrativos” de um processo de transição inédito para os padrões da política brasileira, com desajustes setoriais que deverão ser a partir de agora absorvidos pela maior experiência da nova equipe. Espera-se, portanto, uma sintonia mais fina na governabilidade, o que foi difícil de assegurar na constituição do primeiro time de assessores, fruto de uma composição partidária específica ao momento da subida ao poder. No plano moral, enfim, o desafio é o de introduzir um novo estilo de fazer política – consoante aliás velhas receitas partidárias – no sentido de se dar combate implacável à corrupção, dentro e fora do governo, e de se colocar a ética pública como um dos princípios guias do comportamento governamental.
Tais observações derivam da constatação que autoridades públicas desenvolvem manifestações de autismo político que as tornam surdas aos reclamos da planície. Muitos líderes (até bem intencionados) são levados, uma vez no cimo do poder, a galgar ainda mais alto, indo literalmente até os limites da estratosfera, perdendo o contato com a realidade, que apenas a convivência com pessoas normais pode prover. Os áulicos e cortesãos são propensos a elogiar, justificar e racionalizar cada ação do governante, o que obviamente só tende a aumentar a entropia em que todo poder central vive.
Sem mais conjunturalismos administrativos, caberia agora propor elementos de reflexão para uma possível proposta de governo. Trata-se de combinar, aqui, modéstia e ousadia, já que se deve ter presente o alerta inicial de que o governo não pode fazer tudo, nem ostentar pretensões exageradas. Por isso, uma recomendação razoável seria ater-se a um número limitado de objetivos concretos que correspondem ao compromisso histórico do partido da reforma: justiça social e distribuição. Esses objetivos macro podem ser representados pelo atingimento de metas quantificáveis em campos bem determinados, um pouco como no caso das chamadas “metas do milênio”. Esses campos poderiam ser: educação, saúde, infra-estrutura social e segurança pública.
Se há um consenso entre especialistas e economistas do desenvolvimento é sobre o aspecto estratégico que representa a educação formal e a capacitação profissional na elevação dos padrões de produtividade do trabalhador brasileiro, único meio de aumentar sua renda pessoal, expandir o bem estar familiar e promover uma mudança gradual nos coeficientes absurdamente iníquos de distribuição de renda codificados no indicador de Gini. Propõe-se, portanto, que a melhoria da qualidade do ensino público, sua contínua universalização e aprofundamento curricular nos ciclos elementar, médio e técnico-profissional constitua o núcleo central das atividades de um governo comprometido com a inclusão social. Articuladas com as políticas educacionais, federal e setoriais, devem andar as políticas de assistência social direta e de complementação indireta da renda, com o objetivo de paliar as carências sociais mais graves (inclusive do ponto de vista da ação afirmativa), num contexto no qual os efeitos da qualificação educacional demoram a apresentar resultados.
A política de educação aqui contemplada pensa mais na qualidade do ensino estrito senso, isto é, primordialmente no professor (inclusive em termos salariais), do nos atributos físicos ou de equipamento pesado implícitos igualmente nessa equação: em outros termos, trata-se mais de melhorar o soft, do que atuar sobre o hard. Não é preciso tampouco dizer que, independentemente da importância do ciclo superior para o processo de desenvolvimento nacional, não é a solução da atual crise das universidades públicas – que não é puramente orçamentária, ou administrativa, mas também moral e política – que vai mudar dramaticamente o quadro de carências sociais que tem caracterizado o Brasil e sua sociedade, na atualidade e historicamente. Um país incapaz de prover o básico em termos de educação fundamental e média nunca será capaz de corrigir distorções que se acumulam e se aprofundam nos níveis superiores de ensino.
Ao lado da absoluta centralidade da educação formal (e de todos os seus complementos eventuais, sob forma de ensino à distância e inclusão digital, por exemplo) para a melhoria do padrão de distribuição de renda no Brasil, os investimentos em saúde (essencialmente preventiva) e em infra-estrutura aparecem como o complemento natural de políticas sociais bem calibradas. Tanto na parte de saúde e de educação não se pode eludir a questão da chamada “focalização” dos gastos, por mais que velhos preconceitos relativos à chamada “universalização do investimento social” possam ser esgrimidos em defesa de teses legítimas em sua consistência intrínseca mas inoperantes na prática real da ação pública por parte do Estado. Um exemplo concreto de focalização na área da saúde é o controle da natalidade – por mais que proteste a Igreja – em direção das camadas pobres da população, sobretudo áreas rurais e populações marginais do setor urbano, onde se concentra uma proporção anormalmente elevada de mães solteiras ou de adolescentes precocemente ingressadas na fecundidade efetiva. Esse fator regressivo de acumulação de miséria precisa ser enfrentado de maneira decisiva, inclusive como forma de diminuir outros indicadores sociais nefastos a qualquer título.
Finalmente, a questão da segurança pública afigura-se como crucial no ambiente de quase descrédito das ações governamentais em direção das populações mais atingidas pela violência urbana ocasional ou da criminalidade organizada. A sensação de frustração por parte da população mais atingida – exatamente as camadas mais humildes ‑ e a percepção da inoperância do sistema público de segurança são os dois elementos que podem causar imensos prejuízos políticos aos governantes, sem considerar seus aspectos de direitos humanos ou de afirmação dos valores da cidadania.
Por fim, já no terreno mais macro da governança, volta-se à necessidade de operar uma “retirada estratégica” do Estado para áreas mais tradicionais da ação governamental, abrindo espaços para a atuação mais efetiva dos agentes privados. Nessa área não há como deixar de recomendar o controle efetivo dos (já imensos) gastos públicos, sua redução progressiva e, sobretudo, o desenho de um programa de médio prazo para a diminuição efetiva da “derrama fiscal” hoje praticada pelo Estado contra as empresas e os contribuintes de renda média. A agenda da reforma tributária deve continuar na pauta da ação política mas, retirada sua urgência orçamentária, o foco deveria ser a racionalização e redução dos gastos públicos, não o aumento de receitas, como a situação de crise de curto prazo parece impor ao governo.
Em síntese, governo enxuto, focado em programas direcionados para a correção das imensas desigualdades sociais brasileiras (educação, saúde, segurança) e voltado, no médio prazo, para a diminuição do peso morto representado pelo Estado sobre a economia privada parecem ser os elementos centrais de um novo projeto de governo, suscetível de corresponder às promessas de mudança com que há muito sonham os brasileiros.

Paulo Roberto de Almeida
Brasília, 27 de janeiro de 2004

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