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segunda-feira, 8 de outubro de 2012

Eric Hobsbawm: uma palavra (ou duas) sobre ele... - Paulo Roberto de Almeida


Eric Hobsbawm: um depoimento acadêmico

Paulo Roberto de Almeida


Como qualquer acadêmico bem informado, eu conhecia a obra de Hobsbawm, obviamente, inclusive porque, em um dado momento de minha vida, eu também partilhei das mesmas crenças no "poder liberador" do socialismo, a partir da justeza das teses marxistas sobre a perversidade natural do capitalismo e a inevitável sucessão dos modos de produção, que deveria jogar na lata de lixo da história o modo fundado na extração de mais valia e na exploração dos trabalhadores.
Bem, confesso que fui marxista, mas nunca fui religioso, ou seja: nunca me deixei engabelar pelos "livros sagrados". Assim, fui buscar na realidade, em outros livros, na observação honesta dos modos existentes de produção a comprovação, ou não, dos argumentos originais marxianos e suas derivações leninistas, stalinistas, gramscianas, fidelistas, guevaristas e outras (bem, acho que nunca fui stalinista, mas pratiquei um pouco todos os outros pecados). O que eu vi, visitando todos os socialismos reais, surreais e esquizofrênicos, foi um sistema de penúria, caracterizado por muita miséria material, mas ainda mais miséria moral, um sistema baseado em fraude, mentiras, violência, desonestidade, ou simplesmente na escravidão humana.
Enfim, o que tem isso a ver com Eric Hobsbawm?
Li seus livros de história, um pouco em várias edições: inglês, espanhol, francês, italiano e, também em português. Aqueles que tem como partida épocas pregressas, ou seja séculos 15 a 19, confirmaram bastante a visão marxista do mundo, que é a usual no meio acadêmico: exploração capitalista, miséria dos trabalhadores, crises, colonialismo, imperialismo,  isto é, nosso menu habitual de condenação do capitalismo e da burguesia. Normal, não é? 
A coisa se complica um pouco quando chegamos no século 20, o século por excelência do capitalismo triunfante, logo depois em crise, e o da ascensão do socialismo e seu desafio ao primeiro, quase vitorioso, mas finalmente derrotado, para desgosto de Hobsbawm (e de todos os órfãos e viúvas do socialismo). 

O que eu teria a criticar em Hobsbawm?
Primeiro, deixe-me dizer o que eu achei correto, em sua análise da Revolução francesa. Ele disse que ela atrasou o capitalismo na França, pois impediu o imediato triunfo do capitalismo no campo, como ocorreu na Inglaterra, com a concentração de terras e a expulsão dos camponeses para as cidades, onde foram obrigados a trabalhar para os capitalistas fabris. Acho isso basicamente correto, e não tenho objeções a sua tese.
Do que discordo, em sua análise?
Na monumental coleção "História do Marxismo", que ele dirigiu, editada originalmente em italiano pela Einaudi (que eu tenho), ele convidou basicamente marxistas; enfim, um pouco como pedir a cardeais da Igreja Católica para escrever a história do cristianismo. Alguns italianos, já aderindo ao chamado eurocomunismo, foram bastante independentes, como Massimo Salvadori, por exemplo, mas o tom geral era de "ode ao marxismo", como aliás convinha no período que antecedeu à derrocada completa do sistema que se buscava "elucidar". 
De sua obra histórica cobrindo o período anterior ao século 20, se destaca uma importância exagerada ao marxismo, como sistema filosófico capaz de fundar uma nova era. De fato, o marxismo cresceu muito acima de suas possibilidades teóricas e de sua capacidade prática de resolver os problemas detectados por Marx no capitalismo. Ele foi oversold, de certa forma, e Hobsbawm foi um dos que participaram dessa operação de legitimação de um sistema que sempre apresentou falhas estruturais, ademais de uma monumental inconsistência intrínseca, para não falar de seu profetismo indiferente aos dados da realidade.
Quanto ao século 20, ele também deu uma importância exagerada ao socialismo, e quero me expressar muito bem quanto a isso.
A Rússia era um grande país, que conduziu guerras contra o Império Otomano, contra outros reinos na Ásia central e meridional, contra a China, a Polônia, a Áustria e a Alemanha, confirmando sua vocação ao imperialismo. Não se tratava obviamente de socialismo, mas o socialismo bolchevique continuou essa tradição, e o fez com um sentido internacionalista que ultrapassava barreiras nacionais, as fronteiras jurídicas dos Estados burgueses, para se exercer, depois, como força material e política importante em várias democracias burguesas da Europa ocidental e do resto do mundo. Isso não tem nada a ver com o socialismo, e sim com uma política de poder, com a razão de Estado, no caso, o Estado stalinista. 
Hobsbawm confundiu esse poder do Estado soviético com o triunfo do socialismo, ainda que a ideia socialista tenha conseguido conquistar corações e mentes de intelectuais dos países capitalistas, além de muitas forças sindicais. Mas ele confundiu os processos históricos e equiparou o triunfo intelectual do marxismo com o triunfo estrutural do socialismo, no processo mais vasto dos "modos de produção" em vigor durante o século 20. Bem, a CIA também considerava que o socialismo crescia mais do que o capitalismo, e que a União Soviética seria um formidável oponente, militar, econômico, tecnológico, cultural e político.
Todos erraram, mas Hobsbawm errou muito mais, pois ele mesmo, ainda que reconhecendo que o socialismo representava uma parte pequena do PIB mundial (mesmo com grandes recursos naturais), uma parte ainda menor do comércio internacional, uma parte ínfima dos fluxos de capitais, e uma parte ainda menos expressiva das inovações tecnológicas, ainda assim ele continuou a atribuir ao socialismo um poder transformador que ele de fato não tinha.
Hobsbawm também errou ao preservar o limitado molde marxista em suas análises do sistema econômico dos países, e, portanto, em crer que o capitalismo estava condenado a crises irremediáveis, condutoras a seu fracasso enquanto sistema.
Ele pelo menos tinha alguma sofisticação em suas análises, ao passo que os marxistas vulgares se agitavam alegremente cada vez que ocorria uma crise setorial nos sistemas capitalistas.
Em resumo, Hobsbawm foi um bom historiador "pré-capitalista", mas um péssimo historiador "socialista", e deixou sua fé no marxismo embotar suas análises dos processos econômicos e políticos dos séculos 19 e 20. 
Deixo de lado sua condescendência com os crimes dos socialismos reais do século 20, o stalinista e o maoísta, pois nesse quesito ele teria de ser condenado pelo lado moral, algo relativo nos marxistas. 
Eu estava apenas considerando seu trabalho como historiador. Ele falhou, como falharam muitos outros intelectuais. Que tenha demorado tanto tempo em reconhecer seus erros, conta em seu desfavor, mas de fato ele nunca renunciou a seu anticapitalismo visceral e a seu socialismo ingênuo.
Descanse em paz, é o que lhe desejo.
O problema, para nós acadêmicos, é que suas análises vão continuar contaminando com seus equívocos os trabalhos nas nossas universidades por muito tempo ainda, pois seus livros são cultuados e seguidos nas Humanidades. A cegueira voluntária demora muito para se dissipar, se é que isso ocorre: muitos são infensos aos dados da realidade, e preferem continuar se alimentando de ilusões.
Eric Hobsbawm foi um dos grandes ilusionistas do século 20. 
Não será certamente o último, mas ele era um dos mais importantes.
Talvez voltemos agora a explicações mais razoáveis, como as de um Paul Johnson, de um Niall Ferguson, de um David Landes. Pelo menos, são os que me ocorrem de sugerir a alunos em busca de historiadores mais razoáveis (e honestos).

Paulo Roberto de Almeida 
Brasília, 8 de outubro de 2012

3 comentários:

Anônimo disse...

Obrigada pela opinião :)
Os estudantes universitários agradecem.

Leandro Levlavi Pereira disse...

A questão que eu iria formular foi respondida no fim do texto por antecipação. Em qualquer curso de RI, nesse país, se dá as boas vindas com um livro de Hobsbawm nas mãos... pior: cursei um ano de Publicidade e Propaganda e até nesse curso os alunos são obrigados a engolir um historiador socialista, marxista, comunista, o que seja. Niall Ferguson, não me é estranho, verificarei os outros dois. Obrigado.

Edivaldo Júnior disse...

Ótimo comentário Paulo. Eu lhe dou muito com os textos dele em minha universidade, principalmente por meio da influência que os meus professores tiveram. Influência desgraçada...

Att,

Edivaldo Gomes

p.s. Irei repassar este ótimo artigo à todos os meus amigos.